Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, September 28, 2015

Números

O primeiro número apareceu para Dênis no espelho de seu banheiro, quando foi se refrescar pela manhã. Ainda um pouco sonolento, saiu do chuveiro e percebeu, na superfície embaçada pelo vapor, um muito bem desenhado algarismo.

10.

Dênis ficou intrigado por alguns segundos, imaginando quem poderia ter feito aquilo. Chegou à única conclusão possível em termos lógicos: ele próprio havia feito o desenho na noite anterior ao voltar do bar com os amigos do trabalho e, alcoolizado, não tinha memória do ato. O vapor simplesmente fizera o número reaparecer.

De qualquer forma, não deu muita importância ao acontecido. Vestiu seu terno cinza e tomou o café da manhã – sanduíche com geleia e suco de laranja – como fazia todos os dias da semana, seguindo logo depois para o estacionamento do prédio. Chegando ao seu Siena branco, ainda sujo da viagem ao interior realizada no final de semana, tomou um susto.

Na porta do motorista, delineado em meio à lama da estrada de chão pela qual precisou dirigir, destacava-se outro número.

9.

Dênis começou a achar que aquilo não poderia ser uma coincidência. Olhou em volta, procurando alguém que o estivesse sacaneando, mas nada viu. Entrou no carro e dirigiu ao trabalho.

No trânsito, começou a pensar no que acontecia. O que significavam aqueles algarismos? Estava em meio a devaneios sobre o assunto quando percebeu um outdoor à sua direita. O espaço não trazia qualquer anúncio ou informação, apenas um número gigante.

8.

Assustado com o que viu, Dênis invadiu a faixa da direita, quase causando um acidente. Recuperou o controle do carro a tempo, mas não o de seus pensamentos. “Este outdoor é para mim?”, questionava-se ele. “Que números são esses?”

Permaneceu nesse estado até chegar ao escritório de advocacia onde trabalhava como contador. Absorto em reflexões, não deu “bom dia” a nenhum dos colegas que o cumprimentavam, apenas reforçando a sua fama de mal-educado. Sentou-se à mesa, ligou o computador e, como papel de parede em seu Windows, surgiu mais um número em letras garrafais.

7.

A essa altura, qualquer ideia de coincidência na aparição dos algarismos havia evaporado. Dênis tinha certeza de que alguma mensagem estava sendo enviada a ele, embora tivesse um significado que ainda não conseguia compreender. Olhou para cada um dos colegas, perscrutando-os em busca qualquer sinal de culpabilidade, mas todos o ignoravam, atentos às suas tarefas diárias.

Foi o que decidiu fazer também. Focar a mente em outra questão, pois de nada adiantava perder tempo com aquilo. Quando chegasse a hora, acreditava, tudo seria revelado.

A estratégia deu certo por algumas horas, mais precisamente até o final da manhã, quando seu iPhone vibrou sobre a mesa. Dênis desbloqueou a tela e abriu a mensagem recebida pelo WhatsApp, contendo apenas um número.

6.

Pela primeira vez, porém, ele podia tomar uma atitude. O número do remetente era estranho, com muito mais dígitos do que o normal. Dênis discou.

Como esperado, o telefone estava desligado. Enviou uma mensagem pelo próprio WhatsApp: “Quem é você? O que significa tudo isso? Por que está fazendo isso comigo?”

Dois tracinhos azuis apareceram rapidamente ao lado da mensagem. Visualizada. Mas, obviamente, não houve resposta.

A partir deste momento, Dênis não conseguiu mais se concentrar no trabalho. Pediu para falar com o chefe e disse que não estava se sentindo bem e precisava ir para casa. Mesmo contrariado, nada satisfeito, o diretor da empresa o liberou.

Dênis juntou suas coisas em poucos segundos, saiu do escritório e entrou o elevador. Ao esticar seu braço para pressionar o indicador do térreo, percebeu que havia um único número já aceso no painel.

5.

Deu um pulo para trás. “Como?”, perguntava-se. Foi ali, finalmente, talvez com certo atraso, que Dênis se deu conta do que todos aqueles números significavam: era uma contagem regressiva. Mas para quê? O que aconteceria quando ela chegasse a zero?

Apavorado, saiu do elevador e desceu os oito andares pela escada. Atravessou correndo o hall de entrada do prédio e pulou para a calçada. Enquanto seguia em passo acelerado em direção ao seu carro, esbarrou em uma mulher carregando sacolas de supermercado. Ambos caíram e Dênis pediu desculpas.

Quando se levantou, seu olhar correu para uma forma no céu. Em meio ao azul total de um dia de primavera, pairava uma única nuvem, em um formato que gelou sua espinha. Um número.

4.

Dênis desesperou-se e começou mais uma correria desenfreada, desviando das pessoas na calçada, que não entendiam o que acontecia com aquele maluco engravatado. Finalmente chegou ao carro, deu a partida e acelerou. Não sabia para onde ir, apenas que precisava sair dali. Sua casa não era um bom destino, já que eles – fossem quem fossem – haviam estado lá. Pensou em ir à casa dos pais ou ficar dirigindo à toa, mas nada parecia uma boa escolha.

Enquanto decidia, percebeu que, por mais que acelerasse, o velocímetro do carro permanecia parado em um número.

3.

O coração de Dênis começou a pular dentro do peito. Com medo de bater o carro, parou o veículo na primeira vaga e desceu. Caminhava a esmo, olhando para todos os lados, paranoico, esperando que alguém surgisse a qualquer momento.

Pensou em parar um policial ou simplesmente pedir ajuda a outra pessoa, mas não sabia quem estava envolvido naquilo. Todos eram suspeitos. Dênis precisava encarar a situação sozinho, independente do que fosse acontecer.

De tanto caminhar, perdeu o fôlego. Apoiou-se com um braço em uma parede para respirar, baixando a cabeça. Quando a reergueu, deu de cara com um adesivo na vitrine da loja à sua frente. Era outro número.

2.

Estava chegando. A contagem regressiva aproximava-se do fim. Dênis quis ligar para seus pais e amigos para dizer que os amava, mas não conseguiu. Suas mãos tremiam sem parar diante do fim iminente.

Sentou-se na calçada e começou a chorar. As pessoas olhavam com curiosidade, mas ninguém parou para oferecer ajuda. Subitamente, uma rajada de vento fez com que um pedaço de papel voasse em sua direção. O objeto oscilou, dançou, circulou e terminou sua viagem diretamente no rosto de Dênis.

Ele pegou o papel com as duas mãos e o colocou em frente aos olhos. Estava escrito aquilo que ele mais temia. Um simples e aterrorizante número.

1.

Dênis desistiu. Para onde corria, os números sempre o encontravam. De nada adiantava seu esforço. Sem forças ou ânimo, resignou-se ao seu destino. Começou a caminhar lentamente de volta ao carro, repensando sua vida e listando tudo o que havia feito e deixado de fazer até ali.

Agora, sorria para as pessoas. Roçava os dedos nas folhas das árvores e nas texturas das paredes. O desespero transformou-se em serenidade. Em aceitação.

Dênis chegou ao carro e dirigiu de volta para casa, tranquilamente. Sabia que o número zero chegaria a qualquer momento e, com ele, o indelével final daquela jornada.

Estacionou em seu prédio, entrou no elevador e subiu ao seu andar. Caminhou os poucos passos até o seu apartamento em um estado de transe, como se sua mente estivesse em um lugar calmo. Retirou a chave do bolso e olhou para número preso à sua porta. Apenas um algarismo de metal permanecia ali, solitário.

0.

Era agora. A contagem regressiva havia acabado. Quem o estava perseguindo, quem o torturava daquela maneira, apareceria naquele momento. O que tivesse que acontecer, aconteceria naquele exato instante.

Dênis respirou fundo, girou as chaves e entrou no apartamento. Sem pressa, caminhou até o sofá, retirou os sapatos e se deitou, aguardando tranquilamente o fatídico e derradeiro golpe. Fechou os olhos, aceitando o fim.

E dormiu.

Acordou desnorteado, tentando entender o que acontecia. Olhou em volta, demorando alguns segundos para perceber que estava em casa. Finalmente, deu-se conta de que estava vivo. Nada havia acontecido. Dênis começou a procurar pela casa por algo diferente. Nada. Ligou para amigos, ligou para seus pais. Também nada. Entrou na Internet para ver alguma tragédia que poderia ter ocorrido. Nada mais uma vez.

Não entendia. O que teria sido aquela contagem regressiva? Tudo parecia exatamente igual.

Decidiu tomar um café da manhã para reorganizar seus pensamentos. Precisava se acalmar. Caminhou até a porta da geladeira. Enquanto estendia o braço para abri-la, tomou um susto. Deu um pulo para trás. Permaneceu alguns segundos encarando fixamente, imóvel, com olhos arregalados, a forma de seus ímãs na porta. Estavam posicionados de forma diferente do normal. No início, não acreditou, mas ali estava. Era inegável. Diante de seus olhos, eles formavam um número. Um curioso e assustador número. Um número que Dênis jamais esqueceria.


-1.

Tuesday, May 21, 2013

Buscando sentido.


É inevitável. Assim que ficam sabendo que não sou um cara religioso, as pessoas me perguntam: “Mas se tu não acredita em nada, por que acha que estamos aqui? Pra ti, qual o sentido de tudo?”

Bom, primeiro, nunca disse que não acredito em nada. Acredito em muita coisa. Acredito no ser humano. Acredito na capacidade do nosso cérebro. Acredito na bondade, na generosidade, no respeito. Acredito na busca pelo conhecimento como forma de compreender o universo e a natureza. Acredito na força e na beleza da arte. Acredito na troca de ideias. Acredito na verdade. Se bobear, acredito até mesmo que a Megan Fox um dia vai dar bola para mim. Acredito em muita coisa. Apenas não acredito em superstições, no sobrenatural ou em teorias e doutrinas que, ao que tudo indica, mesmo após milênios, não passam de meras ilusões.

Agora, por que estamos aqui? Qual o sentido de tudo? Pra ser sincero, quem sabe? Tenho a minha opinião, claro. Não é uma opinião formada a partir do nada, mas embasada nas respostas que já busquei para meus próprios questionamentos, fundamentada em todos os livros que já li sobre variados assuntos e, principalmente, originada da minha própria experiência de vida e das observações e reflexões provindas dela. É uma opinião que muitos não conseguem compartilhar, que muitos se recusam a compartilhar, mas que ainda me parece a mais sensata e lógica, diante de tudo o que se sabe até hoje: estamos aqui simplesmente por acaso e não existe um sentido maior para nossas existências.

Muitos acham que essa é uma visão desesperançosa. Mais do que isso, veem esse pensamento como algo amedrontador. Para estes, é inviável, inaceitável, pensar que estamos à deriva na imensidão cósmica, sem algum objetivo, alguma missão ou algo nos esperando quando a morte chegar. Para muitos – a grande maioria –, isso é o mesmo que dizer que a vida é uma imbecilidade, um fútil esforço de décadas que não vale a pena, uma vez que não se chega a lugar algum.

Pois penso exatamente o contrário. Vejo minha forma de encarar essa questão como libertária, uma fuga das amarras de qualquer dogma que me impeça de viver a vida. De viver essa vida, não uma que talvez, quiçá, quem sabe, virá depois. Do jeito que vejo as coisas, a vida é uma só. Essa, aqui, agora. Não há o depois. Assim como não houve o antes. Você não está aqui porque um ser magnânimo o criou à sua imagem e semelhança. Está aqui simplesmente porque, bilhões de anos após o que se imagina ter sido o início do universo, seu pai e sua mãe se sentiram atraídos um pelo outro em um pequeno planeta de uma das incontáveis galáxias existentes e o espermatozoide dele fecundou o óvulo dela, gerando um embrião que virou um feto e depois virou você. É isso. Não há um significado maior para tudo isso. Não há um sentido para a sua vida.

Ou melhor, há. O sentido da sua vida é simplesmente aquele que você dá a ela. Não é algo vindo do além, não é algo que vai cair no seu colo. Não é algo que vai se revelar surgindo do céu. Pode ser difícil de aceitar, mas tudo indica que não há um plano grandioso, um desígnio maior para a sua existência. É muito mais simples do que isso. Quem dá sentido à sua vida é você. Ninguém mais.

Esse sentido pode vir das mais variadas formas. Pode vir da dedicação à música, da entrega à natureza ou de viagens a lugares novos. Pode vir da devoção aos filhos, das conquistas materiais ou do mais puro hedonismo. Pode vir da satisfação de ajudar ao próximo, da realização de objetivos profissionais ou apenas da expectativa pela próxima cerveja no bar com os amigos. Pode vir de tudo isso junto. Vai saber. Mas, seja ele qual for, o sentido da sua vida nada mais é do aquele que você dá a ela.

Como descobrir isso? Tirando a bunda do sofá. Vivendo, experimentando, lendo, aprendendo. Ele não virá de fora, lá de cima. O negócio é se mexer e descobri-lo. Aqui. Nada de esperar pelo que pode existir, mas provavelmente não exista. Viver o agora por uma suposta recompensa pós-morte, que até hoje não passa de um desejo de milhões, parece-me algo inexplicável.

Para muitos, viver desse jeito – sem a certeza de um sentido maior, sem fé em algo divino, sem crença no destino –, é viver uma vida vazia. A meu ver, é o oposto. É uma vida vivida. Vivida com o que é real, com o que existe de fato. É uma vida que não se vive pelo depois. Uma vida que se encontra e se completa aqui mesmo, nessa breve, rica e fabulosa oportunidade que temos de experimentá-la.

E ter isso como sentido de tudo já deveria ser mais do que suficiente.

Wednesday, May 15, 2013

O vício está no ar


- Olá, meu nome é Maurício Pilar e eu sou um viciado em oxigênio.

Não foi fácil para Maurício chegar a este ponto. Antes de ser capaz de reconhecer o seu vício, de procurar ajuda e iniciar o tratamento, Maurício sofreu como qualquer outro dependente.

Por vinte e três anos, o oxigênio foi a sua vida. Sempre que perguntado quando o problema teve início, ele respondia:

- Desde que me lembro.

Mas ele sabia que, na verdade, tudo começou antes mesmo de suas lembranças. A primeira vez que usou oxigênio Maurício provavelmente não tinha consciência do que estava fazendo. Levado por um instinto natural, ele pôs o ar à sua volta para dentro do corpo pela primeira vez quando ainda era um recém-nascido coberto de gosma.

O vício foi instantâneo. Ao preencher seus pulmões com aquele gás, Maurício sentiu o prazer que se repetiria por toda a vida. E nunca mais o largou. O oxigênio tornou-se indispensável. Era parte de si. Ao longo dos anos, ele chegou até mesmo a perder a vergonha. Maurício respirava na frente de todos, alheio a tudo e indiferente aos olhares de seu pai, sua mãe, amigos e colegas.

Como ocorre com qualquer dependente, sua vida seguiu ladeira abaixo. Maurício não conseguia aceitar que era um viciado. Negava o problema de todas as formas. Dizia, inabalado:

- Se quiser, eu paro.

Mas não parava. Nunca parou. O vício foi ficando cada vez pior. Maurício usava oxigênio logo ao acordar. Usava durante o trabalho. Usava em encontros com garotas. Usava em jantares de família, com seus adoráveis avós à mesa. Certa vez, ao acordar durante a madrugada, flagrou-se usando sem ao menos perceber, enquanto dormia.

Foi o momento em que cogitou buscar algum tratamento. Primeiro, tentou abandonar o oxigênio por sua própria força de vontade. Não foi possível. As crises de abstinência eram fortíssimas. Sou rosto ficava roxo, quase azulado, a cabeça começava a doer e logo estava de volta ao oxigênio.

O acontecimento definitivo para aceitar ajuda foi em uma partida de futebol com os amigos. Ao receber um lançamento pelo lado esquerdo do campo, Maurício precisou correr como nunca antes tinha corrido para alcançar a bola. Logo em seguida, sentiu uma inédita necessidade de oxigênio. Começou a respirar de forma acelerada, incontrolável, incessante. Inspirava, expirava, inspirava, expirava. Precisou sair do jogo para sustentar seu vício.

Ao final do jogo, comentou:

- Hoje vi que estou dependente demais. Preciso tratamento.

Assim o fez. Na clínica, encontrou um novo sentido para a sua existência. Ao interagir com outros respirólatras, Maurício se identificou. Viu que não estava sozinho. Ele poderia superar o problema caso se dedicasse de forma completa e irrestrita.

Com o apoio dos colegas, pouco a pouco foi deixando para trás aquela vida. Evoluiu, vagarosamente, para superar o problema. Sentia-se feliz como nunca antes. As possibilidades se abriam. O futuro era amplo. A felicidade, sua nova companheira.

Após muita luta e muito esforço, após uma entrega quase total, ele conseguiu. Em um instante mágico à beira da piscina azul, ao lado de novos amigos e sob um insistente sol de janeiro, percebeu que havia largado de vez o oxigênio.

Maurício, finalmente, livrara-se do vício.

Três minutos depois, estava morto. 

Wednesday, April 17, 2013

A Beleza do "Não Sei"


Uma das características que mais admiro em uma pessoa é a habilidade de dizer duas pequenas e simples palavras: “não sei”. Por incrível que pareça, trata-se de uma das expressões mais difíceis de se ouvir na língua portuguesa. Suspeito que não tenha a ver com a pronúncia, já que, exceto talvez para os gagos, parecem palavras bastante fáceis de serem vocalizadas. Deve ser outro, portanto, o motivo pelo qual escutá-las é tão raro quanto encontrar um político honesto. E acho que a explicação, na verdade, passa por um equívoco da maioria das pessoas: a ideia de que dizer “não sei” representa fraqueza e ignorância.

Hoje, todo mundo acha que sabe sobre tudo e que pode e deve falar sobre tudo. Seja qual for o assunto, é preciso ter uma opinião. O novo projeto do Senado? Tá na ponta da língua. O filme que tem feito sucesso? Já vi e comentei. A rota migratória das gaivotas russas de bico preto no solstício de inverno? Sou especialista. Faça um teste: pergunte para quem está ao seu lado sobre algum assunto aleatório. Moda, música, política, religião. Garanto que a pessoa vai dar uma resposta, por mais absurda que seja.

Mas por que isso acontece? Pelo simples fato de existir a ideia de que não saber algo – especialmente em um mundo com tantas fontes de informação como é o de hoje – será visto como sinal de burrice ou de alienação. Boa parte das pessoas ainda acha que não ter uma opinião sobre o que quer que seja é assinar um atestado de idiotice. É o medo de ser visto como ignorante. A síndrome do “não sei”.

Pois penso exatamente o contrário. Dizer “não sei” é uma atitude linda. O “não sei” é o ponto de partida do aprendizado, o tiro de largada para a curiosidade. Quem afirma “não sei”, está reconhecendo uma lacuna em si mesmo e dando o primeiro passo para que ela seja preenchida. O “não sei” leva à busca por respostas, leva ao estudo, leva ao questionamento. Representa a consciência de que é possível saber mais. Quem é capaz de dizer “não sei” incentiva seu próprio crescimento.

Não ter opinião sobre algo não é um problema; o problema é falar sobre aquilo que não se sabe, que não se domina. O problema é expressar opiniões vazias e sem embasamento que mais prejudicam do que esclarecem. E essa é a grande armadilha na qual muita gente cai: achar que sabe tudo. Não, você não sabe tudo. Existem milhares de assuntos sobre os quais você não sabe absolutamente nada. Você pode dominar física quântica, mas provavelmente não consegue fritar um bife. Você pode ser capaz de citar a Constituição Federal, mas talvez não saiba explicar a regra do impedimento. Talvez você saiba o que faz um computador funcionar, mas deve ser um zero à esquerda ao falar sobre as novidades da moda em Milão.

Aceite isso: você não sabe tudo. Na verdade, diante da imensidão do espaço, do tempo e de tudo o que há para saber, você sabe pouco, muito pouco. E isso é normal. Não é motivo para se envergonhar. Vergonha talvez seja ficar parado conscientemente ao reconhecer que sabe pouco sobre determinado assunto. O conhecimento está aí, é só buscá-lo. Vergonha é emitir uma opinião sobre algo que não entende. Mas não é vergonha alguma dizer “não sei”. É, pelo contrário, inspirador. Um sinal de humildade. De uma vontade de ser mais do que atualmente é.

Não tenha medo. Reconheça a beleza dessas duas palavras. Aliás, se me perguntarem se esse texto vai fazer alguma diferença, não tenho qualquer hesitação ou receio de responder: sinceramente, não sei.

Friday, November 30, 2012

Adeus, velho amigo.




ADEUS, VELHO AMIGO

Não é fácil se despedir de ti, velho amigo.
 
Acredite, estamos tentando.
Porém, a cada instante que pensamos na hora derradeira, o nó volta à garganta. As lágrimas nublam novamente os olhos.
Confesso não ter lembrança da primeira vez que te visitei.
Gostaria de ter, como muitos.
 
Gostaria de lembrar, como se
 fosse ontem, do momento único e especial em que passei a primeira vez pelos teus portões, teus corredores, e me encontrei sem ar diante da visão de teu oceano azul abraçando um luminoso palco verde de batalha.
Dói não ter essa lembrança.
Sou, porém, confortado por saber que, na verdade, ela pouco importa.
Nestes nossos últimos momentos juntos, não interessam os fatos ou as datas.
O que importa, agora, é o que aí foi sentido.
O que foi vivido em tua companhia.
Foste, velho amigo, mais do que um estádio.
 
Foste uma escola de vida. Um templo de glória.
Foste um lar. A casa de milhões unidos por um ideal.
Sobre tua grama esperançosa, vi jogadores tornarem-se heróis e heróis tornarem-se mitos.
 
Em tua arquibancada hoje desgastada, vi crianças virarem adultos e adultos virarem homens.
Em teus domínios, vi a história sendo escrita com a tinta perene da glória.
Ah, velho amigo, quantas lágrimas salgaram teu chão?
 
Lágrimas de tristeza, também, mas principalmente lágrimas da mais pura e inebriante felicidade.
Ah, velho amigo, quantas vozes aí já se uniram para formar uma só, invencível?
Quantas vezes este rugido quebrou ao meio gigantes amedrontados?
Ah, velho amigo, quantas lições de vida e de caráter aprendemos contigo?
Quantas aulas sobre superação e hombridade tivemos sob teu teto estrelado?
Ah, velho amigo, quantas batalhas épicas foram travadas em teu campo molhado de suor?
Quantas vitórias vieram diretamente de uma paixão irrefreável pelas cores que te adornam?
Ah, velho amigo, quanta saudade irás deixar?
Estes são teus últimos suspiros. A dor que sentes neste estágio final, porém, não é só tua.
É a dor de milhões.
O sentimento incômodo que aperta há tempos nosso peito é o da tua inevitável despedida.
Mas fique tranquilo, velho amigo. Não estará sozinho em teus momentos finais.
Nunca esteve.
Quando partir, estaremos todos à tua cabeceira.
Estaremos todos esticando a mão para o teu conforto.
Estaremos todos entoando os cânticos que tanto ouviste em teus cinquenta e oito anos.
Deixarás, sem dúvida, um eterno vazio.
Um vazio que jamais será preenchido, apenas mitigado.
Um vazio doloroso, mas tolerável diante das memórias, dos aprendizados, das conquistas e da glória.
Um vazio até certo ponto agradável diante da certeza de termos vivido, junto a ti, uma história única.
Vá, mas vá com a certeza de que aqui ficará.
E obrigado, velho amigo. Do fundo de um coração tricolor, muito obrigado por tudo.

Wednesday, October 17, 2012

HORA DE VOLTAR


No Paraíso, Jesus abriu na porta do escritório de seu pai, esticou a cabeça para dentro e perguntou:

- Chamou, cara?

- Sim, entre – respondeu o Todo-Poderoso.

Deus observou seu filho. Aquele homem diante de si, musculoso, com camisa apertada, correntões de prata no pescoço e celular na mão, pouco lembrava o Jesus de dois mil anos atrás.

- Qual a bronca, velho?

- Está na hora de você voltar.

- Pô, por que me chamou, então? Eu tava saindo pra uma noitada com o Thiago e o Paulo.

- Não, Jesus. Não é voltar para a sua vidinha de playboy do Paraíso. É voltar para lá pra baixo. Para a Terra.

Jesus engoliu em seco.

- Tá brincando, né?

- Não. Chegou a hora.

- Mas por quê? Até você já me disse que aquela história de morrer pelos pecados deles foi à toa. Sofri de graça por aquela bobagem. Eles estão ainda piores.

- A questão não é eles. É você.

- Eu? O que tem eu? Eles ainda me amam lá embaixo.

- Mas você se perdeu por aqui. Ficou deslumbrado com sua fama. Está nos prejudicando.

- Ah, pai, só estou curtindo minha juventude.

- Que juventude? Você tem mais de dois mil anos!

Jesus deu de ombros.

- Não tenho culpa que eu não envelheço, ora. Foi você quem me fez assim. Quis trabalhar só seis dias, aí dá nisso.

- Não vem ao caso. O que importa é que hoje você é apenas um garoto mimado cheio da grana. Está usando sua fama e o fato de ser meu filho só pra arrastar anjas, arcanjas e serafinas para sua cama. É o Thor Batista do Céu.

Deus parou de falar ao notar que Jesus mexia no celular.

- Jesus?

Nenhuma resposta.

- Jesus?

Ainda vidrado no aparelho.

- JC!

Finalmente, Jesus tirou o olho do celular e focou em seu pai.

- Quer fazer o favor de prestar atenção?

- Estou te ouvindo, pai. Só tinha que responder a mensagem da Maria Madalena. Ela queria saber qual a boa de hoje.

- É exatamente isso o que falo. Não é a postura que quero de você.

- Acho que você está forçando. Não tem sido assim sempre.
           
- Você não andou surfando em pé e sem prancha pra impressionar garotas?
           
- Ah, foi porque umas amigas pediram – disse Jesus, com um orgulho disfarçado.
           
- Então. Você está usando seus dons para propósitos que jamais desejei. É hora de voltar.
           
Jesus suspirou.
           
- Não tem outra solução? Não quero passar por tudo aquilo de novo.
           
- Dessa vez será mais tranquilo. Eles não usam mais a cruz.
           
            Jesus balançou a cabeça, aceitando seu destino. Enquanto se retirava, disse:
           
- Posso fazer um pedido, então?
           
- Faça.
           
- É que não se toma mais vinho em festas lá na Terra.
           
- E?
           
- Estava pensando: será que agora meu milagre pode ser transformar água em whisky com Red Bull?

Wednesday, September 26, 2012

Fomos enganados.


Fomos enganados. Todos nós. Não agora, mas há anos. Quando ainda éramos inocentes, inofensivas e adoráveis crianças de bochechas rosadas. Os perpetradores da falácia? Ninguém menos que nossos ardilosos pais, aqueles seres poderosos que sabiam tudo e detinham nossa total confiança.

Pois eles nos enganaram, os traidores. Talvez nem de forma intencional, mas enganaram. Víamos os dois e os demais adultos com inveja. Eles tinham dinheiro para comprar aquela bicicleta tão desejada. Eles dirigiam carros novos, indo para onde queriam e a hora que queriam. Eles não precisavam enfrentar aulas chatas, professores frustrados ou estudar para provas ininteligíveis.

Eles eram tudo o que gostaríamos de ser.

Crescemos acreditando que a vida de gente grande seria o paraíso. Independência, ninguém para mandar em nós, poucos compromissos, dinheiro no bolso. Com certeza, ser adulto era o máximo.

A realidade nos acertou como uma porrada em nossas caras cheias de espinhas. Não, ser adulto não é o máximo. A vida de gente grande não é o paraíso. É muito mais difícil do que aquela que tínhamos antes.

Aquele dinheiro que parecia estar sempre no bolso deles, na verdade, demora a vir. Quando vem, foge à velocidade da luz. Os carros estragam, têm gastos e custam parcelas intermináveis. As aulas, se não existem mais, foram substituídas por empregos estressantes, que exigem muito mais tempo, dedicação e paciência.

Temos inúmeras contas a pagar, precisamos equilibrar o que comemos, sofremos com desilusões amorosas, somos constantemente vítimas do cinismo, da ganância e da hipocrisia de outros. Pessoas dependem de nós, nosso corpo não possui mais a mesma forma e agilidade, precisamos pensar constantemente naquele perigoso, desconhecido e amedrontador lugar chamado futuro.

Nada mais de dormir após o almoço ouvindo o som da chuva lá fora. O sono, agora, é inimigo o dia inteiro. O café, o melhor amigo. Recorrer aos pais diante do menor problema não é mais uma possibilidade. É preciso caminhar com nossos próprios pés, independente de quantas pedras ou brasas existam no caminho. O tempo – ah, que saudade –, para fazer o que gostamos ou simplesmente para ficar à toa, evaporou. Cada hora é ocupada, cada minuto ocupado.

Aquela vida que parecia tão dura antigamente, hoje, soa idílica. Um sonho distante, uma existência pura que nunca mais alcançaremos. Estamos presos demais às responsabilidades, sabemos muito sobre o mundo. A vida nos amarrou. A infância, aquele tempo utópico onde tudo parecia mais difícil do que realmente era, não volta mais.

Não há o que fazer. Infelizmente, a imagem que nos foi vendida da vida adulta, a que fez parte de nossos sonhos e desejos imberbes, não se concretizou. Fomos enganados. Aquela imagem não é real. Fica a nostalgia daquela época, como uma agradável lembrança que nos ajuda a enfrentar a difícil verdade.

Se tivesse a chance, gostaria de voltar à infância para responder a algum adulto o que eu gostaria de ser quando crescer. De minha boca sairiam, sem hesitar, as seguintes palavras: “Ainda criança”.