Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Thursday, January 19, 2006

Parte da História

- Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a sua colaboração em nome de toda a emissora. Nossos telespectadores procuram resposta há anos. Sei que é a primeira vez que vai falar sobre o assunto, não?
- Primeira vez que vou falar sobre meus motivos.
- E por que agora? Por que vinte e nove anos depois?
- Surgiu uma necessidade. Precisava contá-la.
- Que necessidade era essa?
- Vamos por partes. Deixemos isto para o final.
- Tudo bem, como o senhor quiser. Como foi a sua infância?
- Não tive infância problemática, se é isso que quer saber. Meu pai não bebia, não batia em mim ou na minha mãe, minha mãe não saía dormindo com qualquer um e eu nunca precisei roubar para comer. Não tive a típica criação de um serial killer.
- Então o senhor se considera um serial killer?
- De certa forma.
- O que quer dizer com “de certa forma”?
- Eu matei pessoas, minha querida. Mais de uma. Isso me faz um serial killer. Mas não sou um criminoso qualquer. Não tenho distúrbios psicológicos e não matei para satisfazer um instinto assassino.
- Sr. Von Hagen, desculpe-me a franqueza, mas todas as pessoas com distúrbio mental acreditam serem sãs.
- As que realmente o são também.
- E o senhor se encaixa na segunda categoria?
- Sim.
- E por que, então, matou sete pessoas?
- A culpa foi toda da polícia.
- Da polícia? Como assim?
- Digo que se não fosse a polícia, apenas uma pessoa teria morrido. Seis outras vidas poderiam ter sido salvas.
- De que forma?
- Eu só queria matar uma. Só a primeira. Mas eles foram incompetentes. Não conseguiram me pegar. Tive que continuar.
- Pela forma que o senhor fala, parece que queria ser capturado.
- Com certeza. Este era o meu objetivo.
- Seu objetivo era ir para a prisão?
- Sim. Desde o início.
- Foi por isso que matou todas estas pessoas?
- Foi por isso que matei a primeira. Matei o resto porque a polícia é estúpida.
- E por que queria ir para a prisão? Pergunto isso porque o senhor tinha uma carreira de sucesso e uma vida que parecia estável.
- E era. Estava satisfeito com a minha vida. Com exceção de algumas coisas, como acontece com todos.
- Tipo?
- Tempo. O problema todo foi tempo. Matei por causa do tempo.
- Por que tinha tempo de sobra?
- Não. Porque me faltava.
- Não sei se estou conseguindo acompanhá-lo, sr. Von Hagen. O senhor estava satisfeito com a sua vida, mas queria ir para a prisão. E agora diz que matou por que lhe faltava tempo? Qual dos dois?
- Ambos, minha querida. Matei porque indo para a prisão eu teria mais tempo.
- Tempo para que, sr. Von Hagen?
- Para ler.
- Ler?
- Sim, ler. Não arranjava tempo para ler enquanto vivia minha vida fora daqui.
- Mas ler o quê?
- Tudo. Tudo o que me dava vontade. Cada vez mais eu arranjava coisas para ler e menos tempo para terminá-las.
- E por que não se demitiu do seu emprego, simplesmente?
- E iria sobreviver como? Aqui na prisão tenho tudo o que eu preciso. Comida, cama e um acesso à biblioteca. E eu sabia que, graças à minha formação, seria tratado de forma diferente aqui dentro.
- Então o senhor matou sete pessoas para ter tempo para ler?
- Não. Já lhe disse. Matei uma pessoa com este objetivo. As outras foram culpa da polícia.
- E o senhor acha que valeu a pena? De que adianta aprender tanto e estar fora do convívio social?
- Eu aprendi para me tornar uma pessoa melhor. Não para mostrar aos outros que virei uma.
- E quando você vai saber quando se tornou esta pessoa?
- Há um trecho em um livro de Somerset Maugham no qual o personagem é questionado sobre o que fará assim que se tornar sábio. Ele responde: “Quando eu chegar lá, espero ser sábio o suficiente para saber o que fazer”. Enquanto isso, continuamos. Eu e ele.
- Então você pretende continuar na prisão por mais tempo?
- Com certeza.
- Mas ano que vem, após trinta anos, o senhor estará livre. Isso significa que pretende matar de novo quando voltar às ruas?
- Não vou voltar às ruas.
- O que pretende fazer, então?
- Arranjar minha oitava vítima aqui dentro.
- Algum preso? Um guarda?
- Não, nada disso. Meu plano já está em prática.
- Que plano é esse?
- A primeira parte era trazer alguém de fora para cá, utilizando algum pretexto.
- E como vai fazer isto?
- Isso já foi feito.
- Quer dizer que a oitava vítima já se encontra aqui na prisão?
- Sim.
- Que pretexto o senhor usou para trazê-la?
- Uma entrevista para contar minha história.
- ...
- Obrigado por ter vindo.

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