Os males da manhã.
Acordar cedo é um saco.
Acordar cedo e ter que dirigir, pior ainda.
Acordar cedo e ter que dirigir para o trabalho, um verdadeiro terror.
Acordar cedo, ter que dirigir para o trabalho e, no caminho, se envolver em um acidente são as próprias labaredas do inferno dominando a Terra.
Passei por isso hoje de manhã. Ou melhor, quase isso. Felizmente, o choque entre os automóveis não ocorreu. Mas foi por pouco. Por milímetros.
O detalhe é que estava com o carro da minha mãe. Na verdade, sempre estou com ele quando acontece alguma merda. Começo a pensar que não deveria mais entrar naquele Ka. O meu veículo estava na oficina para alguns reparos e roubei o da minha genitora para o transporte matinal até a firma.
Tudo ia tranquilo até uns 2/3 do caminho, quando cheguei a uma avenida conhecida aqui em Porto Alegre como Oscar Pereira. Sua formação – ao menos no trecho que percorro pela manhã – consiste em uma grande subida e, como tudo o que sobe precisa descer, uma descida.
Estava eu na primeira parte. A avenida contém duas pistas – encontrava-me na da esquerda. Ouvia música com fone nos ouvidos, compensando a falta de rádio no carro da moça que me deu à luz. Seguindo a Lei de Murphy, minha fila de carros parou e eu, como motorista legal e obediente, levei os pés ao freio e igualmente brequei. O sono e a preguiça não me deixaram tentar trocar para a faixa da direita, ainda que esta estivesse mais tranquila.
Por precaução, olhei para o retrovisor. Nada de especial. Apenas uma camionete vindo na minha direção, mas muitos metros atrás. Facilmente, ela diminuiria a velocidade e pararia atrás do Ka, em um louvável respeito aos menores.
Engano meu.
A camionete seguia encurtando a distância sem reduzir. Eu permanecia olhando pelo retrovisor e pensando: “Hein?” Então, entendi as intenções do motorista do carro de trás. De súbito, sem qualquer aviso, ele jogou a camionete para a pista da direita, obviamente tentando aproveitar a faixa que seguia mais fluida.
Esqueceu, porém, de olhar pelo retrovisor.
Assim que a camionete fez menção de trocar de faixa, escutou-se um forte som de buzina. Este, claro, era do Clio que viajava lado a lado com ele. As leis da física comprovaram há muito tempo que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Dois carros também não. O motorista do Clio enfiou a mão na buzina e o motorista da camionete se deu conta de que não poderia fazer o que queria. Voltou rapidamente para a pista da esquerda – só lembrando, a mesma na qual eu me encontrava.
A camionete estava a uns 80 km/h. Eu estava a 0 km/h. E a distância entre a imponente nave e a bunda do frágil Ka diminuía a cada milésimo de segundo. Àquele momento, devia estar em aproximadamente cinco metros.
Vi a tragédia. Antecipei o pavor. Os metros agora eram poucos. À minha frente, estava um Fiesta verde, provavelmente alheio do massacre que ocorreria atrás dele. Eu fiz a única coisa que pude. Com um olho no retrovisor e outro no carro adiante, acelerei o Ka até quase grudar no Fiesta. Dar o máximo de espaço para a camionete frear era meu único recurso. Este e, talvez, rezar.
Como não sou de levar muita fé no barbudo lá em cima, torcia. A camionete já tentava frear. O som da borracha dos pneus em atrito com o asfalto perfurava meu ouvido e me dava visões de um Ka completamente destruído. O monstro atrás seguia na tentativa de parar, mas continuava vindo para o abate.
Retesei-me. Firmei todo o corpo. Agarrei a direção com as duas mãos. A camionete devia estar a dois ou três metros. Felizmente, já diminuía.
No desespero pela impotência, no nervosismo de não ter o que fazer, comecei a buzinar. Não pensei. Claro que de nada adiantaria, mas precisava fazer alguma coisa. Só para aliviar a consciência. Só para poder dizer: “O Ka está reduzido a frangalhos, mas fiz o que pude”.
Era agora. Pelo vidro traseiro, nada mais se enxergava além daquele navio preto vindo em minha direção. Fechei os olhos, abracei a mim mesmo. Vi o filme de minha vida passar diante dos meus olhos. A prevalecida camionete vinha para patrolar o indefeso Ka. Só me restava aguardar.
Aguardei.
E aguardei.
Após alguns segundos, abri os olhos. “Isso é o paraíso?”, pensei. “Mas é muito igual ao caminho que eu faço todos os dias para ir ao trabalho”.
Então, percebi. Nada tinha acontecido. Olhei pelo retrovisor e, estática atrás de mim, estava a camionete. O aterrorizante carrasco jazia imóvel. Ainda ameaçador, mas parado. O motorista conseguira frear a tempo.
Respirei pela primeira vez desde o início de tudo. Tirei as minhas unhas que estavam cravadas no volante. Tentei ver quem dirigia o carro de trás. Pelo retrovisor, parecia uma jovem mulher, entre vinte e cinco e trinta anos. Loira, bonita até. Jogava as mãos pelos cabelos, aliviada por ter conseguido evitar a tragédia quase causada por ela mesma.
A única coisa que pude fazer foi erguer as duas palmas das mãos para o ar, como se perguntasse: “O que foi isso?”
Ela levantou uma mão, fazendo um sinal de desculpa. Era o mínimo.
Ignorante da catástrofe, o trânsito seguiu em frente. E eu, recém-saído da experiência de quase-morte, fui atrás.
Olhei pelo retrovisor. A camionete continuava parada. Provavelmente, a motorista psicopata estava petrificada, com medo de acelerar.
Dirigi-me ao trabalho. Durante todo o restante do trajeto, amaldiçoei ferozmente o homem que decidiu que acordar cedo era uma boa ideia.
Acordar cedo e ter que dirigir, pior ainda.
Acordar cedo e ter que dirigir para o trabalho, um verdadeiro terror.
Acordar cedo, ter que dirigir para o trabalho e, no caminho, se envolver em um acidente são as próprias labaredas do inferno dominando a Terra.
Passei por isso hoje de manhã. Ou melhor, quase isso. Felizmente, o choque entre os automóveis não ocorreu. Mas foi por pouco. Por milímetros.
O detalhe é que estava com o carro da minha mãe. Na verdade, sempre estou com ele quando acontece alguma merda. Começo a pensar que não deveria mais entrar naquele Ka. O meu veículo estava na oficina para alguns reparos e roubei o da minha genitora para o transporte matinal até a firma.
Tudo ia tranquilo até uns 2/3 do caminho, quando cheguei a uma avenida conhecida aqui em Porto Alegre como Oscar Pereira. Sua formação – ao menos no trecho que percorro pela manhã – consiste em uma grande subida e, como tudo o que sobe precisa descer, uma descida.
Estava eu na primeira parte. A avenida contém duas pistas – encontrava-me na da esquerda. Ouvia música com fone nos ouvidos, compensando a falta de rádio no carro da moça que me deu à luz. Seguindo a Lei de Murphy, minha fila de carros parou e eu, como motorista legal e obediente, levei os pés ao freio e igualmente brequei. O sono e a preguiça não me deixaram tentar trocar para a faixa da direita, ainda que esta estivesse mais tranquila.
Por precaução, olhei para o retrovisor. Nada de especial. Apenas uma camionete vindo na minha direção, mas muitos metros atrás. Facilmente, ela diminuiria a velocidade e pararia atrás do Ka, em um louvável respeito aos menores.
Engano meu.
A camionete seguia encurtando a distância sem reduzir. Eu permanecia olhando pelo retrovisor e pensando: “Hein?” Então, entendi as intenções do motorista do carro de trás. De súbito, sem qualquer aviso, ele jogou a camionete para a pista da direita, obviamente tentando aproveitar a faixa que seguia mais fluida.
Esqueceu, porém, de olhar pelo retrovisor.
Assim que a camionete fez menção de trocar de faixa, escutou-se um forte som de buzina. Este, claro, era do Clio que viajava lado a lado com ele. As leis da física comprovaram há muito tempo que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Dois carros também não. O motorista do Clio enfiou a mão na buzina e o motorista da camionete se deu conta de que não poderia fazer o que queria. Voltou rapidamente para a pista da esquerda – só lembrando, a mesma na qual eu me encontrava.
A camionete estava a uns 80 km/h. Eu estava a 0 km/h. E a distância entre a imponente nave e a bunda do frágil Ka diminuía a cada milésimo de segundo. Àquele momento, devia estar em aproximadamente cinco metros.
Vi a tragédia. Antecipei o pavor. Os metros agora eram poucos. À minha frente, estava um Fiesta verde, provavelmente alheio do massacre que ocorreria atrás dele. Eu fiz a única coisa que pude. Com um olho no retrovisor e outro no carro adiante, acelerei o Ka até quase grudar no Fiesta. Dar o máximo de espaço para a camionete frear era meu único recurso. Este e, talvez, rezar.
Como não sou de levar muita fé no barbudo lá em cima, torcia. A camionete já tentava frear. O som da borracha dos pneus em atrito com o asfalto perfurava meu ouvido e me dava visões de um Ka completamente destruído. O monstro atrás seguia na tentativa de parar, mas continuava vindo para o abate.
Retesei-me. Firmei todo o corpo. Agarrei a direção com as duas mãos. A camionete devia estar a dois ou três metros. Felizmente, já diminuía.
No desespero pela impotência, no nervosismo de não ter o que fazer, comecei a buzinar. Não pensei. Claro que de nada adiantaria, mas precisava fazer alguma coisa. Só para aliviar a consciência. Só para poder dizer: “O Ka está reduzido a frangalhos, mas fiz o que pude”.
Era agora. Pelo vidro traseiro, nada mais se enxergava além daquele navio preto vindo em minha direção. Fechei os olhos, abracei a mim mesmo. Vi o filme de minha vida passar diante dos meus olhos. A prevalecida camionete vinha para patrolar o indefeso Ka. Só me restava aguardar.
Aguardei.
E aguardei.
Após alguns segundos, abri os olhos. “Isso é o paraíso?”, pensei. “Mas é muito igual ao caminho que eu faço todos os dias para ir ao trabalho”.
Então, percebi. Nada tinha acontecido. Olhei pelo retrovisor e, estática atrás de mim, estava a camionete. O aterrorizante carrasco jazia imóvel. Ainda ameaçador, mas parado. O motorista conseguira frear a tempo.
Respirei pela primeira vez desde o início de tudo. Tirei as minhas unhas que estavam cravadas no volante. Tentei ver quem dirigia o carro de trás. Pelo retrovisor, parecia uma jovem mulher, entre vinte e cinco e trinta anos. Loira, bonita até. Jogava as mãos pelos cabelos, aliviada por ter conseguido evitar a tragédia quase causada por ela mesma.
A única coisa que pude fazer foi erguer as duas palmas das mãos para o ar, como se perguntasse: “O que foi isso?”
Ela levantou uma mão, fazendo um sinal de desculpa. Era o mínimo.
Ignorante da catástrofe, o trânsito seguiu em frente. E eu, recém-saído da experiência de quase-morte, fui atrás.
Olhei pelo retrovisor. A camionete continuava parada. Provavelmente, a motorista psicopata estava petrificada, com medo de acelerar.
Dirigi-me ao trabalho. Durante todo o restante do trajeto, amaldiçoei ferozmente o homem que decidiu que acordar cedo era uma boa ideia.
1 Comments:
amei. bom demais.
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