MUNIQUE
MUNIQUE (MUNICH) *****
De Steven Spielberg. Com Eric Bana, Daniel Craig, Ciáran Hinds, Mathieu Kassovitz, Hanns Zischler, Ayelet Zorer, Geoffrey Rush e Lynn Cohen.
07/02/06 – Silvio Pilau
Tem se tornado fato corrente na carreira de Steven Spielberg realizar projetos de naturezas completamente diferentes no mesmo ano. Por “naturezas diferentes”, entenda-se uma produção comercial, voltada ao apelo popular, e outra séria, com maiores ambições artísticas. Foi o que aconteceu em 93 (Jurassic Park e A Lista de Schindler), 97 (O Mundo Perdido e Amistad) e 2002 (Prenda-me se for Capaz e Minority Report).
Em 2005, após levar multidões aos cinemas com o bacana Guerra dos Mundos, o cineasta mais bem sucedido de todos os tempos escolheu um caminho espinhoso. Munique pode até não ser o melhor ou filme mais corajoso da carreira de Spielberg, mas provavelmente é o mais maduro e ambicioso entre tudo aquilo que o diretor já fez.
A trama, livremente baseada em fatos reais, tem início nas Olimpíadas de Munique, em 1972, quando um grupo conhecido como Setembro Negro invadiu o alojamento dos atletas israelenses, em uma ação que resultou na morte de todos os reféns e de alguns terroristas. Em seguida, uma reação foi organizada pelo Mossad (algo como o Serviço Secreto Israelense) para dar uma resposta aos responsáveis pelo atentado. É aí que entra Avner, um agente convocado para eliminar um por um os terroristas sobreviventes. Para isso, ele conta a ajuda de mais quatro especialistas.
Munique demonstra a qualidade narrativa de Spielberg logo nos momentos iniciais. Intercalando perfeitamente imagens de arquivo com outras encenadas, o cineasta transmite veracidade ao que está acontecendo, jogando o espectador na história mesmo sem a presença dos personagens principais. Há uma tomada sensacional, quando Spielberg recria a cena do terrorista com a meia na cabeça olhando pela sacada, enquanto a imagem emblemática passa ao vivo na televisão do quarto.
A partir deste ponto de partida, o diretor se vale do irrepreensível roteiro de Eric Roth e Tony Kushner para construir uma obra reflexiva, emocionalmente desgastante e narrativamente intocável. Nada em Munique remete à simplicidade juvenil com a qual Spielberg ficou identificado. Quem está em ação dessa vez é um cineasta completo, que não se intimida ao optar pelo caminho mais difícil na construção de uma obra alto alcance e profundidade.
Ao contrário do que se poderia imaginar, Spielberg, em Munique não assume uma posição ou defende o povo judeu pelos atos nesta guerra que já dura décadas. Para a surpresa de muitos – e aí se justifica a afirmação de que ele optou pelo caminho mais difícil – o diretor busca esclarecer os dois lados da questão, fato simbolizado em uma belíssima cena na qual o personagem principal dialoga com um palestino a respeito das motivações de ambos os povos.
E o mais impressionante ao analisar os pontos de vista de judeus e palestinos é perceber o quanto o tema continua atual. Munique se passa no início da década de 70, mas grande parte das reflexões de cunho político propostas por Spielberg e pelos roteiristas poderiam ser ditas por pessoas que vivem o conflito ainda hoje.
Este mesmo cuidado na abordagem do tema é estendido ao desenvolvimento do personagem principal. Com um arco dramático definido e extremamente crível, Avner passa de um agente firme em seus ideais patrióticos a um homem completamente devastado pelo o que viu e presenciou, questionando não apenas seus próprios valores como tudo aquilo que foi pedido a fazer.
É fascinante acompanhar esta jornada. A princípio, Avner questiona o fato de se tornar um assassino, buscando uma espécie de desculpa moral para os atos. É o que pode ser percebido, por exemplo, quando pergunta às vítimas se elas sabem porque estão prestes a morrer, como se a resposta fosse “legitimar” o crime.
No decorrer do filme, Avner torna-se mais tranqüilo com o trabalho, agindo quase que por automação. Em certo momento, ele comenta que chegará um dia em que vai conseguir matar e dormir sem pensar no assunto. O preço, porém, vem de outra forma. Se antes ele questionava o que iria fazer, depois o personagem começa a perguntar-se porque está fazendo tudo aquilo.
Essa dúvida assola sua mente quando percebe que, à medida em que matam um homem da lista, outro acaba tomando seu lugar. Da mesma forma, a cada ato cometido pelo grupo contra os palestinos, outros diversos ocorrem contra os judeus. A questão é: qual o motivo dessa retaliação? O que estão fazendo realmente pode ajudar a chegarem a um final? Será que, realmente, este conflito terá um final? Seria esta a melhor maneira de buscar a solução para esta questão? “De que adiante cortar as unhas se elas vão crescer de novo?”, pergunta um dos personagens.
Quando chega perto do encerramento de sua trajetória, Avner é um homem completamente modificado. Arrasado, inseguro e paranóico, ele não consegue nem fazer sexo com sua esposa sem ser tomado por lembranças e reflexões (em uma cena emocionante e magistralmente orquestrada por Spielberg).
Se a construção do personagem de Avner é um dos muitos trunfos de Munique, grande parte dos méritos devem ir a Eric Bana. Aproveitando-se do material riquíssimo, o ator cresce junto com o filme. Se no início parece meio hesitante, sua atuação ganha em força quando seu personagem começa a sofrer das dúvidas e dos conflitos internos já comentados. É uma grande composição que redime Bana do fiasco de Hulk.
Munique é um filme tão ambicioso e profundo que é difícil crer que foi dirigido por Steven Spielberg. Embora seja um contador de histórias sensacional, o cineasta muitas vezes prefere procurar soluções fáceis e de agrado do público. O contrário acontece aqui. Munique é difícil de se assistir; não por ser ruim, mas por pedir muito do espectador. É uma obra que jamais cede ou apela para clichês, mostrando um cineasta excepcional em sua melhor forma.
Podemos citar como exemplo a relação entre Avner e sua família, tema corrente em grande parte da filmografia de Spielberg. Seria fácil o cineasta cair no clichê do personagem carregar a foto da esposa para onde fosse, desabando em lágrimas sempre que a enxergasse, ou algum artifício semelhante. No entanto, Spielberg trata o assunto com alta seriedade e sem resvalar em clichês. Mesmo os momentos exageradamente sentimentais, próprios de seu estilo, não encontram lugar em Munique. Se o espectador se emociona, é apenas por realmente compreender o sentimento do personagem naquele momento.
Os diálogos inteligentes e a impressionante reconstituição de época (com destaque para a fotografia descolorida de Janusz Kaminsky) criam um cenário envolvente, administrado com extrema segurança por Spielberg. São poucas as cenas que não colaboram para o desenvolvimento da história, fazendo com que Munique, mesmo com quase três horas de duração, possua uma fluidez narrativa admirável.
Da mesma forma que funciona em termos gerais, o filme também é eficiente nas cenas pontuais. Spielberg é um mestre da tensão e em Munique há diversos momentos elaborados com a maestria de quem sabe o que está fazendo. O nervosismo alcançado na seqüência envolvendo a garotinha é impressionante, bem como a explosão no apartamento (nesta segunda, confesso ter me abaixado para evitar os estilhaços, tamanho era o meu envolvimento na história).
Outro acerto da direção de Spielberg é não poupar o espectador do sangue. Em um filme como Munique, a violência é parte essencial da história e amenizá-la seria um erro grotesco. Isto não acontece e o diretor oferece cenas que impressionam pela crueza e realismo. O sangue e a dor em Munique não são nada glamourizados, realmente dando um soco no estômago da platéia (assim como o próprio Spielberg fez em O Resgate do Soldado Ryan).
Quanto às atuações, Bana não é o único destaque. Lynn Cohen deixa ótima impressão em uma rápida participação no papel de Golda Meir, representando a icônica líder como uma mulher serena, ponderada e carismática. Os integrantes do grupo de Avner igualmente estão perfeitos em seus papéis, evitando os estereótipos e construindo personagens convincentes (só como curiosidade, Daniel Craig, que interpreta Steve, é o novo James Bond).
Munique é, sem dúvida, um filme difícil. Spielberg exige muita reflexão por parte do espectador, levando a platéia a uma jornada desgastante, um sentimento que muitos compreenderão como fator negativo. Não é. O arrebatamento sentido ao término de Munique é o resultado de acompanhar uma história moral, ética e politicamente complexa, ainda relevante nos dias de hoje, que propõe diversas perguntas tanto em relação à natureza humana quando aos conflitos étnicos. Não há respostas ao final de Munique. E esta é a maior prova da maturidade alcançada por Steven Spielberg nesta obra-prima.
1 Comments:
Bons comentários, apesar de puxar demasiado o saco do Spielberg.
É mesmo um grande filme.
Post a Comment
<< Home