Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, June 19, 2006

A Casa

Construir uma casa é uma tarefa que demanda certo tempo. Mesmo quem é leigo pode afirmar sem medo de errar que existem várias etapas para que uma residência seja erguida de forma confiável, de modo que os moradores não fiquem com receio do teto desabar sobre suas cabeças.

Digo tudo isso para explicar que uma casa surgida durante uma noite era um fato, no mínimo, estranho. No entanto, foi o que aconteceu. Quando Bruno dirigia-se à sua própria casa, na noite de quinta-feira, o terreno baldio a duzentos metros de sua moradia continuava vazio.

Na sexta-feira, porém, Bruno se surpreendeu ao sair de casa, dirigir seu olhar para o espaço outrora inocupado e encontrar ali uma bela residência de dois pisos. Apesar de ainda estar com a mente afetada pelo sono, não foi uma alucinação. Bruno se aproximou do local e colocou a mão direita no alto portão que impedia o acesso. Pôs o rosto por entre as barras de ferro e observou.

Era uma casa de uma cor amarela desbotada, com um pequeno jardim separando a porta de entrada do lugar onde Bruno se encontrava. Bem no centro, no andar de baixo, uma porta de madeira brilhante. Aos lados e no andar de cima, grandes janelas como Bruno não via há muito tempo davam à casa um ar de tradição, mas sem parecer antiga.

Claro que Bruno não sabia o que pensar. Tudo era estranho ali, especialmente a sensação de aconchego que ele sentia ao enxergar a casa. Algo de familiar o confortava, embora não soubesse definir com exatidão o que era.

Estava atrasado e precisa ir para o trabalho. Passou o dia pensando em como seria possível alguém erguer uma casa daquelas em apenas uma noite e não conseguiu chegar à conclusão alguma. E pior, dominava-o uma inquietude, um sentimento de que, de alguma forma, aquela casa desempenhara um papel importante em sua vida.

Foi voltando do trabalho que Bruno lembrou. A casa de seu avô em São Francisco de Paula. Será? Não podia ser. Ele era apenas um garoto de uns três ou quatro anos quando freqüentava aquela casa nas grandes reuniões de família, por isso as lembranças eram escassas. Mas as poucas reverberavam em sua mente e a casa que surgira em sua rua parecia exatamente com a do seu avô.

À noite, indo para casa, Bruno desceu do ônibus o observou o local mais uma vez. A residência ainda estava lá. Pensou em bater na porta, mas algo o impediu. Talvez medo, talvez receio. Saiu correndo para a sua casa e começou a revirar os álbuns antigos de fotografia. Não encontrou uma foto da época em que a família toda freqüentava a casa do avô para as datas festivas.

Pegou o telefone e discou.

- Alô, mãe?

- Oi, Pedro. Tudo bem?

- Tudo, mãe. Diga-me uma coisa. Como era a casa do vô Astolfo?

- Como assim, Pedro?

- Descreva-a pra mim.

- Por quê?

- Por favor, mãe. Não pergunte. Preciso saber.

Um instante de silêncio.

- Isso tem a ver com a Márcia, Bruno?

- Não, mãe. Não tem a ver com a Márcia. Só me diz como era a casa do vô.

- Amarela. Dois andares. Tinha uma porta que...

À medida que sua mãe foi descrevendo, Bruno foi visualizando a casa que surgira em sua rua. Era a própria. A casa de seu vô que morrera há vinte e dois anos se materializara como que do nada perto de onde morava. Ele simplesmente não sabia o que pensar e muito menos o que fazer.

Mas só havia uma coisa a fazer. Ele teria que ir até lá.

Foi o que Bruno decidiu fazer. Com um pouco de medo, preferiu não ir durante a noite. Não sabia o que encontraria lá e era melhor não arriscar. Deixou para a manhã do outro dia.

Acordou cedo demais para um sábado. Mas não conseguia esperar. Mal dormira. Quando os primeiros raios iluminaram seu quarto, Bruno se vestiu e saiu de casa. Olhou e ela continuava lá. A misteriosa casa de seu avô.

Não havia ninguém na rua. Bruno pensou que fosse em função do horário. Seguiu em direção à casa. A cada passo dado, sua ansiedade aumentava. O que iria encontrar? Por que a casa de seu avô aparecera, como em um passe de mágica, a apenas alguns metros da sua? Quem estaria lá?

A uma curta distância da casa amarela de dois pisos, Bruno parou. A porta estava se abrindo. Sem saber se corria para se esconder ou continuava se aproximando, Bruno ficou parado. Estático no meio da rua enquanto a porta se abria. Ninguém em volta. Era a primeira movimentação que via na casa desde que percebera ela ali.

Apareceu um senhor de idade que, pela distância, Bruno não reconheceu. O idoso parou sob a porta e olhou na direção de Bruno, ainda parado no meio da rua. Para a surpresa de Bruno, o homem sorriu para ele, virou as costas e entrou novamente na casa, deixando a porta aberta.

A cabeça e o coração de Bruno não paravam. Qual o significado de tudo isso? Olhou em volta para notar, mais uma vez, que não havia ninguém na rua. Nenhum movimento exceto o seu e o da casa amarela.

Tomando coragem, caminhou em direção ao local. Quando estava a apenas alguns passos do portão de entrada, o senhor reapareceu, agora acompanhado. Era um casal de velhinhos, aproximadamente de uns oitenta anos cada um, mas aparentando estar bem fisicamente.

- Olá, Bruno – disse o homem, em uma voz suave e carinhosa.

- Oi, querido – falou a mulher.

Bruno estava parado no portão, observando incrédulo seus avós, que haviam falecido há muitos anos. Como aquilo era possível ele não sabia dizer, mas estava acontecendo. Percebeu que o medo dissipou-se totalmente ao encontrar os dois ali. Sentia-se bem.

- Vô? Vó? São vocês mesmo?

Ambos sorriram e a senhora se adiantou alguns passos.

- Somos nós, Bruno – comentou ela, com um sorriso agradável.

- Mas como é possível?

- E por que não seria?

A senhora, que Bruno conhecia como vó Leila, pegou Bruno pela mão. A mão dela era quente, ao contrário do que ele imaginava que seria a mão de uma pessoa morta. Mas ela estava morta? Não parecia.

- Entre, Bruno. Precisamos recuperar o tempo perdido – falou o vô Astolfo. – Temos muito a conversar.

Os dois levaram Bruno para o interior da casa. Apesar de não lembrar com nitidez de tudo, as escassas memórias que ainda tinha sobre o local combinavam com o que agora via.

Passaram por um grande hall de entrada, parcamente iluminado pela luz do sol. Tudo no local, dos tapetes no chão ao espelho na parede, fazia sentir que aquele era um lugar parado no tempo. Não havia nada de moderno na casa.

Entraram em uma pequena sala, com algumas cadeiras estofadas e uma mesa no centro. Sentaram-se os três e ficaram por alguns instantes sem falar nada. Bruno olhava deslumbrado, ainda sem entender o que acontecia. E, naquele momento, nem tinha certeza de que queria saber, deixando-se levar pelo momento.

- Como você está, Bruno? – Astolfo perguntou.

- Estou bem, vô. Muito bem.

- A última vez que nos vimos foi há quanto tempo? Dezenove, vinte anos?

- Acho que por aí.

- É muito tempo sem ver o neto.

Leila apenas observava a conversa, com os olhos fixos em Bruno. Ela mantinha sempre um sorriso no canto dos lábios, como se quisesse expressar uma felicidade reprimida.

- Mas conte-nos, Bruno – continuou o avô. – O que você tem feito?

Subitamente, Bruno percebeu que esta conversa não poderia seguir por este caminho comum. Nada ali era comum e ele precisava tirar isso a limpo.

- Desculpe, vô. Mas eu preciso perguntar. O que vocês estão fazendo aqui? Vocês morreram há mais de vinte anos!

Foi a vez de Leila falar.

- Morte é um conceito vago, Bruno. Você vai aprender isso.

- Como vago? Isso não é certo! Não é lógico! Eu não poderia estar tendo esta conversa com vocês.

- No entanto, está.

- Exatamente! – exclamou Bruno.

- E como explica isso?

- Eu não explico. Não sou eu quem precisa explicar. Quero que vocês me expliquem. Quero que me expliquem porque a casa de vocês surgiu na minha rua. Quero que me digam porque eu estou aqui falando com meus dois avós em cujo funeral eu fui.

- Você se preocupa demais, Bruno. Não se preocupe com o que é lógico ou com o que é certo. As coisas são muito mais fáceis para quem consegue aceitar aquilo que não entende.

Bruno levantou-se e caminhou pela sala. Enxergou uma estante com algumas fotos e foi até ela. Pôs-se a observar os retratos, incluindo alguns dele quando jovem com os avôs.

Com a voz tremida de emoção, disse:

- É muito bom rever vocês.

Astolfo e Leila levantaram-se também e foram na direção de Bruno. Ele chorava. Os dois o abraçaram e Bruno também os envolveu com seus braços.

Permaneceram assim por aproximadamente um minuto. Em seguida, voltaram a se sentar. Astolfo disse:

- Viemos aqui por causa da Márcia, Bruno.

Bruno se surpreendeu. Arregalou os olhos, espantado com o que acabara de ouvir.

- A Márcia? O que tem ela?

- Viemos aqui para contar-lhe uma notícia sobre ela.

- Mas vocês não a conheceram. Morreram muito antes de a gente se casar.

Como acontecera desde o divórcio, Bruno não se sentia confortável ao falar da ex-mulher. Ainda a amava.

- A gente sabe o quanto ela foi importante para você – disse Leila. Corrigiu em seguida: - O quanto ela ainda é importante para você.

Bruno não sabia o que dizer ou o que pensar. Permaneceu em silêncio para sua avó continuar, mas quem falou foi Astolfo.

- A gente tem acompanhado você, Bruno. Sempre. A cada passo, estamos ali. E vimos o quanto você foi feliz com a Márcia. O quanto você dependia do amor dela.

Mais uma vez, Bruno sentiu as lágrimas aflorarem.

- Aonde vocês querem chegar? – perguntou ele.

Astolfo se inclinou na cadeira, chegando mais perto de Bruno. Olhando diretamente no olho do neto, perguntou:

- Você acredita em outra vida?

Bruno respondeu, quase sem pensar:

- Não sei. Sinceramente, não sei. Mas como não acreditar quando estou falando com meus avós mortos?

Os dois velhinhos sorriram. Astolfo prosseguiu:
- Temos um recado da Márcia para você. Ela mandou dizer que sempre sentiu sua falta.

- Como assim “mandou dizer”? Onde ela está?

Leila colocou sua mão sobre a de Bruno. Disse, com um alento na voz:

- Ela veio de onde a gente veio.

- Como assim?

- Ela está morta, querido.

Bruno puxou a mão com força. Recostou-se violentamente na cadeira, como se tivesse levado um impacto. A boca permaneceu aberta, até falar com voz de puro pânico:

- Quê!?

- Ela está morta, querido – repetiu Leila.

- Como? Quando? Não pode!

- Foi há dois dias. Acidente de carro.

- Não! – pela terceira vez, Bruno chorou. Agora com muito mais força do que as outras vezes. As lágrimas doíam.

- Sim, querido. Ela nos procurou e pediu para que contássemos a você.

- Como? Por quê?

- Porque ela sabia o quanto você sempre gostou da gente. Sabia que seria melhor ouvir a notícia dos seus avôs do que de alguma outra pessoa. Por isso, viemos.

- Eu não acredito! – Bruno vociferou.

Saiu correndo em direção ao telefone. Era daqueles de discar, que Bruno não usava há tempos. Levantava o fone do gancho quando Astolfo pôs a mão no seu ombro.

- Não adianta, Bruno. Não vai funcionar. Lembre-se de que não estamos aqui.

Bruno ouviu as palavras de seu avô e se ajoelhou, ainda com o telefone na mão. Chorava compulsivamente, como se a dor fosse a única sensação em todo o seu corpo.

- Bruno – chamou Leila.

Ele não respondeu e ela repetiu:

- Bruno.

Bruno olhou para ela. O rosto estava molhado e vermelho das lágrimas.

- Ela está bem, querido. Mandou dizer que está muito bem e que sente sua falta. Que sempre o amou, mas simplesmente não deu certo entre vocês. Ela gosta muito de você, Bruno.

Nesse instante, Astolfo chegou com um copo d’água. Entregou a Bruno.

- Beba, vai lhe fazer bem.

Em apenas um gole, Bruno bebeu o líquido. Continuava chorando.

Poucos segundos depois, começou a se sentir fraco. Os olhos foram pesando e Bruno sentiu que iria perder os sentidos. Olhou uma última vez para Astolfo e Leila, seus dois avôs. Eles o observavam com um olhar que misturava pena e a mais sincera ternura.

Bruno acordou em sua casa. Levou algum tempo para relembrar tudo o que acontecera. Quando o fez, o impacto foi grande novamente.

Márcia estava morta.

Será que era verdade? Ou ele tinha sonhado com aquilo? Quanto do encontro com seus avôs era real?

Correu em direção ao telefone sem fio. Tirou-o do gancho e discou o número da casa de Márcia, que ainda conhecia de cor. Dirigiu-se à porta de sua casa. Chegou à rua e olhou para onde estava a casa de seus avôs.

Nada. Apenas o terreno baldio novamente.

Ao seu ouvido, o telefone chamava.

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