Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Saturday, January 20, 2007

O Sacrifício

Não foi amor à primeira vista. E quem conhece Soraia sabe que nem poderia ser. Na realidade, não foi nem amor à décima-segunda vista. Comecei a me apaixonar por Soraia dois anos depois de conhecê-la, após nos vermos quase todos os dias no escritório.

O fato é que Soraia é feia. Muito feia. Horrorosa. Só pra ter uma idéia, ela conseguiu na justiça uma decisão que a liberava de utilizar fotos em documentos, pelo bem da sociedade. A carteira de identidade de Soraia traz apenas sua assinatura e dados pessoais. Fotografia, não. E quem a conhece sabe que a decisão do juiz foi mais do que acertada.

E essa é a maldição à qual estou preso por todo o restante da minha vida. Amo Soraia de todas as formas possíveis. Não consigo ficar muito tempo longe dela que a saudade simplesmente parece explodir em meu peito. Cada segundo ao lado dela é como um final de semana no paraíso. Mas é constrangedor. Humilhante. Saio com ela na rua e as pessoas começam a apontar para nós. Crianças correm para debaixo do vestido de suas mães assim que enxergam o rosto de Soraia.

Todo mundo já teve um caso com uma feiosa. Nem que sejam cinco minutos em uma festa. Escondido, no cantinho, sem ninguém ver. Até uma noite de sexo com um bicho da goiaba é aceitável. O problema é que coube a mim amar esse monstro. E ela é um monstro, não adianta negar. Ela própria sabe. Como andar na rua de mãos dadas com o sétimo cão de Satanás? Mas, o que vou fazer se não consigo ficar longe dela?

Estamos juntos há praticamente sete anos. Até hoje meus pais não a conhecem. E, se depender de mim, jamais vão se conhecer. Já passei por diversos apuros para evitar um encontro entre Soraia e meus pais. Imagino a decepção de meu pai se um dia me visse com ela. “Jamais esperava isso de você, meu filho”. Acho que ele preferiria que eu fosse gay do que casado com a Soraia.

Aliás, nosso casamento foi um fato a ser contado. Claro que foi feito tudo em segredo, longe de olhares acusadores. Só eu, ela e o padre. Isso, óbvio, até o padre enxergá-la. Hoje, relembrando, até chega a ser engraçado, mas na hora foi humilhante. O representante do Senhor deu um pulo para trás ao se deparar com Soraia. Subiu correndo o altar, arrancou o crucifixo da parede e começou a apontar para nós, enxotando-nos da igreja. Só casamos quando um amigo me contou que o padre da sua paróquia era cego.

E foi refletindo exatamente sobre isso que descobri a minha missão nesse mundo. Finalmente compreendi porque havia sido destinada a mim a tarefa de amar minha amada. Até conhecer Soraia, jamais soube o que fazer da vida. Não parava em emprego algum, não conseguia namorada fixa. Com ela, descobri que tenho uma missão grandiosa para com a humanidade. É meu dever, e somente meu, evitar que a linhagem de Soraia continue existindo no mundo.

Amo Soraia, mas sei que colocar um herdeiro dela no mundo seria uma puta sacanagem com a todas as pessoas do planeta. Não só as pessoas, mas animais e vegetais também. O DNA de Soraia não pode sobreviver. E este é meu sacrifício para o bem de toda a humanidade. A missão que fará com que eu me sente ao lado do Criador lá em cima e receba um tapinha nas costas, talvez despertando inveja de Jesus. Consigo até imaginar Ele me dizendo: “Obrigado por este sacrifício”.

Claro que, para o resto do mundo, eu vou continuar sendo a prova maior de como o amor é cego, sem tato e incapaz de cheirar. Mas não me importo. Estou em paz com a minha missão. Um dia serei reconhecido como um dos grandes homens de todos os tempos. O problema é, até lá, acordar todas as manhãs ao lado da mulher mais feia que já existiu.

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