Falatório.
Sei que é difícil alguém acreditar, mas, de uma hora para outra, as coisas começaram a falar comigo. Objetos mesmo. Não eram vozes que eu ouvia somente na minha cabeça. Nada disso. Nunca tive delírios ou alucinações em toda a minha vida. Simplesmente, criei uma habilidade especial de poder conversar com os objetos. Aquela história do Dr. Dolittle com os animais, eu tinha com seres inanimados.
Começou com o espelho do banheiro. Foi na saída do banho. Saia do chuveiro pelado quando ouvi uma voz:
- Que nojo...
Porra, dei um pulo. Moro sozinho e, até onde sabia, não havia ninguém em casa. Eu com o meu pacote ali, sacudindo, ainda molhado, completamente desarmado. Pensei que era algum ladrão ou um voyeur homossexual, que por alguma razão quis me ver nu. Mas não. Era o espelho.
- Sim, é contigo mesmo – repetiu ele.
- Olhei em volta, ainda apavorado. Não conseguia identificar a origem da voz.
- Não tem ninguém aqui. Sou eu mesmo, o espelho – disse novamente.
- Espelho? Desde quando você fala? – indaguei.
- Sempre falei. Mas só agora você consegue ouvir. E vai ouvir.
- Mas...
- Só escute: não quero mais ver isso. Tenho o direito de recusar a refletir sua imagem. Peço demissão.
- Como assim? Por quê?
- Por quê? Olhe-se em mim, rapaz. Você está gordo, flácido, cheio de pêlos, repleto de manchas pelo corpo. Acha que eu gosto de ter que reproduzir visão tão grotesca?
- É o seu papel, ora. Você é ou não é um espelho?
- Sou, mas...
- Então escute você: cale a boca e faça seu trabalho ou eu quebro-o em milhares de pedacinhos.
Virei o jogo. Era só o que faltava, um espelho me chamando de feio. Saí do banheiro, enquanto ele continuava falando sozinho. Sequei-me, fui ao quarto e sentei na cama.
- Ei, ei, calma lá!
- Levantei de súbito. Era o colchão.
- Você também? – perguntei, já mais não tão surpreso.
- Eu também o quê? – redargüiu ele. – Não sei do que você está falando, mas já aviso que chega. Não vou mais agüentar você sobre mim.
- Mais um... – desabafei, já me cansando da situação.
- Mais um o quê? Nem vem, sou um colchão muito macho, cara. Quero garotas de vinte anos sobre mim, não um quarentão com mais de cem quilos que me deixa cheio de suor.
- E o que você vai fazer em relação a isso?
- Eu? Não sei ainda. Não pensei nisso – disse o colchão.
- Então fica na tua antes que eu te jogue em algum lixão.
Escapara por cima mais uma vez. Havia dado uma boa lição no espelho e no colchão. Não poderia aceitar essa revolução das coisas. Precisava me impor. Foi o que fiz, também, com o lápis.
- Estava fazendo anotações em minha agenda quando ouvi uma voz. Nada tinha a ver com o timbre imponente do espelho e do colchão. Essa era uma voz desesperada, quase de choro:
- Por favor, deixe-me viver.
- Lápis, é você?
- Sim. Deixe-me viver.
- Como assim? – perguntei.
- Não escreva comigo, por favor. A cada novo dia, fico menor. Estou desaparecendo. E você ainda me faz passar por cirurgias quase todo dia.
- Cirurgias? – não entendi o comentário em um primeiro momento. Então percebi: - Ah, você diz o apontador?
- Sim. Por que me tortura assim?
- Olha, lápis, não é tortura, mas eu preciso escrever. Seu trabalho é nobre.
- Nobre?
- Claro. Você é responsável por fazer o mundo funcionar. Por registrar documentos, anotações, contas, cartas de amor. Sem você e seus irmãos, o mundo não andaria. Você vai morrer em breve, mas será por uma boa causa.
Dito isso, o lápis se acalmou. Compreendeu o significado de sua existência. Eu começava a perceber que os objetos podiam falar, mas eram burros.
Até então, estava me virando legal com meus novos poderes. Tinha escapado com sabedoria das reclamações do espelho, do colchão e do lápis. No entanto, até ali, eles haviam falado comigo de forma educada. Deram-me espaço para argumentar. Os problemas realmente começaram quando os objetos começaram a se manifestar quase juntos. Não tive nem chance de responder.
Começou com a televisão. Dizia ela que eu só assistia porcaria. Antes que eu pudesse responder, o livro entrou na discussão, comentando que televisão era abobrinha mesmo, que conteúdo de verdade estavam em suas páginas. Enquanto o bate-boca entre os dois prosseguia, saí da sala em direção à cozinha.
Mal entrei no cômodo, a geladeira disse que estava fedendo em função dos alimentos fora da validade. Falava que merecia mais respeito da minha parte. Enquanto isso, o microondas dizia que ela não sabia o que era sofrimento. A geladeira vivia ali, naquele clima fresco, enquanto ele sofria de calor. A geladeira não tinha idéia de como era insuportável ter que se aquecer diversos graus em pleno verão.
O falatório era gigantesco. Com os dedos nos ouvidos, corri para o quarto e procurei meu protetor de ouvidos. Coloquei-os, acreditando me ver livre de tudo aquilo.
- Eca, quanta cera.
Esqueci que os protetores também eram objetos.
Pensei em sair de casa. Mas não iria adiantar. O que quer que tivesse despertado isso, não desapareceria assim. Ouviria objetos também fora de casa, tinha certeza. Precisava fazer alguma coisa.
Optei por escrever esse texto. Se eu seria levado à insanidade por esses objetos que não fecham a matraca, pelo menos deveria deixar um registro do acontecimento. Precisava contar às pessoas. Com uma capacidade de concentração fora do normal, redigi essas linhas. Talvez não tenha ficado bom, mas é o que se pode fazer com discussões, perguntas e comentários ao seu redor.
Mas não revisarei o texto. Não agüento mais este computador reclamando de cansaço no meu ouvido.
Começou com o espelho do banheiro. Foi na saída do banho. Saia do chuveiro pelado quando ouvi uma voz:
- Que nojo...
Porra, dei um pulo. Moro sozinho e, até onde sabia, não havia ninguém em casa. Eu com o meu pacote ali, sacudindo, ainda molhado, completamente desarmado. Pensei que era algum ladrão ou um voyeur homossexual, que por alguma razão quis me ver nu. Mas não. Era o espelho.
- Sim, é contigo mesmo – repetiu ele.
- Olhei em volta, ainda apavorado. Não conseguia identificar a origem da voz.
- Não tem ninguém aqui. Sou eu mesmo, o espelho – disse novamente.
- Espelho? Desde quando você fala? – indaguei.
- Sempre falei. Mas só agora você consegue ouvir. E vai ouvir.
- Mas...
- Só escute: não quero mais ver isso. Tenho o direito de recusar a refletir sua imagem. Peço demissão.
- Como assim? Por quê?
- Por quê? Olhe-se em mim, rapaz. Você está gordo, flácido, cheio de pêlos, repleto de manchas pelo corpo. Acha que eu gosto de ter que reproduzir visão tão grotesca?
- É o seu papel, ora. Você é ou não é um espelho?
- Sou, mas...
- Então escute você: cale a boca e faça seu trabalho ou eu quebro-o em milhares de pedacinhos.
Virei o jogo. Era só o que faltava, um espelho me chamando de feio. Saí do banheiro, enquanto ele continuava falando sozinho. Sequei-me, fui ao quarto e sentei na cama.
- Ei, ei, calma lá!
- Levantei de súbito. Era o colchão.
- Você também? – perguntei, já mais não tão surpreso.
- Eu também o quê? – redargüiu ele. – Não sei do que você está falando, mas já aviso que chega. Não vou mais agüentar você sobre mim.
- Mais um... – desabafei, já me cansando da situação.
- Mais um o quê? Nem vem, sou um colchão muito macho, cara. Quero garotas de vinte anos sobre mim, não um quarentão com mais de cem quilos que me deixa cheio de suor.
- E o que você vai fazer em relação a isso?
- Eu? Não sei ainda. Não pensei nisso – disse o colchão.
- Então fica na tua antes que eu te jogue em algum lixão.
Escapara por cima mais uma vez. Havia dado uma boa lição no espelho e no colchão. Não poderia aceitar essa revolução das coisas. Precisava me impor. Foi o que fiz, também, com o lápis.
- Estava fazendo anotações em minha agenda quando ouvi uma voz. Nada tinha a ver com o timbre imponente do espelho e do colchão. Essa era uma voz desesperada, quase de choro:
- Por favor, deixe-me viver.
- Lápis, é você?
- Sim. Deixe-me viver.
- Como assim? – perguntei.
- Não escreva comigo, por favor. A cada novo dia, fico menor. Estou desaparecendo. E você ainda me faz passar por cirurgias quase todo dia.
- Cirurgias? – não entendi o comentário em um primeiro momento. Então percebi: - Ah, você diz o apontador?
- Sim. Por que me tortura assim?
- Olha, lápis, não é tortura, mas eu preciso escrever. Seu trabalho é nobre.
- Nobre?
- Claro. Você é responsável por fazer o mundo funcionar. Por registrar documentos, anotações, contas, cartas de amor. Sem você e seus irmãos, o mundo não andaria. Você vai morrer em breve, mas será por uma boa causa.
Dito isso, o lápis se acalmou. Compreendeu o significado de sua existência. Eu começava a perceber que os objetos podiam falar, mas eram burros.
Até então, estava me virando legal com meus novos poderes. Tinha escapado com sabedoria das reclamações do espelho, do colchão e do lápis. No entanto, até ali, eles haviam falado comigo de forma educada. Deram-me espaço para argumentar. Os problemas realmente começaram quando os objetos começaram a se manifestar quase juntos. Não tive nem chance de responder.
Começou com a televisão. Dizia ela que eu só assistia porcaria. Antes que eu pudesse responder, o livro entrou na discussão, comentando que televisão era abobrinha mesmo, que conteúdo de verdade estavam em suas páginas. Enquanto o bate-boca entre os dois prosseguia, saí da sala em direção à cozinha.
Mal entrei no cômodo, a geladeira disse que estava fedendo em função dos alimentos fora da validade. Falava que merecia mais respeito da minha parte. Enquanto isso, o microondas dizia que ela não sabia o que era sofrimento. A geladeira vivia ali, naquele clima fresco, enquanto ele sofria de calor. A geladeira não tinha idéia de como era insuportável ter que se aquecer diversos graus em pleno verão.
O falatório era gigantesco. Com os dedos nos ouvidos, corri para o quarto e procurei meu protetor de ouvidos. Coloquei-os, acreditando me ver livre de tudo aquilo.
- Eca, quanta cera.
Esqueci que os protetores também eram objetos.
Pensei em sair de casa. Mas não iria adiantar. O que quer que tivesse despertado isso, não desapareceria assim. Ouviria objetos também fora de casa, tinha certeza. Precisava fazer alguma coisa.
Optei por escrever esse texto. Se eu seria levado à insanidade por esses objetos que não fecham a matraca, pelo menos deveria deixar um registro do acontecimento. Precisava contar às pessoas. Com uma capacidade de concentração fora do normal, redigi essas linhas. Talvez não tenha ficado bom, mas é o que se pode fazer com discussões, perguntas e comentários ao seu redor.
Mas não revisarei o texto. Não agüento mais este computador reclamando de cansaço no meu ouvido.
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