Me and the Devil Blues
O jovem negro caminhava pela rua deserta com a cabeça baixa, dominado pelo receio do que estava prestes a acontecer. Ocasionalmente, erguia o olhar em direção ao céu, em busca da lua, como atrás de um alento para o seu nervosismo. “Será verdade?”, perguntava-se. Bom, logo iria descobrir.
Ainda que estivesse bem vestido para seus padrões, ninguém teria dificuldades em adivinhar sua origem humilde. A calça preta desfiava em alguns pontos e parecia esfarrapada perto nas extremidades. O paletó da mesma cor desbotava e encobria a camisa branca e a gravata negra manchadas. O sapato estava sujo de barro, dando a impressão de que era o único que o jovem possuíra por longos anos.
Em sua mão direita, a poucos centímetros do chão, ele carregava uma caixa no formato de um violão. Dentro, um instrumento antigo, desafinado, dado de presente por um amigo que não o utilizava mais. O jovem caminhava lentamente, acompanhando no chão sua própria sombra, produzida pela fraca luz dos postes.
Pouco adiante, encontrou o local que procurava. Cruzamento das avenidas 61 e 49. Clarksdale. Nenhum som chegava aos seus ouvidos. Animais, homens, máquinas, tudo parecia adormecido. Parou por alguns instantes, colocando o violão no asfalto. Remexia as mãos sem saber onde colocá-las. Uma leve neblina começou a tomar forma. O jovem aguardava por algo que não sabia o que era.
Do âmago do silêncio que o cercava, ouviu sons. Curtos e secos, parecendo passos. Fechou o punho em cada uma das mãos, retesando todos os músculos. Um leve frêmito percorreu todo o seu corpo. Pouco a pouco, foi se delineando na neblina a forma de um homem. Pele branca, cabelos negros bem arrumados, impecavelmente vestido. De uma beleza que impressionou até o jovem negro parado na estrada.
O homem parou a alguns passos de distância e disse, na mais bela voz que o músico jamais ouvira:
- Boa noite.
- Boa noite.
- Qual o seu nome?
- Robert – respondeu o jovem negro, com a voz trêmula.
Ficaram em silêncio por algum tempo. O homem parecia analisar o rosto de Robert em todos os detalhes. Finalmente abaixou o olhar em direção à caixa do violão colocada no chão.
- Você é músico? – ele falava de forma calma e extremamente clara, que parecia envolver Robert em um abraço do qual era impossível de se desvencilhar. Mais do que isso, Robert tinha a sensação de que era impossível mentir para ele.
- Sou.
- Toque alguma coisa para mim.
Robert hesitou por alguns instantes, antes de confessar.
- Não sei tocar.
O misterioso homem não desviava o olhar dos olhos de jovem negro, amedrontando-o.
- Mas você não é músico?
- Serei assim que aprender a tocar.
Robert não havia se acalmado. Se possível, estava ainda mais nervoso com a presença daquele homem. Seria ele o que Robert procurava? O homem ficou em silêncio por alguns instantes e começou a caminhar, com as mãos para trás.
- E o que você faz aqui, Robert?
- Espero alguém.
O homem balançou positivamente a cabeça duas vezes.
- E quem seria esse alguém?
Sem saber o que responder, Robert tomou coragem e perguntou.
- Quem é você?
O homem parou de caminhar de um lado para o outro e voltou a fixar seu olhar no rosto de Robert. Abriu um sorriso que fez o jovem dar um passo atrás. Era um sorriso belo, mas que parecia esconder muita coisa.
- Meu nome não vem ao caso. O que importa é que posso fazer você tocar melhor do que qualquer um. Você quer isso?
Estas palavras convenceram Robert. O homem enigmático e bem vestido que tinha diante de si era exatamente a pessoa que procurava. Se é que se pode chamar de pessoa quem estava ali.
- E o que eu preciso fazer? – perguntou Robert.
- Você tem certeza que quer isto?
- Sim, absoluta.
- Não deve ter sido nada fácil para um negro pobre como você ter passado por aquela humilhação.
Robert arregalou os olhos. Como ele poderia saber do que tinha acontecido no bar do Louis no sábado passado? Depois pensou melhor e chegou a conclusão de que, se o homem realmente era quem Robert pensava que era, não deveria ficar surpreso com a quantidade de seu conhecimento.
- Você deve estar se perguntando como eu sei disso, não? – indagou o homem, como se lendo os pensamentos de Robert.
- Estava. Mas imagino que tenha suas formas de saber.
O homem riu pela primeira vez.
- Muito bem, Robert, muito bem – comentou. E, após alguns instantes, disse: - Deixe-me ver seu violão.
Robert abaixou-se e abriu a caixa, retirando o instrumento de dentro. Entregou-o na mão do homem. Este não disse nada, limitando-se a passar a mão sobre o violão, mais especialmente sobre as cordas. Após alguns minutos, devolveu-o a Robert.
- Belo instrumento. Você vai entrar para a História com ele.
- E o que eu preciso fazer?
- Por enquanto, nada. Mas quando eu precisar de você, esteja pronto pra mim.
Robert compreendeu o significado daquelas palavras. Era como um contrato sendo assinado. E, ainda que fosse verbal, o jovem sabia que não havia como quebrá-lo. Agora era irreversível.
- E como eu vou aprender a tocar?
- Você já sabe.
- Como assim?
O homem ofereceu seu último sorriso. Simplesmente inclinou a cabeça em direção a Robert e disse:
- Foi bom fazer negócios com você – e pôs-se a andar de volta para a neblina de onde saíra.
Robert ficou alguns instantes sem se mexer, como que hipnotizado pela presença do homem. Finalmente, voltou a si e percebeu que estava com o violão na mão direita. O local continuava silencioso, mas agora podiam ser ouvidos alguns insetos cantando na escuridão da noite.
O jovem olhou para o instrumento. Arrumou a caixa de forma a que pudesse sentar sobre ela e posicionou o violão sobre a coxa direita. Lentamente, começou a deslizar seus dedos sobre as cordas. Como em um passe de mágica, surpreendente até mesmo para ele, parecia saber o que estava fazendo. De forma instintiva, foi surgindo uma melodia, que iluminou a noite fria.
Tocou sozinho, na beira da estrada escura, durante mais de duas horas. Finalmente guardou o violão e começou a caminhar de volta para sua casa.
Robert Johnson olhou para trás uma última vez. A neblina havia se dissipado.
Silvio Pilau – 24/01/06
0 Comments:
Post a Comment
<< Home