Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

Name:
Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, November 19, 2007

À moda antiga

O relógio marcava três horas da manhã quando Lúcio bateu na porta do apartamento ao lado do seu. Ao contrário do vizinho, que dormia há tempos, Lúcio ainda não pregara o olho. Estivera em casa, bebendo, pensando em Mariana e em como ela continuava dominando sua alma.

- Davi! – berrava, jogando o punho contra a porta. – Davi, abre! Davi!

Depois de alguns segundos, a porta foi aberta por um jovem magro, com os cabelos desgrenhados e vestindo pijama azul.

- Que é isso, Lúcio? Tá maluco? Sabe que horas são?

- Não importa. Preciso da tua ajuda.

- Você está bêbado, vai dormir.

- Não! – disse enfaticamente Lúcio. – Preciso do teu violão.

- Meu violão? Pra quê? – Davi perguntou, surpreso.

- Vou reconquistar a Mari.

- Com um violão?

- Com uma serenata.

- Mas você nem toca, Lúcio.

- Você se surpreenderia.

Davi conhecia o amigo e sua forma de lidar com os assuntos relacionados às mulheres. Sabia tratar-se de um sedutor irreparável, de um homem que sabia valorizar o sexo feminino. E admirava isso. Existiam poucos como Lúcio. Davi apenas sorriu e disse:

- Você não muda mesmo – e virou-se para buscar o violão.

Poucos minutos depois, Lúcio dirigia pelas ruas vazias da madrugada, com o violão no banco do carona. Em sua mente, tentava escolher uma música que se adequasse ao momento, uma que levasse Mari à loucura. Mas nada vinha. Chegou à conclusão de que o melhor seria decidir na hora. Deixar o momento agir sobre ele. Permitir que a inspiração viesse diretamente do amor que não o abandonava.

Estacionou em frente ao edifício de Mari e desceu do carro. Na calçada, perdeu alguns segundos procurando a melhor posição para tocar. Posicionou o violão junto ao corpo e começou a passar o dedo pelas cordas. Em poucos segundos, um homem que dormia enrolado em jornais perto de onde Lúcio se encontrava levantou-se e veio em sua direção. Lúcio parou, encarando o mendigo. Este o olhou de volta e sorriu, como se tivesse compreendido Lúcio em todo o seu ser. Depois, voltou para sua cama feita de lixo e continuou observando.

Lúcio tentou concentrar-se novamente no violão. Vez ou outra, carros passavam a toda velocidade pela rua, emitindo ruídos que atrapalhavam sua concentração e eliminavam toda a beleza do momento e da canção que pretendia cantar. Mas ele não desistia. Focando-se unicamente no instrumento, voltou a tirar algumas notas.

Finalmente começou a cantar. Sabia que sua voz não era das melhores, mas isso não importava. O que impressionaria Mari era o gesto. Era a atitude de amor que só continuava existindo em livros e filmes. Pôs-se a interpretar mais alto, para que ela o ouvisse.

A música acabou e nada de Mari aparecer. Determinado, Lúcio iniciou outra. Uma luz foi acesa. Mas na janela do segundo andar, que não era o de Mari. Na janela, apareceu um senhor gordo, de bigode. Gritava furiosamente:

- Você está louco!? O que quer aqui!? Caia fora! Cala essa boca senão eu chamo a polícia!

Lúcio, porém, não pretendia se entregar. Embriagado após dezenas de latas de Skol e com os limites do bom senso arruinados pela paixão, encarnou Romeu e dirigiu-se ao homem:

- Ó, alma infame! Como ousas colocar-te no caminho do amor? Que forças tens quando comparado à grandiosidade do sentimento que a tudo cria? Limita-te, ser pequeno, aos teus aposentos e deixa esta alma destruída buscar o único alimento capaz de sustê-la!

O homem não soube o que dizer ou fazer por alguns instantes. Cogitou estar diante de um louco, de um doente, mas não deixaria que esse psicótico impedisse sua noite de sono.

- Você está louco, guri! Tem cinco segundos para dar o fora daqui!

Outras pessoas já apareciam nas janelas acompanhando o que acontecia. O mendigo também observava a tudo, fascinado.

- Pois faças o que tiveres que fazer, homem insólito – exclamava Lúcio. – Nada em teu poder será capaz de me parar!

O gordo da janela desapareceu dentro do apartamento. Quando Lúcio acreditava ter vencido o embate, o homem ressurgiu. Desta vez, empunhando um revólver preto na mão direita. Apontava diretamente para Lúcio, que ficou com medo pela primeira vez.

- Saia já daqui antes que eu te dê um tiro!

- Calma, meu senhor – Lúcio pediu, mudando o tom. Seus devaneios shakesperianos sucumbiram diante da ameaça e falou com a maior sinceridade: – Só quero que a mulher a quem amo me escute.

- Não me interessa. Eu tenho que acordar cedo pra trabalhar o dia inteiro amanhã. Já inventaram o telefone, sabia?

- Mas, senhor...

O homem deu um tiro pra cima.

- Se não quiser que o próximo seja na sua cara, vá embora.

Lúcio ficou parado por alguns segundos, pensando no que fazer. Cabisbaixo, virou-se e foi em direção ao carro. Ouviu a janela do homem fechando atrás de si.

Algo parecia prestes a estourar em seu peito. Dentro do carro, pôs as duas mãos no volante e encheu os olhos de lágrimas. Não teve tempo de começar a derramá-las. Um leve som metálico ao seu lado chamou a atenção. Virou a cabeça e viu três homens apontando armas diretamente para sua cabeça.

- Desce – disse um deles.

Como um robô anestesiado, Lúcio obedeceu. Pegou o violão e saiu do carro. Não sabia se era o fato de não ter conseguido chegar até Mari, o medo por ter quatro armas apontadas para si em poucos minutos ou tudo o que bebera antes, mas sentia-se desolado. Impotente, viu os três homens saírem dirigindo seu carro, enquanto ficava na calçada, com o violão na mão direita.

Percebeu um olhar fixo em si. Era o mendigo. Lúcio olhou para aquela criatura rejeitada pela sociedade. Os olhares se fixaram um no outro por alguns segundos.

- É, meu amigo – falou o homem com roupas esfarrapadas, dormindo em meio a jornais velhos –, não há mais lugar para nós nesse mundo. Não há mais lugar para amantes à moda antiga.

2 Comments:

Blogger Anastácia Alacre said...

This comment has been removed by the author.

7:49 PM  
Blogger Anastácia Alacre said...

Fantástico.
Mas já percebeste que todos teus textos de romance têm fins infundados diante das circunstâncias que começam?
Acredito que o amor que tens recalcado aí dentro é muito maior do que qualquer mulher seja capaz de receber. Porém, deverias aprender a te doar mais, quiçá, amar mais.
Não tenhas medo de fazer serenata. Sempre há lugar para nós, amantes à moda antiga.
E não duvides que um dia alguém irá te dar o céu. Te garanto que não há de demorar.
De coração meu anjo, leio teus textos com 4 olhares diferentes. O de amiga, o de ex-futura esposa, o de fã e o de psicóloga.
Te cuida.
Beijo grande

7:50 PM  

Post a Comment

<< Home