Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Sunday, May 28, 2006

Freud Explica

O cenário era este: casa do Lontra, quatro horas da manhã de um sábado. Estavam ele e o Duca sentados no sofá, assistindo a todos os canais da Net ao mesmo tempo, enquanto faziam comentários. Era algo como um Beavis e Butthead em carne e osso. Ah, necessário dizer também que o chão estava repleto de latas vazias de cerveja, resultado de um sábado à noite longe da balada.

Bom, se vocês vissem a quantidade de latas no chão, eu não precisaria nem dizer que eles estavam bêbados. Mas isto é um texto, não um filme, portanto, vocês não têm o recurso visual, sendo necessário que explique, então vai lá: Lontra e Duca estavam bêbados.

Então, Lontra e Duca, bêbados, sentados no sofá e assistindo TV. Aí o Duca disse:

- Cara, esse programa é uma viagem.

- Certo – concordou Lontra.

- Até parece um sonho que eu tive.

- Sonho?

- É, cara, tenho tido um sonho repetido.

O Lontra ficou interessado no assunto do sonho do Duca. Aproveitou a chance.

- Sério, cara? Conta ele pra mim, deixa eu ver se ele tem algum significado.

- Como assim?

- Psicanálise, Duca. Se o sonho tem se repetido, é porque ele quer dizer alguma coisa.

- E desde quando você entende isso? – Duca surpreendeu-se com o conhecimento de Lontra.

- Tá maluco, Duca? Sou um psicólogo!

- Que psicólogo, o quê? Tu acabou de entrar na faculdade.

- Sou um psicólogo júnior.

- Mas tu faz na faculdade de Direito, imbecil!

- Eu sei, cara. Mas é no mesmo prédio.

- E daí?

- E daí que no intervalo eu vejo o pessoal da Psicologia conversando.

- E daí?

- Porra, cara! Quer que eu te analise ou não? – indignou-se Lontra.

O Duca não estava muito inclinado a fazer essa sessão improvisada de psicanálise com um estudante de advocacia, mas acabou topando. Até porque já estavam há quase seis horas sem fazer outra coisa além de ficar atirado no sofá com uma cerveja na mão.

- Tá, Lontra. O que eu tenho que fazer?

- Deita aí no divã.

Duca deu uma olhada em volta. Depois outra. E mais uma, só para se certificar de que realmente não era efeito do álcool o fato de ele não enxergar divã algum.

- Que divã, Lontra?

- Aí, cara – falou Lontra, apontando para o canto da sala.

- Esse é o seu divã?

- Sim, o que mais?

- Mas isso é um puf!

- Usa tua imaginação, Duca. Tu é um publicitário, cara, tem que saber imaginar as coisas.

- Quer que eu me deite no teu puf?

- Divã.

- Divã. Tá bom.

Duca deitou no divã barra puf do Lontra. Antes de continuar, só pra vocês imaginarem melhor a cena, deixem-me dizer que a sala da casa do Lontra não tinha muitos móveis. Era o sofá velho no qual eles estavam sentados, uma televisão que ficava em cima de uma cadeira e o puf. Nada mais. E as latas de cerveja pelo chão, claro.

O Lontra foi até a TV, tirou ela de cima da cadeira e colocou o aparelho no chão. Levou a cadeira até o lado do Duca e sentou-se. Cruzou as pernas, uma sobre a outra. O Duca se espantou:

- Que é isso, Lontra? Tá maluco?

- O quê?

- Essa perninha cruzada aí.

- É pra dar um ar de intelectual.

- Pra que isso? Só tem eu e tu aqui!

- Eu trabalho melhor dessa forma.

- Que trabalha melhor? É a primeira vez que tu faz isso.

- Podemos começar? – interrompeu Lontra.

- Podemos, só que não me sinto confortável ficando sozinho num apartamento com um cara que fica nessa posição de viado.

- Podemos começar? – perguntou novamente, agora de maneira incisiva.

- Tá, cara. Começa.

O Lontra esticou os dois braços, estalou os dedos e tossiu. Puxou um bloquinho de anotações e tirou uma caneta do bolso. Enquanto fazia isso, era observado pelo Duca, que assistia a todo o ritual do amigo com uma mistura de desprezo e galhofa.

- Certo, Duca. Feche os olhos.

- Por quê?

- Para iniciarmos a sessão.

- Lontra, se fechar os olhos eu durmo. A gente bebeu demais.

- Sim, é verdade. Concordo com a sua colocação.

- Posso ficar com eles abertos, então?

- Sim, eu permito. Mas faça de conta que eles estão fechados. Diga ao seu cérebro que eles estão fechados para que você possa se concentrar melhor.

- Ok. Cérebro: olhos fechados, beleza?

- Diga, mas diga em silêncio. Concentre-se.

- Tá, ele já sabe, vamos em frente.

- Certo.

- Só deixa eu te fazer uma pergunta – disse Duca.

- Sim. Fale.

- Por que tu tá falando assim? Todo certinho e formal?

- Porque eu sou um profissional sério. Agora, silêncio. Conte-me o seu sonho.

- Que sonho, Lontra?

- O sonho que você disse que se repetia constantemente.

- Ah, aquele. Na verdade, não lembro.

- Como assim, não lembra?

- Não lembro, ora.

- Então por que começou a falar dele?

- Eu comentei que tinha um sonho repetido. Isso eu tenho. Só que não lembro como ele é.

- E por que marcou um horário comigo?

- Porra, que horário, Lontra? Pára de falar bobagem!

- Mas assim eu não posso te ajudar.

- Não pedi pra me ajudar. Quem inventou essa besteira freudiana foi tu.

- Você está meu ocupando meu tempo à toa. Poderia estar ajudando outras pessoas. Você está brincando que não lembra, Duca?

- Claro que não. Mas até tenho um pedido pra te fazer.

- O que é?

- Gostei desse puf. É confortável. Posso dormir muito bem aqui. Com certeza, vou acabar sonhando de novo. Aí eu te conto como foi.

- Está falando sério?

- Sim.

- Leve o puf, se quiser. Pegue essa coisa velha e leve pra sua casa!

- Sério, Lontra?

- Leva!

- Valeu, cara.

Lontra levantou-se. Parecia indignado com o fato de não conseguir colocar seus dotes de analista em prática. Duca perguntou:

- A sessão acabou, então?

- Sim, né? Fazer o quê?

- Foi bom. Tenho certeza que me ajudou um bocado. Só vai ter um problema.

- Que foi agora?

- Tu me deixou levar o divã. Onde vai ser a próxima sessão?

- Vai pro inferno, Duca.

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