Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Tuesday, December 08, 2009

O senhor do buquê de lírios.

Até hoje, mais de dez anos após ter recebido o seu diploma de jornalista, a lembrança mais forte que Letícia Maia tem da faculdade é a história do senhor do buquê de lírios. O pouco que soube sobre aquele homem ainda é capaz de mexer com os seus sentimentos e despertar-lhe a mais profunda compaixão.

Na época, ao menos duas vezes durante a semana, Letícia costumava sair da aula no final de tarde para alguns momentos de descontração em um pequeno bar ao lado da faculdade. Era um lugar modesto, mas aconchegante, daqueles nos quais o único garçom e o dono realmente ficavam felizes com a presença de clientes fiéis.

Reuniam-se sempre em cinco ou seis colegas, tomando cerveja. Letícia, como sempre, era a que mais falava, expressando suas firmes opiniões sobre os mais variados assuntos. Nos instantes em que dava oportunidade para os colegas, ela observava a praça que havia em frente ao bar. No final da tarde, o sol que passava por entre os galhos das árvores gerava uma visão belíssima, com seus raios dourados iluminando o local.

Hoje, quando conta a história, Letícia tem dificuldades em lembrar quando viu pela primeira vez aquele senhor. Talvez tivesse passado o olhar por ele em outras ocasiões, mas não saberia dizer. A primeira lembrança que tem é dele vestindo uma camisa cor de vinho, calça bege e sapatos impecavelmente lustrados de preto. Sentava um pouco encurvado no lado direito de um banco que havia no centro da praça. Nas mãos, mesmo à distância, perceptivelmente frágeis, um maravilhoso buquê de lírios.

Letícia não soube dizer porquê, mas a visão daquele senhor ali sentado, sozinho, vestido com esmero, realmente chamou a sua atenção.

- Que foi, Lê? – perguntou Antônia, uma de suas colegas, quando viu que a amiga estava alheia à conversa.

- Nada de mais – Letícia falou, desviando o assunto e sorrindo. – Apenas estava pensando em outra coisa.

Porém, por mais que tentasse participar do assunto que os amigos discutiam, Letícia não conseguia ficar focada na mesa. Seu olhar sempre retornava ao velhinho que, sentado praticamente imóvel, esperava pacientemente por algo que não chegava. “Deve ter o quê?”, pensava Letícia. “Uns 75 anos, talvez?”, respondia para si mesma, admirada.

A partir de então, Letícia começou a cuidar o senhor da praça. Sempre que se reuniam no bar, ela buscava o melhor lugar para ficar observando seus movimentos. Nem sempre ele estava lá, mas, quando aparecia, o ritual permanecia igual: sentava-se sempre no mesmo lugar do mesmo banco, segurando em suas mãos um buquê de lírios. A única diferença era a sua roupa. Letícia não lembrava de tê-lo visto repetir a mesma camisa.

Ainda que fascinada pelo mistério de tudo aquilo, seu espírito jornalístico pedia por explicações. Certo dia, levantou-se da mesa avisando aos colegas que iria ao banheiro e dirigiu-se a Douglas, dono do local.

- Seu Douglas, o senhor já viu aquele senhor sentado no banco da praça?

Douglas, um amável homem de meia idade, nem olhou para a praça. Já sabia do que Letícia falava e respondeu de prontidão, com um sorriso no rosto:

- Fala do senhor Matias, Letícia? Ele já é lendário por aqui.

- Lendário? – Letícia estava ainda mais interessada. – Por que lendário?

- Por causa da história dele. Ou melhor, por causa da história dele e dela.

Letícia já esquecera de seus amigos. Tinha toda a sua atenção voltada para Douglas e para a história do senhor do buquê de lírios.

- Vai me contar, não vai, seu Douglas? – ela falou, sorrindo.

Douglas sorriu em retribuição.

- Ninguém sabe direito os detalhes – começou ele. – A história que todos comentam pode não passar de boato. Mas qualquer um aqui por perto vai te falar que, há aproximadamente vinte e cinco anos, o senhor Matias conheceu uma belíssima mulher ali mesmo, naquele banco. Dizem que os dois viveram um rápido romance e que se amavam profundamente. Um dia, ela simplesmente não apareceu mais.

Letícia ouvia atenta, sem nada dizer. Douglas prosseguiu:

- Parece que, um ou dois anos depois de ela ter ido embora, o senhor Matias recebeu uma carta. Dizia: “Espere-me em nosso banco, em nossa praça, no final da tarde de sexta-feira”. Desde então, toda sexta-feira, a esse horário, o senhor Matias aparece para esperar pela mulher. Fica ali aproximadamente uma hora e, como ela não aparece, levanta-se, pega seu buquê e vai embora.

- E ele nunca falhou?

- Nunca. Já são mais de vinte anos e ele sempre aparece na sexta-feira.

- Alguém sabe quem ela é?

- Muitos a viram quando eles viveram o romance, mas ninguém saber dizer quem é a mulher.

A história do senhor do buquê de lírios encantou Letícia. Mais do que isso, a deixou inebriada. Achava fascinante a incansável esperança do senhor Matias em reencontrar a sua mulher amada. Letícia não tinha mais informações sobre a vida do homem. Porém, apenas saber que tal dedicação existia, apenas a consciência de que, em algum lugar, alguém parava a vida no sonho de reencontrar aquilo que o faria feliz, fez Letícia encher-se de admiração pelo senhor.

Decidiu que precisava descobrir o que o movia. Precisava entender porque ele não seguia adiante com sua vida ou partia em busca de um outro amor. Por que a entrega total àquela única mulher? Letícia se considerava uma mulher romântica, mas a atitude do senhor do buquê de lírios parecia extrema demais inclusive para ela. Seria possível existir um sentimento assim?

Devido às aulas, Letícia não conseguiu voltar ao bar ou à praça durante três semanas. Quando finalmente pôde se liberar, estava disposta a falar com o impressionante senhor Matias. Queria ouvir o que ele tinha a dizer. Passou rapidamente em casa, pôs um de seus melhores vestidos e retocou a maquiagem. Queria estar bonita para quando o encontrasse. Uma história assim merecia o melhor dela.

Ansiosa, pegou um táxi até a praça. Chegara cedo demais. Jamais havia estado ali naquele horário. A beleza do local não era tão etérea quanto a do final de tarde, mas o sol mais forte iluminava toda a praça, que resplendia no colorido das flores, causando uma sensação de bem-estar em todo o seu corpo. Lentamente, caminhou até o banco.

O banco do senhor Matias. O banco onde tivera início a mais tocante história de amor que já ouvira.

Sentou-se no lado esquerdo, lembrando que o senhor do buquê de lírios escolhia sempre o outro.

E aguardou.

Para sua surpresa, percebeu que estava nervosa. O olhar não parava em lugar algum, como se procurasse incessantemente alguma coisa. Olhava as pessoas, crianças, jovens, adultas e idosas, passeando despreocupadamente, sem saber que a poucos passos dali uma grande história ocorria há mais de vinte anos. Uma história que, Letícia pensava, precisava ser conhecida.

Decidiu que escreveria sobre ela. O amor do senhor Matias não podia se perder com o tempo. Mesmo que ainda fosse apenas uma estagiária no jornal, ela escreveria a história para apresentar ao editor. Se ele topasse publicar, ótimo. Se não topasse, pensaria em outra forma de torná-la pública. O senhor do buquê de lírios merecia isso.

Subitamente, deu-se conta de que já passava do horário no qual o senhor Matias sempre chegava. A luz se tornava dourada em torno da praça, envolvendo-a naquela névoa única do pôr-do-sol. Os olhos de Letícia encontraram os de Douglas no outro lado da rua, em frente ao bar. Ele, que já havia compreendido o que ela fazia ali, virou as palmas das mãos para cima, como se também não entendesse a ausência do idoso.

Letícia suspirou e baixou a cabeça. Ficou assim por longos minutos, tentando compreender o que acontecera. Durante mais de vinte anos, Matias nunca deixou de sentar-se naquele mesmo banco, com um buquê de lírios, esperando a mulher que tanto amou. Letícia ficou com medo de que algo pudesse ter acontecido a ele. Um homem frágil, de idade já avançada, poderia muito bem ter passado mal ou sofrido um acidente.

Então, porém, sorriu. Sorriu porque compreendeu. Sorriu porque entendeu a lição do homem do buquê de lírios. Se ele mantivera durante todo esse tempo a esperança, por que ela, Letícia, a perderia em poucos minutos?

Respirou fundo e baixou a cabeça mais uma vez. Quando a levantou, o nervosismo havia passado. Enxergava tudo de maneira diferente. Acompanhou os últimos raios de sol buscando espaços por entre as folhas das árvores. De maneira quase mágica, terminavam diretamente no lado direito do banco.

Sorriu novamente, levantou-se e começou a caminhar. Foi embora refletindo sobre uma ideia que acabara de surgir em sua mente: que o amor só existe para quem vive a esperança de encontrá-lo.

1 Comments:

Blogger Anastácia Alacre said...

Ai Pi, que saudades que eu estava de voltar aqui.
Engraçado como tuas histórias, quando não envolvem álcool, conseguem ser tão lindas e tão tristes.
Sei que um dia também terás um grande amor, como o do senhor Matias e mais ainda, não te deixará esperando.
Caso isso não ocorra, sempre tem o plano B (eu!), que te amo, pela pessoa especial que és, pelos grandes momentos que já vivemos juntos.
Um grande beijo da tua maior fã.(só no sentimento né!heheh)

7:17 PM  

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