Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Thursday, October 30, 2008

Desapego.

Começou com a televisão. Quarenta e duas polegadas. Preta. LCD. Ainda não paga. Até foi simples. Utilizou o bastão de ferro que servia para mexer na lareira. Apenas três golpes. Dois deles diretamente na tela e um no meio, disparado na vertical, de cima para baixo. O aparelho não ofereceu a menor resistência.

Em seguida, partiu para o DVD. Última geração. Com aquele “R” de gravável. Fino, pequeno, cabia em qualquer lugar. Fácil de carregar. Não usou armas. Pegou o minúsculo equipamento com as duas mãos e lançou-o de encontro ao chão. Nem precisou de muita força. As peças voaram para todo o lado. Limparia depois.

O sofá foi a vítima seguinte. Recém-quitado. Três lugares. Desnecessário, pois morava sozinho e raramente recebia visitas. O couro ainda cheirava a novo. Foi com uma faca. Apunhalou o móvel mais de uma centena de vezes. Estripou-o. Sobraram trapos. Retalhos. Pedaços de um sofá espalhados pelo chão.

Abriu o armário. Ternos, sapatos, gravatas. Mais de cem reais por um pedaço de pano sem utilidade que envolvia o pescoço. Mais de mil reais em ternos usados não mais que três ou quatro vezes. Com tesoura na mão, picotou-os. Estes e outros mais. Todos. Sem dó. Em tiras, quadrados. Fez até bonequinhos. De seda.

Circulou pela casa. Vitimou todos os órgãos da residência nesta fúria incontrolável. Nada sobrou. Em poucos minutos, faleceram os dois computadores e todos os seus periféricos, a cama king size, o aparelho de som com milhares de megawatts. Foi-se o iPod Nano, a geladeira frost free e até o gel para cabelo.

Depois, saiu de casa. O encerramento. O grand finale. Na garagem, um Honda. Civic. Prateado. Nem cem quilômetros rodados. Nem um arranhão. Brilhava ainda. Por dentro, o típico cheiro de carro novo. Nada de papéis pelo chão ou folhetos entregues em semáforos. Impecável. Até o primeiro contato com o pé-de-cabra enferrujado.

Primeiro, no pára-brisa. Mais frágil do que se imaginava. Depois, sinaleiras. As quatro. Passou para os vidros. Portas. As quatro, também. Capô, porta-malas. Largou o pé-de-cabra para se rearmar com a faca. Rasgou os bancos de couro. O rádio, quebrou com a mão. O GPS e o DVD, também. O Honda não estava mais limpo. Mas ainda mantinha o cheiro de novo.

Terminado o serviço, saiu da garagem em direção à frente de casa. Se é que aquilo ainda poderia ser chamado assim. Nada mais havia ali dentro. Passara a vida construindo a casa perfeita. Comprando. Cada item. Só o melhor. Lançamentos. Trabalhando para ter. Agora, não tinha mais.

Sentou-se na guia da calçada. Olhou para as outras casas ao redor, com pessoas vivendo suas vidas dentro de cada uma . Olhou para a sua. Suspirou.

Surpreendeu-se.

Continuava respirando.

Continuava, talvez mais do que nunca, vivo.

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