Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Friday, March 27, 2009

Espera.

Jéssica acordou com frio. Uma sensação gélida percorria seu corpo, fazendo-a tremer o maxilar. Tentou se mexer, mas não conseguiu. Assim que forçou um movimento, sentiu dor. Dor nos músculos dos braços, dor nas pernas. Dor no lado esquerdo da cabeça, como se tivesse levado uma pancada. Abriu a boca para gritar, igualmente sem resultado.

Respirou fundo e tentou a entender o que acontecia.

Estava nua, deitada dentro de algo que parecia ser uma banheira. O frio que sentia vinha do contato da superfície fria da porcelana contra a sua pele desnuda. Seus braços tinham sido amarrados para trás, assim como as pernas. A corda era áspera e machucava seus pulsos e canelas. Na boca, uma mordaça não a deixava emitir sons.

Jéssica estava imóvel. Apenas seus olhos estavam livres e podiam se mexer sem problemas. Mas, de sua posição imobilizada, ela não conseguia se erguer acima do topo da banheira para enxergar algo.

O desespero começou a tomar conta de Jéssica. As lágrimas afloraram mesmo contra a sua vontade. O que teria acontecido? Não lembrava de nada. Sua última recordação era estar entrando no carro após ter parado no supermercado. Depois, nada.

Ficou com medo. Parecia ter sido sequestrada. Mas, por quem? Por quê? Jéssica começou se mexer. A gritar. Mesmo sem resultados, continuou. Precisava fazer algo. Necessitava sair daquele lugar. Não podia continuar ali, à mercê do que quer que estivesse para acontecer. Seguiu tentando se mover. O corpo doía todo, provavelmente pelo longo tempo permanecido na posição desconfortável. A cabeça latejava, como se estivesse sendo constantemente alvejada por algo pesado.

Finalmente, conseguiu alguma coisa. Não se libertou das cordas, mas teve sucesso em se arrastar até a borda da banheira. Ergueu-se o máximo que pôde. Enfim, seus olhos conseguiam, ao menos, enxergar o lugar onde estava presa.

Era um banheiro. Das duas lâmpadas no teto, apenas uma estava completamente acesa. A outra, quebrada, ligava e desligava em intervalos constantes. Uma porta com madeira rachada permanecia fechada a poucos metros de Jéssica. No lado oposto de onde se encontrava, uma pia velha posicionava-se abaixo de um pequeno armário com espelho quebrado. O chão era sujo, com marcas vermelhas e algo que parecia ser areia.

Jéssica gritou mais uma vez. Clamava por socorro, mas apenas grunhidos saíam através da mordaça. Chorou novamente, enquanto se esforçava para escapar de dentro da banheira. Tentou de todas as formas. Por longos minutos, fez o máximo de esforço que pôde para se livrar das amarras.

Desistiu, exausta. Não havia o que pudesse fazer.

Poucos minutos após, ouviu passos.

Eram ruídos pesados, que faziam ranger a madeira do assoalho e tremer a casa toda.

Os passos foram ficando cada vez mais fortes. Então, a porta se abriu.

Jéssica pensou em voltar para a posição inicial na banheira, escondida. Mas não faria diferença. Quem quer que estivesse entrando, sabia que ela estava ali. Provavelmente, teria sido o responsável por Jéssica estar naquela posição. Por isso, não se mexeu. Apenas observou.

Dois homens entraram. Sérios, feios, sujos. Jéssica mais uma vez tremeu de medo. Se ainda tinha esperanças de que eles pudessem ser pessoas civilizadas, tudo se dissipou ao bater os olhos naqueles dois. O que entrou primeiro era um pouco gordo, careca e vestia uma camiseta sem mangas e calças jeans, com os pés descalços. O de trás era um pouco mais apresentável. Alto, porte ereto, barba rala. Vestia calça social e uma camisa azul clara e carregava uma pasta.

Praticamente sem respirar, Jéssica acompanhou o movimento dos dois. Eles nem olharam para ela. Pareciam não saber que ela estava ali. Ou, simplesmente, não davam a menor importância. Jéssica olhou quando o mais magro colocou a mala sobre a pia. O gordo parou ao lado dele e bloqueou a visão de Jéssica. Eles pareciam retirar algumas coisas de dentro, coisas que Jéssica não conseguia ver o que era.
- Como vamos fazer? – perguntou o gordo.

- Como sempre fizemos – o outro respondeu, desanimado.

Permaneceram em silêncio por alguns instantes, esvaziando a pasta. Jéssica pôde ver algo brilhante e prateado sendo colocado sobre a pia, mas não conseguiu definir a forma.

O gordo falou novamente:

- Me dá uns minutos antes com ela. Não precisa muito. Só eu e ela um pouco.

O outro não se manifestou. Apenas olhou nos olhos do companheiro, como se dissesse: “De novo com esse papo?”

- Cinco minutos. Só isso – insistiu o gordo.

Sem resposta, o gordo começou a se exaltar. Deu um soco na pia e esbravejou:

- Porra! Por que tem que ser sempre como você quer? Sempre foi assim, desde quando éramos crianças! Você sempre me dizia o que fazer e eu ia lá e fazia! Não pode ser uma vez como eu quero!?

De forma praticamente instantânea, o magro deu um tapa na cara do gordo. Com a parte de fora da mão, esbofeteou o rosto do outro, que deu dois passos para trás e olhou para seu agressor, assustado.

- Chega! – exclamou o magro. Depois, mais calmo: – Sempre foi como eu quis porque eu sei o que fazer. Se não fosse por mim, já teríamos sido pegos. Então, cale a boca e faça o que eu mandar.

O gordo parecia ter se acalmado. A mão esquerda estava na face, aquecendo o local onde havia levado a pancada. Ele permanecia olhando, com o rosto repleto de medo, para aquele que Jéssica imaginava, agora, ser o irmão. Parecia submisso ao outro.

Então, pela primeira vez, o gordo olhou para Jéssica.

Instintivamente, Jéssica desviou o olhar. Um sentimento de vulnerabilidade passou por seu corpo. Estava nua, amarrada, à mercê de dois homens que não conhecia. Dois homens que, certamente, planejavam fazer algo com ela.

As lágrimas novamente encheram os olhos. Voltou o olhar na direção dos homens e viu o gordo. Agora, ele não estava mais com medo. Estava em pé, confiante, certo de si. Tinha uma expressão assustadora no rosto e olhava fixamente ao magro, que estava de costas para ele.

Lentamente, retirou algo do bolso de sua calça suja.

Uma faca.

Jéssica arregalou os olhos. Voltou a se debater dentro da banheira, gritando. Nada mais do que ruídos.

- Faça ela calar a boca – disse o magro para o irmão.

O gordo não hesitou. Mal o irmão terminou a frase, a faca foi cravada até o punho em suas costas. A força do golpe fez com que seu corpo fosse jogado para frente, de encontro à pia, derrubando tudo o que havia colocado em cima.

Jéssica percebeu que eram aparelhos cirúrgicos e de corte. Tudo destinado a ela.

Mas não se sentia aliviada. Pela primeira vez, havia presenciado um assassinato e estava desesperada. Via por trás das lágrimas o magro se contorcendo e indo de encontro ao chão, enquanto seu sangue sujava ainda mais aqueles azujelos que um dia haviam sido brancos. Ao seu lado, o irmão apenas observava, como se estivesse aliviado por ter feito algo que deveria ter feito há muito tempo.

Alguns segundos depois, o magro parou de se mexer. Apenas o sangue continuava a se expandir, cobrindo uma área cada vez maior do banheiro. Seu corpo estava estático.

Morto, pensou Jéssica.

Agora, era ela e o outro.

Somente os dois.

Ela, nua e amarrada.

Ele, um assassino.

Jéssica não parava de chorar. Tentava encontrar mais forças para arrebentar a corda que a amarrava, para tirar a mordaça, mas nada conseguia.

Viu quando o gordo se abaixou e retirou a faca do corpo do irmão. O sangue pingava da lâmina sobre a camisa azul do morto.

Pela segunda vez, o gordo olhou para ela. E permaneceu olhando enquanto caminhava na direção da banheira. O sorriso no rosto anunciava o prazer que sentiria nos próximos minutos. Quase por instinto, limpava a lâmina da faca na calça jeans.

Jéssica se encolhia cada vez mais, como se fosse possível se esconder. Chorava sem parar, tentando imaginar o que teria feito para merecer aquilo. Seu corpo tremia, agora não mais de frio, mas puro medo. Não olhava mais para fora da banheira. Apenas ouvia os passos do homem cada vez mais próximos.

Então, um forte som.

Um tiro.

Logo depois, o ruído de algo pesado caindo no chão.

E silêncio. Por longos instantes, silêncio. Nada mais.

Pouco a pouco, Jéssica começou a se recompor. Precisava descobrir o que havia acontecido. Ergueu-se até o topo da banheira e viu o gordo, a pouco mais de um metro de onde ela estava, deitado no chão. Nas costas, um furo do qual o sangue não parava de escapar.

Olhou para o outro lado do banheiro e viu o magro, ainda estirado em meio à poça de seu próprio sangue, com um revólver na mão. Com suas últimas forças, havia conseguido atirar no irmão.

Agora, ambos estavam deitados, sem vida, próximos um ao outro.

Jéssica compreendeu que era a sua chance. Os dois estavam mortos. Precisava escapar. Se outras pessoas morassem na casa, certamente apareceriam em poucos segundos.

Forçou os punhos contra as cordas ásperas que prendiam suas mãos atrás das costas. Sentiu as felpas penetrando sua pele e o calor do sangue escorrendo por seus dedos. Forçou seu corpo já cansado de dores para erguer-se ainda mais e escapar da banheira. Enquanto isso, gritava.

Mas todo o esforço era inútil. Jéssica não conseguia se mover. Seus sons não eram ouvidos através da mordaça. Nada podia fazer.

Mais uma vez, começou a chorar. Voltou a sentir o frio da porcelana contra a sua pele nua. A esperança que teve, por poucos instantes, ao ver os dois homens mortos, novamente deu espaço ao medo. Pensou em sua mãe, em sua irmã. Pensou em seu quarto. Em sua cama confortável.

Pensou que, agora, só restava esperar.

E esperar.

E esperar.

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