Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, February 16, 2009

A sentença.

- Srta. Vadeus, como a senhorita se declara? – perguntou o juiz Edgar Fanhoto, diante da sala lotada.

- Inocente, meritíssimo – respondeu a acusada, Marlou Vadeus, sem qualquer demonstração de culpa.

O julgamento da srta. Vadeus praticamente parara o jardim. Lagartas, cigarras, formigas, grilos, todas as criaturas daquela pequena sociedade deixaram suas diferenças de lado para acompanhar de perto o desenrolar do caso. Um caso monstruoso, com requintes de crueldade e sadismo. Até agora, tentavam compreender de que forma alguém, mesmo a agressiva srta. Vadeus, poderia cometer crime tão hediondo.

A srta. Vadeus era acusada do assassinato de diversos amantes. Não apenas assassinato, mas decapitação. Segundo os relatos do chefe de polícia João B. Zouro, a srta. Vadeus utilizava seu corpo delgado e verdejante para seduzir as vítimas ao motel Deu Galho e, após acasalarem, cortava com as próprias mãos a cabeça do companheiro. O macho, ainda inebriado pelo êxtase da performance sexual de sua algoz, nada podia fazer. O chefe B. Zouro afirmou ainda que existiam vestígios de canibalismo por parte da fêmea

A popular Gazeta do Jardim deliciou-se com o caso, transformando-o em um furor sensacionalista que despertou a atenção inclusive das minhocas, normalmente avessas a contatos sociais, constantemente enfurnadas em suas residências subterrâneas. A Gazeta nunca vendeu tantos exemplares. Foi a publicação a responsável pela alcunha “Serial Killer do Acasalamento”, como a srta. Vadeus era conhecida agora. Por isso, graças a tal comoção, todos os olhos estavam naquele julgamento, inclusive as centenas de olhos o sr. Amos K.

- A srta. sabe as acusações que recaem sobre a sua pessoa, ou melhor, seu inseto? – continuou o juiz Fanhoto, ciente da responsabilidade do caso.

- Sim, sr. E continuo afirmando que sou inocente de tal crime – disse uma impassível srta. Vadeus.

- Muito bem. Assim, somente nos resta dar início ao julgamento.

O circo, então, começou. Por três dias e três noites, o caso da Serial Killer do Acasalamento tornou-se o centro das atenções de todos. Legistas expuseram suas análises dos corpos sem cabeça dos amantes da sra. Vadeus, amigos testemunharam a idoneidade da acusada, borboletas foram ouvidas como se tivessem desempenhado o papel de veículos de fuga. Todas as possibilidades foram analisadas pelo promotor e pelo advogado de defesa e, até o momento, ninguém poderia afirmar qual seria o veredito.

- Peço, então, para que o júri se retire e retorne somente com um veredito final – afirmou o juiz Fanhoto, com toda a sua imponência, ao final das atividades.

Foram momentos de pura ansiedade. Os pés da dona Dirce Entopéia, que não conseguira achar lugar para sentar, doíam. Ela, porém, não queria sair da sala para tirar os sapatos, com medo de que, quando chegasse ao vigésimo-quarto, o júri retornasse. A jovem Manuela Garta refreava o desejo de virar uma borboleta, pelo motivo de que não queria ir ao casulo e perder o resultado final. Enquanto isso, a srta. Marlou Vadeus permanecia em seu lugar, confiante, como se tudo aquilo não fosse por sua causa. Parecia, no entanto, reza.

Então, o tribunal foi calado por ruídos de passos, que ganharam força e alcance dentro daquele tronco oco onde tudo ocorria. O júri foi se posicionando em seu lugar. Lentamente, os doze insetos que tinham em suas mãos o destino da srta. Vadeus sentaram-se, com o olhar para baixo, temerosos por carregar tamanha responsabilidade. Cabia a eles o destino de uma vida alheia. Quem quebrou o silêncio perturbador foi o juiz Edgar Fanhoto.

- Então, chegaram a um veredito?

- Sim, meritíssimo – disse, levantando-se, a pequena dona Joana, conhecida como Joaninha entre os amigos. – Nós, do júri, declaramos a acusada, srta. Marlou Vadeus...

Dona Joana falou o veredito, mas ninguém ouviu. Um som alto, quase ensurdecedor, tomou conta do tribunal. Todos, sem exceção, levaram as mãos aos ouvidos, inclusive a acusada. Era um ruído cortante e constante, que parecia cada vez mais próximo. Em meio ao pandemônio, o juiz Edgar Fanhoto, no alto de sua sabedoria e sapiência, gritou.

- É uma serra elétrica! Corram todos!

Poucos o ouviram. Em alguns segundos, tudo estava acabado. O tronco oco de árvore onde ocorria o julgamento ficou em pedaços. Corpos de insetos eram encontrados pela metade ou com membros decepados. Uma verdadeira chacina. Aqueles que conseguiram escapar, tamanho o terror de tal cena, jamais quiseram falar sobre o ocorrido. Era um trauma que carregariam para o fim de suas vidas, como o sr. Amos K., que pensou naquilo até o dia acabar.

A alguns centímetros de onde, alguns segundos antes, estava sentada aguardando sua sentença, a srta. Marlou Vadeus, a Serial Killer do Acasalamento, a fêmea que decapitava seus companheiro, a amante letal, jazia sobre uma pequena pedra tomada pelo limo. Tal qual no julgamento, continuava sem qualquer expressão no rosto, como se estivesse alheia a tudo. A única diferença era que, ironicamente, sua cabeça estava separada do corpo.

Culpada ou não, a srta. Vadeus teve a sua sentença.

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