O CAVALEIRO DAS TREVAS
BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (THE DARK KNIGHT)
De Christopher Nolan. Com Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Gary Oldman, Morgan Freeman, Eric Roberts, Michael Caine e Cillian Murphy.
Quando a primeira parte da trilogia O Senhor dos Anéis foi lançada, já no longínquo 2001, ficou claro que Peter Jackson havia alcançado um feito monumental. O neozelandês, com sua brilhante visão da saga de J.R.R. Tolkien, não apenas ressuscitou o gênero fantasia, como o elevou a um nível tão alto que nenhuma outra produção conseguiu alcançá-lo desde então – o que provavelmente não acontecerá por muito tempo. As batalhas magníficas, a jornada emocional e um incrível respeito pela mitologia criada pelo escritor inglês fizeram com que o épico de nove horas de Peter Jackson se tornasse referência, exemplo a ser seguido e batido por quem se aventurar pelo gênero.
Pois Batman – O Cavaleiro das Trevas é para cinema de super-heróis o que O Senhor dos Anéis foi para o de fantasia. De forma rápida e direta, é o melhor filme já realizado dentro do gênero que mais dinheiro arrecada hoje em dia, o que provavelmente colocará em apuros futuras produções. O trabalho de Christopher Nolan é uma obra ambiciosa, pesada e de alcance épico que, ironicamente, encontra sua força exatamente por não parecer um filme de super-herói. Moralmente complexa, emocionalmente exaustiva e inesperadamente densa para uma superprodução norte-americana, O Cavaleiro das Trevas é a continuação perfeita para o já ótimo Batman Begins e, desde já, um dos grandes filmes dos últimos anos, quebrando qualquer barreira que o gênero impunha.
Mas vamos com calma. Quando O Cavaleiro das Trevas tem início, Gotham City encontra-se dividida entre os que consideram Batman um herói e aqueles que vêem como um vilão. Atormentado por esta reação do público, Bruce Wayne não vê a hora de desistir da vida de justiceiro e viver ao lado de sua amada Rachel Dawes. A esperança surge na figura do promotor público Harvey Dent, que decide agir contra o crime organizado com a ajuda do homem-morcego e do chefe de polícia Gordon. É quando um novo criminoso chamado Coringa chega promovendo um verdadeiro caos na cidade, vendendo seus serviços aos mafiosos com a promessa de resolver os problemas deles ao eliminar Batman de uma vez por todas.
Dando continuidade à abordagem psicológica desenvolvida com sucesso em Batman Begins, Christopher Nolan (a partir de um roteiro escrito por ele mesmo e seu irmão Jonathan) novamente assume um tom realista e vira seu foco para os personagens e a história. Ainda que O Cavaleiro das Trevas esteja repleto de ótimas cenas de ação, é a capacidade de Nolan em apresentar seres humanos complexos em conflito com seus próprios demônios, bem como levantar questões essenciais à natureza humana, que dão o tom do filme – abordagem, aliás, recorrente na carreira do cineasta, vide seus trabalhos anteriores, como Amnésia e Insônia, histórias ricas em personagens angustiados e com um lado sombrio proeminente.
Nesta seqüência, Nolan constrói sua obra sobre três personagens principais: Bruce/Batman, Harvey Dent e Coringa. É a partir desta pirâmide que todo o resto se desenvolve, em uma crescente de desespero e angústia capaz de revelar a complexidade do ser humano e de tudo o que o cerca. Batman, por exemplo, como apresentado no filme anterior, não é somente um justiceiro mascarado, mas um homem incrivelmente traumatizado, que precisa conviver com seus próprios problemas enquanto combate nas ruas. Agora Bruce Wayne encontra-se cansado do “serviço” e, acima de tudo, decepcionado pela imagem que as pessoas construíram de Batman. “Não era isso o que eu esperava quando quis inspirar o bem”, diz ele em certo momento. O peso da responsabilidade o atormenta e cresce gradativamente até o estágio em que fica difícil suportá-lo. “Ou você morre como herói ou vive o bastante para se tornar o vilão”, diz alguém.
E a alma atormentada de Wayne é encarnada impecavelmente por Christian Bale. Ator extremamente talentoso, capaz de representar de forma extremamente eficaz sem qualquer espécie de afetação, Bale é a incorporação definitiva de Batman, dando um passo além do que já havia construído em Batman Begins. Se antes o que mais importava era a transformação, o fundamental agora é demonstrar a carga imensa depositada sobre os ombros do personagem, fato que Bale tira de letra. Mais do que isso, o intérprete ainda se sai muito bem sob o uniforme, atento inclusive a detalhes como a mudança do tom de voz, de forma a preservar a identidade do vigilante – o que no início causa estranheza, mas é perfeito dentro da proposta realista do filme.
No entanto, se o arco dramático de Bruce Wayne é reduzido em O Cavaleiro das Trevas, o promotor público Harvey Dent preenche a lacuna. Desejoso de transferir a responsabilidade para alguém honesto e com coragem de enfrentar a escória de Gotham, Wayne encontra em Dent um símbolo de esperança, um homem no qual os cidadãos podem e devem confiar. Esta é uma das tramas principais do roteiro de O Cavaleiro das Trevas, dando espaço para a importância de Harvey Dent na trama. E, neste sentido, Dent torna-se o personagem com a jornada mais bem definida da produção, uma vez que termina o filme uma pessoa completamente diferente daquela do início.
Sua trajetória – que é a representação máxima de um dos principais temas discutidos pelo roteiro, a tênue linha entre o bem o mal – precisava de uma abordagem cuidadosa para não soar falsa. É aí que surge o talento de Aaron Eckhart. Com o material riquíssimo dos irmãos Nolan e sob a batuta segura do diretor, Eckhart jamais permite que sua modificação se torne brusca ou forjada. Muito pelo contrário, é visível no rosto de Eckhart que as ações futuras de Harvey Dent são resultado unicamente de uma fúria por tudo o que aconteceu, um desejo de vingança com a qual ele não se sente bem em levar à prática.
Chegamos, enfim, ao grande achado de O Cavaleiro das Trevas: o Coringa de Heath Ledger. Se o principal problema de Batman Begins era a falta de um antagonista à altura do herói, aqui o problema está resolvido. Desenvolvido com muita inteligência por Nolan e Ledger – que acertaram ao não apresentar, e até confundir, as origens do personagem, tornando-o ainda mais imprevisível e assustador –, o Coringa é o dono do filme, um verdadeiro anarquista ou, como ele próprio se classifica, “um agente do caos”. Sádico, brilhante, cruel e divertido, o Coringa de O Cavaleiro das Trevas em nada lembra aquele composto por Jack Nicholson no filme de Tim Burton; aqui, ele é um doente imprevisível, capaz de fazer qualquer coisa simplesmente pelo prazer de “ver o circo pegar fogo”.
Interpretando Coringa com uma mistura da anarquia de Tyler Durden (Clube da Luta), o sadismo de Mickey Knox (Assassinos por Natureza) e a demência de Sid Vicious, Heath Ledger entrega, provavelmente, a interpretação mais surpreendente desde que Johnny Depp quebrou todas as expectativas com o Jack Sparrow de Piratas do Caribe. Com voz anasalada e repleto de trejeitos que o fazem lembrar um animal em seus mais primitivos instintos, como a repulsiva forma com que passa a língua nos lábios, Ledger compõe um verdadeiro e perigoso inconseqüente, que se diverte promovendo o caos (“Eu adoro este trabalho!”). Ao mesmo tempo que causa repulsa e nervosismo, Ledger atrai o olhar do espectador, que fica tenso pela sua próxima ação, porém fascinado pela imagem perturbadora daquele ser. Uma grande atuação e um vilão já antológico.
Porém, não é só na construção dos personagens que Nolan demonstra um olhar diferenciado, mas também na relação entre eles. Este, em essência, é o verdadeiro núcleo de O Cavaleiro das Trevas e a partir de onde se sustenta toda a estrutura do filme. A dicotomia entre Batman e o Coringa, por exemplo, é nada menos que genial, diferente de qualquer outro antagonismo já desenvolvido entre herói/bandido. O palhaço nada mais é do que uma conseqüência das ações do morcego – e as mortes originadas por isso são outro peso para Wayne – e a genialidade doentia do primeiro só encontra sentido com um oponente à altura, como Batman. Aliás, é daí que sai uma das melhores falas do filme, quando o Coringa diz para o herói: “Você me completa”. Quem diria que o palhaço do crime seria fã de Jerry Maguire?
O Cavaleiro das Trevas, porém, não é uma obra reflexiva e arrastada, procupada apenas em desenvolver os personagens. A trama que impulsiona tais relações é igualmente elaborada e surpreendente, uma verdadeira e grandiosa saga sobre o crime nos moldes de grandes clássicos do cinema policial. Há de tudo no roteiro dos Nolan, desde corrupção policial, presença da máfia e as conseqüências desta existência na vida das famílias das vítimas. É um enredo gigantesco, tanto em acontecimentos quanto em pretensos, repleto de reviravoltas, com dezenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo e centenas de personagens ganhando a tela e com papel crucial na narrativa. E o melhor: tudo amarrado de forma magistral, sem uma única subtrama sobrando ou causando tédio.
E aí entra, novamente, o talento de Chistopher Nolan como diretor. À medida que as ações e os acontecimentos vão se acumulando, tudo parece se encaminhar para um desastre total, tanto na história quanto no próprio filme. O segundo jamais acontece. O clima de caos total que o Coringa faz despertar em Gotham não reflete na narrativa, exemplarmente dominada pela mão firme de Nolan. O cineasta tem o controle completo daquilo que quer transmitir e jamais dá um passo em falso, construindo a obra em um crescendo de emoções e reflexões que fazem o espectador se questionar se aquilo que está na tela é realmente um filme de super-herói ou um drama de contundente força emocional.
Muito disso se deve também à já citada ambientação realista proposta por Nolan. Ao tratar seus personagens como pessoas reais, com defeitos e problemas, O Cavaleiro das Trevas se aproxima de nosso mundo, causando identificação imediata com a platéia. Bruce Wayne, por exemplo, é um homem repleto de feridas – tanto físicas quanto psicológicas –, portanto vulnerável, e não um super-herói com poderes. Desta forma, a tensão aumenta e as emoções crescem, fato realçado também pela opção do cineasta em filmar as cenas da forma mais orgânica possível, apelando para computação gráfica somente quando estritamente necessária. Assim, O Cavaleiro das Trevas assume um clima sujo, real, de verdadeiro perigo, como se a vida de todos os personagens estivesse constantemente ameaçada.
Nolan ainda demonstra imensa qualidade no aspecto técnico da produção. Desde a impressionante direção de arte à fotografia escura, representando os sentimentos dos personagens, O Cavaleiro das Trevas é um primor. Mais do que isso, o cineasta constrói planos com inteligência e filma algumas cenas de maneira brilhante, sejam as seqüências de ação (como a espetacular pirueta do caminhão), sejam os momentos mais íntimos (como a maneira como retrata Wayne sofrendo uma morte, sentado em sua mansão com a cidade que ousou proteger e que muito lhe custou em segundo plano). No entanto, o meu momento favorito é a maravilhosa explosão de um hospital, uma cena fabulosa que parece ter sido realizada em curto plano-seqüência, contando também com a inspirada presença em cena de Ledger.
Mas ainda há mais, muito mais em O Cavaleiro das Trevas. Deixando de lado a superficialidade da maioria dos filmes do gênero e ousando vôos ainda mais altos que o já inteligente X-Men 2, a produção se aprofunda não apenas na mente e nos corações tortuosos de seus personagens, mas também em densas questões de moral e ética. Em O Cavaleiro das Trevas, não há a simples diferenciação entre o bem e o mal. Ao contrário, o que o filme defende é que todo ser humano é capaz dos atos mais sórdidos quando impulsionado – na realidade, esta parece ser a verdadeira e única motivação do Coringa, que se extasia ao levar um dos personagens à perdição e ao colocar milhares de pessoas de dois barcos em contato com o lado mais escuro de suas naturezas.
Como conseqüência, O Cavaleiro das Trevas não se resume a heróis combatendo os vilões para livrar a sociedade de um plano maligno. Nada no filme é simples assim. Aliás, nem os próprios mocinhos e bandidos são tão bem definidos, com um sempre trazendo dentro de si algo que deveria pertencer ao outro. Todos os atos têm conseqüências, muitas vezes trágicas, os sentimentos se atropelam e o sacrifício não é um ato honrado, mas uma opção dolorosa, que traz cicatrizes. Além disso, existem fortes críticas sociais, como a invasão de privacidade, outro momento no qual as questões éticas são trazidas à tona, desta vez através do sempre correto e sensato Lucius Fox.
E já que mencionei isto, o espaço dedicado aos personagens secundários é igualmente expandido em relação a Batman Begins. Em O Cavaleiro das Trevas, todos têm oportunidade de brilhar e desempenhar algum papel na trama, ao invés de apenas figurar como coadjuvantes de luxo. Isto vale tanto para o já citado Lucius Fox, quanto para a Rachel Dawes de Maggie Gyllenhal, o Alfred do impecável Michael Caine e o comissário Gordon, interpretado de forma eficaz por Gary Oldman. Mais do que isso, o roteiro ainda guarda grandes frases, desde as que já nascem clássicas (“Por que tão sério?”) àquelas que parecem ter sido retiradas de uma grande obra de literatura ( “A noite é sempre mais escura antes do amanhecer”, belíssima e perfeita dentro do contexto da obra).
Exceto por um outro exagero desnecessário, O Cavaleiro das Trevas é uma verdadeira obra-prima e o melhor filme do ano até aqui ao lado do igualmente ambicioso Sangue Negro. Quem espera um filme-pipoca para levar as crianças vai se surpreender ao encontrar uma obra pesada, profundamente reflexiva e que exige muito do espectador em termos emocionais. O sentimento ao final da sessão não é a de ter assistido um superprodução bacana, mas de ter passado por uma experiência difícil, tamanha a carga dramática do filme. O Cavaleiro das Trevas não é um filme de super-heróis, mas um conto moral sobre culpa, crime, maldade e a verdadeira natureza do ser humano. Apenas acontece de, no meio, ter um maluco correndo e pulando de máscara e capa preta.
Nota: 9.5
De Christopher Nolan. Com Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Gary Oldman, Morgan Freeman, Eric Roberts, Michael Caine e Cillian Murphy.
Quando a primeira parte da trilogia O Senhor dos Anéis foi lançada, já no longínquo 2001, ficou claro que Peter Jackson havia alcançado um feito monumental. O neozelandês, com sua brilhante visão da saga de J.R.R. Tolkien, não apenas ressuscitou o gênero fantasia, como o elevou a um nível tão alto que nenhuma outra produção conseguiu alcançá-lo desde então – o que provavelmente não acontecerá por muito tempo. As batalhas magníficas, a jornada emocional e um incrível respeito pela mitologia criada pelo escritor inglês fizeram com que o épico de nove horas de Peter Jackson se tornasse referência, exemplo a ser seguido e batido por quem se aventurar pelo gênero.
Pois Batman – O Cavaleiro das Trevas é para cinema de super-heróis o que O Senhor dos Anéis foi para o de fantasia. De forma rápida e direta, é o melhor filme já realizado dentro do gênero que mais dinheiro arrecada hoje em dia, o que provavelmente colocará em apuros futuras produções. O trabalho de Christopher Nolan é uma obra ambiciosa, pesada e de alcance épico que, ironicamente, encontra sua força exatamente por não parecer um filme de super-herói. Moralmente complexa, emocionalmente exaustiva e inesperadamente densa para uma superprodução norte-americana, O Cavaleiro das Trevas é a continuação perfeita para o já ótimo Batman Begins e, desde já, um dos grandes filmes dos últimos anos, quebrando qualquer barreira que o gênero impunha.
Mas vamos com calma. Quando O Cavaleiro das Trevas tem início, Gotham City encontra-se dividida entre os que consideram Batman um herói e aqueles que vêem como um vilão. Atormentado por esta reação do público, Bruce Wayne não vê a hora de desistir da vida de justiceiro e viver ao lado de sua amada Rachel Dawes. A esperança surge na figura do promotor público Harvey Dent, que decide agir contra o crime organizado com a ajuda do homem-morcego e do chefe de polícia Gordon. É quando um novo criminoso chamado Coringa chega promovendo um verdadeiro caos na cidade, vendendo seus serviços aos mafiosos com a promessa de resolver os problemas deles ao eliminar Batman de uma vez por todas.
Dando continuidade à abordagem psicológica desenvolvida com sucesso em Batman Begins, Christopher Nolan (a partir de um roteiro escrito por ele mesmo e seu irmão Jonathan) novamente assume um tom realista e vira seu foco para os personagens e a história. Ainda que O Cavaleiro das Trevas esteja repleto de ótimas cenas de ação, é a capacidade de Nolan em apresentar seres humanos complexos em conflito com seus próprios demônios, bem como levantar questões essenciais à natureza humana, que dão o tom do filme – abordagem, aliás, recorrente na carreira do cineasta, vide seus trabalhos anteriores, como Amnésia e Insônia, histórias ricas em personagens angustiados e com um lado sombrio proeminente.
Nesta seqüência, Nolan constrói sua obra sobre três personagens principais: Bruce/Batman, Harvey Dent e Coringa. É a partir desta pirâmide que todo o resto se desenvolve, em uma crescente de desespero e angústia capaz de revelar a complexidade do ser humano e de tudo o que o cerca. Batman, por exemplo, como apresentado no filme anterior, não é somente um justiceiro mascarado, mas um homem incrivelmente traumatizado, que precisa conviver com seus próprios problemas enquanto combate nas ruas. Agora Bruce Wayne encontra-se cansado do “serviço” e, acima de tudo, decepcionado pela imagem que as pessoas construíram de Batman. “Não era isso o que eu esperava quando quis inspirar o bem”, diz ele em certo momento. O peso da responsabilidade o atormenta e cresce gradativamente até o estágio em que fica difícil suportá-lo. “Ou você morre como herói ou vive o bastante para se tornar o vilão”, diz alguém.
E a alma atormentada de Wayne é encarnada impecavelmente por Christian Bale. Ator extremamente talentoso, capaz de representar de forma extremamente eficaz sem qualquer espécie de afetação, Bale é a incorporação definitiva de Batman, dando um passo além do que já havia construído em Batman Begins. Se antes o que mais importava era a transformação, o fundamental agora é demonstrar a carga imensa depositada sobre os ombros do personagem, fato que Bale tira de letra. Mais do que isso, o intérprete ainda se sai muito bem sob o uniforme, atento inclusive a detalhes como a mudança do tom de voz, de forma a preservar a identidade do vigilante – o que no início causa estranheza, mas é perfeito dentro da proposta realista do filme.
No entanto, se o arco dramático de Bruce Wayne é reduzido em O Cavaleiro das Trevas, o promotor público Harvey Dent preenche a lacuna. Desejoso de transferir a responsabilidade para alguém honesto e com coragem de enfrentar a escória de Gotham, Wayne encontra em Dent um símbolo de esperança, um homem no qual os cidadãos podem e devem confiar. Esta é uma das tramas principais do roteiro de O Cavaleiro das Trevas, dando espaço para a importância de Harvey Dent na trama. E, neste sentido, Dent torna-se o personagem com a jornada mais bem definida da produção, uma vez que termina o filme uma pessoa completamente diferente daquela do início.
Sua trajetória – que é a representação máxima de um dos principais temas discutidos pelo roteiro, a tênue linha entre o bem o mal – precisava de uma abordagem cuidadosa para não soar falsa. É aí que surge o talento de Aaron Eckhart. Com o material riquíssimo dos irmãos Nolan e sob a batuta segura do diretor, Eckhart jamais permite que sua modificação se torne brusca ou forjada. Muito pelo contrário, é visível no rosto de Eckhart que as ações futuras de Harvey Dent são resultado unicamente de uma fúria por tudo o que aconteceu, um desejo de vingança com a qual ele não se sente bem em levar à prática.
Chegamos, enfim, ao grande achado de O Cavaleiro das Trevas: o Coringa de Heath Ledger. Se o principal problema de Batman Begins era a falta de um antagonista à altura do herói, aqui o problema está resolvido. Desenvolvido com muita inteligência por Nolan e Ledger – que acertaram ao não apresentar, e até confundir, as origens do personagem, tornando-o ainda mais imprevisível e assustador –, o Coringa é o dono do filme, um verdadeiro anarquista ou, como ele próprio se classifica, “um agente do caos”. Sádico, brilhante, cruel e divertido, o Coringa de O Cavaleiro das Trevas em nada lembra aquele composto por Jack Nicholson no filme de Tim Burton; aqui, ele é um doente imprevisível, capaz de fazer qualquer coisa simplesmente pelo prazer de “ver o circo pegar fogo”.
Interpretando Coringa com uma mistura da anarquia de Tyler Durden (Clube da Luta), o sadismo de Mickey Knox (Assassinos por Natureza) e a demência de Sid Vicious, Heath Ledger entrega, provavelmente, a interpretação mais surpreendente desde que Johnny Depp quebrou todas as expectativas com o Jack Sparrow de Piratas do Caribe. Com voz anasalada e repleto de trejeitos que o fazem lembrar um animal em seus mais primitivos instintos, como a repulsiva forma com que passa a língua nos lábios, Ledger compõe um verdadeiro e perigoso inconseqüente, que se diverte promovendo o caos (“Eu adoro este trabalho!”). Ao mesmo tempo que causa repulsa e nervosismo, Ledger atrai o olhar do espectador, que fica tenso pela sua próxima ação, porém fascinado pela imagem perturbadora daquele ser. Uma grande atuação e um vilão já antológico.
Porém, não é só na construção dos personagens que Nolan demonstra um olhar diferenciado, mas também na relação entre eles. Este, em essência, é o verdadeiro núcleo de O Cavaleiro das Trevas e a partir de onde se sustenta toda a estrutura do filme. A dicotomia entre Batman e o Coringa, por exemplo, é nada menos que genial, diferente de qualquer outro antagonismo já desenvolvido entre herói/bandido. O palhaço nada mais é do que uma conseqüência das ações do morcego – e as mortes originadas por isso são outro peso para Wayne – e a genialidade doentia do primeiro só encontra sentido com um oponente à altura, como Batman. Aliás, é daí que sai uma das melhores falas do filme, quando o Coringa diz para o herói: “Você me completa”. Quem diria que o palhaço do crime seria fã de Jerry Maguire?
O Cavaleiro das Trevas, porém, não é uma obra reflexiva e arrastada, procupada apenas em desenvolver os personagens. A trama que impulsiona tais relações é igualmente elaborada e surpreendente, uma verdadeira e grandiosa saga sobre o crime nos moldes de grandes clássicos do cinema policial. Há de tudo no roteiro dos Nolan, desde corrupção policial, presença da máfia e as conseqüências desta existência na vida das famílias das vítimas. É um enredo gigantesco, tanto em acontecimentos quanto em pretensos, repleto de reviravoltas, com dezenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo e centenas de personagens ganhando a tela e com papel crucial na narrativa. E o melhor: tudo amarrado de forma magistral, sem uma única subtrama sobrando ou causando tédio.
E aí entra, novamente, o talento de Chistopher Nolan como diretor. À medida que as ações e os acontecimentos vão se acumulando, tudo parece se encaminhar para um desastre total, tanto na história quanto no próprio filme. O segundo jamais acontece. O clima de caos total que o Coringa faz despertar em Gotham não reflete na narrativa, exemplarmente dominada pela mão firme de Nolan. O cineasta tem o controle completo daquilo que quer transmitir e jamais dá um passo em falso, construindo a obra em um crescendo de emoções e reflexões que fazem o espectador se questionar se aquilo que está na tela é realmente um filme de super-herói ou um drama de contundente força emocional.
Muito disso se deve também à já citada ambientação realista proposta por Nolan. Ao tratar seus personagens como pessoas reais, com defeitos e problemas, O Cavaleiro das Trevas se aproxima de nosso mundo, causando identificação imediata com a platéia. Bruce Wayne, por exemplo, é um homem repleto de feridas – tanto físicas quanto psicológicas –, portanto vulnerável, e não um super-herói com poderes. Desta forma, a tensão aumenta e as emoções crescem, fato realçado também pela opção do cineasta em filmar as cenas da forma mais orgânica possível, apelando para computação gráfica somente quando estritamente necessária. Assim, O Cavaleiro das Trevas assume um clima sujo, real, de verdadeiro perigo, como se a vida de todos os personagens estivesse constantemente ameaçada.
Nolan ainda demonstra imensa qualidade no aspecto técnico da produção. Desde a impressionante direção de arte à fotografia escura, representando os sentimentos dos personagens, O Cavaleiro das Trevas é um primor. Mais do que isso, o cineasta constrói planos com inteligência e filma algumas cenas de maneira brilhante, sejam as seqüências de ação (como a espetacular pirueta do caminhão), sejam os momentos mais íntimos (como a maneira como retrata Wayne sofrendo uma morte, sentado em sua mansão com a cidade que ousou proteger e que muito lhe custou em segundo plano). No entanto, o meu momento favorito é a maravilhosa explosão de um hospital, uma cena fabulosa que parece ter sido realizada em curto plano-seqüência, contando também com a inspirada presença em cena de Ledger.
Mas ainda há mais, muito mais em O Cavaleiro das Trevas. Deixando de lado a superficialidade da maioria dos filmes do gênero e ousando vôos ainda mais altos que o já inteligente X-Men 2, a produção se aprofunda não apenas na mente e nos corações tortuosos de seus personagens, mas também em densas questões de moral e ética. Em O Cavaleiro das Trevas, não há a simples diferenciação entre o bem e o mal. Ao contrário, o que o filme defende é que todo ser humano é capaz dos atos mais sórdidos quando impulsionado – na realidade, esta parece ser a verdadeira e única motivação do Coringa, que se extasia ao levar um dos personagens à perdição e ao colocar milhares de pessoas de dois barcos em contato com o lado mais escuro de suas naturezas.
Como conseqüência, O Cavaleiro das Trevas não se resume a heróis combatendo os vilões para livrar a sociedade de um plano maligno. Nada no filme é simples assim. Aliás, nem os próprios mocinhos e bandidos são tão bem definidos, com um sempre trazendo dentro de si algo que deveria pertencer ao outro. Todos os atos têm conseqüências, muitas vezes trágicas, os sentimentos se atropelam e o sacrifício não é um ato honrado, mas uma opção dolorosa, que traz cicatrizes. Além disso, existem fortes críticas sociais, como a invasão de privacidade, outro momento no qual as questões éticas são trazidas à tona, desta vez através do sempre correto e sensato Lucius Fox.
E já que mencionei isto, o espaço dedicado aos personagens secundários é igualmente expandido em relação a Batman Begins. Em O Cavaleiro das Trevas, todos têm oportunidade de brilhar e desempenhar algum papel na trama, ao invés de apenas figurar como coadjuvantes de luxo. Isto vale tanto para o já citado Lucius Fox, quanto para a Rachel Dawes de Maggie Gyllenhal, o Alfred do impecável Michael Caine e o comissário Gordon, interpretado de forma eficaz por Gary Oldman. Mais do que isso, o roteiro ainda guarda grandes frases, desde as que já nascem clássicas (“Por que tão sério?”) àquelas que parecem ter sido retiradas de uma grande obra de literatura ( “A noite é sempre mais escura antes do amanhecer”, belíssima e perfeita dentro do contexto da obra).
Exceto por um outro exagero desnecessário, O Cavaleiro das Trevas é uma verdadeira obra-prima e o melhor filme do ano até aqui ao lado do igualmente ambicioso Sangue Negro. Quem espera um filme-pipoca para levar as crianças vai se surpreender ao encontrar uma obra pesada, profundamente reflexiva e que exige muito do espectador em termos emocionais. O sentimento ao final da sessão não é a de ter assistido um superprodução bacana, mas de ter passado por uma experiência difícil, tamanha a carga dramática do filme. O Cavaleiro das Trevas não é um filme de super-heróis, mas um conto moral sobre culpa, crime, maldade e a verdadeira natureza do ser humano. Apenas acontece de, no meio, ter um maluco correndo e pulando de máscara e capa preta.
Nota: 9.5
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3 Comments:
Ui, não me contaaaaaaa...
Ainda tô louca pra ir assistir.
Beijão
eu amei....
batman lindo, coringa incrível.
Concordo contigo, Silvio.
Depois do filme, ainda ficamos algum tempo pra conectar cada peça no seu lugar.
Fiquei dias só pensando no filme... e a cada pouco surgia um "Aaaah, entendi."
Excelente atores.
E num filme assim, percebe-se a falta que Heath fará aos nosso olhos.
Parabéns!
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