Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Tuesday, May 19, 2009

A Chance.

A bola veio com precisão milimétrica. Alçou vôo como se a gravidade não tivesse qualquer influência. Leve, sutil, graciosa. Wesley girou o corpo em direção a ela. Quase não precisou se mover. A bola começou a cair gentilmente. Sem peso, sem força. Uma amante buscando um abraço. Repousou em seu peito como se estivesse se deitando para dormir.

No momento em que amorteceu a bola, Wesley lembrou de seu pequeno irmão Douglas. Pensou nas noites em que ninguém conseguia dormir no humilde casebre enquanto o garoto sofria para respirar. Reviveu os momentos de desespero nos quais batia no peito de Douglas como se pudesse espantar a asma. E repassou toda a dor sentida pela família quando ele parou de respirar aos oito anos da mais tenra idade.

Enquanto a bola caía gentilmente sobre a parte de cima seu pé, Wesley viu com o canto do olho o adversário vindo em sua direção. Instintivamente, puxou o pé para trás, deixando a bola quicar no chão. Como se tivessem combinado a jogada, a esfera subiu apenas o suficiente para que uma leve encostada na parte de baixo dela a levantasse um pouco acima de sua altura. A bola penteou o cabelo do adversário, que passou reto, sem ver sinal a magia de Wesley.

Foi quando pensou nos duros anos nos quais a família somente podia contar uns com os outros. Wesley, seis irmãos e a mãe, que trabalhava em dois empregos e mal conseguia colocar comida na mesa. Lembrou de como se sentia como se fosse um nada, como se não tivesse importância para ninguém. Em sua cabeça, repassou o instante em que percebeu que a sociedade não o enxergava e, se quisesse sair dali, precisava vencer por si mesmo.

Após livrar-se do adversário, Wesley parou a bola na grama. Estava perfeitamente posicionado. Com um leve toque, colocou-a no lugar ideal para o arremate, um pouco à direita de seu pé. Enquadrou o corpo, jogou o braço esquerdo para equilibrar-se e lançou a perna ao encontro da bola. Ouviu o barulho seco da batida, o som dos pedaços da grama sendo arrancados do chão e nada mais. O estádio todo, apesar de lotado, aguardava em silêncio absoluto.

A bola voava, assim como as lembranças de Wesley. A ausência de som o fazia reviver as noites frias na casa de madeira velha, quando nada mais ouvia além dos lamentos no quarto ao lado. Levava horas angustiantes para dormir, sabendo que a mãe chorava por não conseguir oferecer aos filhos o mínimo para uma vida digna. No silêncio desolador, sonhava em escapar daquele lugar para proporcionar à mãe tudo o que ela merecia.

Wesley, assim como as mais de oitenta mil pessoas ao seu redor, observava. Com o olhar atento, acompanhava o traçado da bola, que começava a fazer uma leve curva para a esquerda. O chute que parecia despretensioso parecia atraído magneticamente para o gol. Maliciosamente, a bola era puxada em direção às redes. Quando o goleiro percebeu que havia sido enganado pela curva, era tarde demais. A bola caía, certa de seu destino. O grito de gol começou a ser expelido.

Até ela explodir no travessão. Teimosa, reticente, lascívia. Provocou para não entregar. Em todo o estádio, mãos à cabeça. Não somente pelo gol perdido, mas pela expectativa criada e não cumprida. A trave branca tremia, como se estivesse rindo de todos. A bola saía pela linha de fundo, quicando sem a menor pressa, certa de ter atraído todas as atenções. Certa de que havia feito o seu espetáculo.

Wesley ajoelhou-se e levou as mãos ao rosto. Lamentava pela oportunidade desperdiçada. Olhou à sua volta e viu os companheiros já de volta ao jogo. Sabia o que devia fazer. Como sempre fizera em sua vida, ergueu-se. Pôs-se, mais uma vez, de pé. Não seria fácil. Nunca o foi. Mas tinha a certeza de que superaria mais esse desafio. Tinha a certeza de que aproveitaria a próxima chance. Porque, mais do que ninguém, Wesley sabia o quão raras elas podiam ser.

2 Comments:

Anonymous Guilherme said...

É surpreendente como você passa os fatos, como a “chance” pode ou não ser reaproveitada. Enquanto lia o seu texto refletia alguns detalhes. É tão comum pra nós brasileiros lutarmos por alguma coisa, temos que batalhar, e levar a vida com coragem. De certa forma Raul Seixas estava certo quando dizia em sua canção “tente outra vez”. Quantas vezes nos deparamos com uma situação adversa? Acho que meus dedos não conseguem contar.
É fato que nós trabalhamos e do trabalho esperamos uma melhora de vida pra nós e pra quem amamos. Nossa cabeça é sempre cheia e por muitas vezes não alcançamos o nosso melhor. Temos sempre a preocupação de não decepcionar as pessoas que moram em nossa casa, de não deixa-las sofrer.
Enquanto lia o seu texto me veio a seguinte pergunta: Se o Wesley não tivesse nenhum tipo de preocupação, se estivesse completamente focado, será que ele faria o gol?

Silvio adorei seu texto, é bem conivente com a nossa realidade.

9:48 PM  
Anonymous Guilherme said...

É surpreendente como você passa os fatos, como a “chance” pode ou não ser reaproveitada. Enquanto lia o seu texto refletia alguns detalhes. É tão comum pra nós brasileiros lutarmos por alguma coisa, temos que batalhar, e levar a vida com coragem. De certa forma Raul Seixas estava certo quando dizia em sua canção “tente outra vez”. Quantas vezes nos deparamos com uma situação adversa? Acho que meus dedos não conseguem contar.
É fato que nós trabalhamos e do trabalho esperamos uma melhora de vida pra nós e pra quem amamos. Nossa cabeça é sempre cheia e por muitas vezes não alcançamos o nosso melhor. Temos sempre a preocupação de não decepcionar as pessoas que moram em nossa casa, de não deixa-las sofrer.
Enquanto lia o seu texto me veio a seguinte pergunta: Se o Wesley não tivesse nenhum tipo de preocupação, se estivesse completamente focado, será que ele faria o gol?

Silvio adorei seu texto, é bem conivente com a nossa realidade.

10:00 PM  

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