Ao Seu Tempo
Aos 76 anos, Geraldo não era uma figura de chamar a atenção. Apesar de sua imensa confiança e segurança pessoal, possuía estatura pequena e fazia gestos mínimos, costumando passar despercebido em qualquer local com razoável número de pessoas. Apaixonado por cinema, Geraldo aguardava na fila a sua vez de entrar na sala. Junto a ele, que gostava de passar seu tempo observando tudo o que acontecia ao redor, um grupo de jovens barulhentos e dominados por irrequieta vivacidade discutia sobre os mais diversos assuntos.
Geraldo acompanha com voyeurístico interesse as explanações do bando. A certa altura, os jovens chegaram a um impasse a respeito de determinado tema.
- Pergunta pra esse senhor aí na sua frente – disse um deles, apontando para a diminuta figura de Geraldo.
- Imagina se um velho desses vai saber alguma coisa? – respondeu o outro, com desdém.
Ao contrário do que o jovem pensava, Geraldo escutou as palavras. Não sentiu-se irado com a falta de respeito. Simplesmente virou-se para trás, calmamente, e fixou brevemente seus olhos nos do rapaz.
No momento em que pensou dizer alguma, uma mera admoestação, veio à sua mente lúcida, como em uma série de flashes ainda vívidos, a sua infância difícil na pequena cidade do interior onde nasceu, com seu pai e sua mãe trabalhando dia e noite para alimentar a ele e aos seus irmãos. Lembrou-se de como, na falta de condições para ganhar presentes, aprendeu a construir brinquedos com pedaços de madeira e restos de objetos que encontrava no chão. Veio à sua mente também o longo sofrimento e conseqüente falecimento de sua mãe, seguido pela morte do pai poucos meses depois. Relembrou o último instante de vida de seu pai, quando um rápido e significativo olhar fez Geraldo compreender que a responsabilidade pela família, a partir daquele momento, era toda sua. Recordou como, sendo o irmão mais velho, assumiu aos 16 anos a família e como cuidou de seus irmãos por sete anos, assumindo qualquer emprego que conseguia, até o momento em que cada um pôde dar conta de suas próprias necessidades. Reviveu sua inexperiência com as primeiras namoradas, romances rápidos que serviram como introdução do jovem Geraldo às nuanças do amor. Pensou também em sua ida a Porto Alegre, com pouco dinheiro no bolso e muita ambição no corpo, e dos primeiros trabalhos na capital, que deram subsídios para se sustentar enquanto fazia a faculdade de jornalismo. Passou por sua mente os difíceis momentos em que procurava conciliar o estudo com a lida diária, e as conseqüentes falta de sono, fadiga e estafamento mental, obstáculos superados em vista de um objetivo maior. Reviveu as aulas na faculdade, todo o aprendizado, as amizades, derrotas e conquistas que obteve em seu período acadêmico, culminando com a vitoriosa e exultante formatura. Rapidamente veio à sua memória a paixão que adquiriu pelos livros e pela palavra escrita, uma dedicação tão intensa que conhecia as idéias, teses e filosofia dos maiores pensadores que já pisaram neste planeta. Lembrou de Vera, sua colega de universidade que se tornou a parceira de uma vida. Pensou brevemente em toda a paixão, o êxtase inicial, o amadurecimento de um amor tão imensurável que nem a morte conseguiu abalar. Rememorou de como pensou em Vera durante todos os minutos desde o falecimento dela e de como cuidou, ainda que extremamente compungido, dos serviços fúnebres da mulher que amava, que o amava, e que lhe deu quatro magníficos filhos. Recordou a morte trágica de seu caçula e de como achou que seu mundo entraria em colapso. Reviveu as conquistas do resto dos filhos, os casamentos, as alegrias, os sucessos profissionais. Em um flash passou por sua mente as faces risonhas de seus netos, pequenas criaturas que amava tanto ou mais do que seus próprios filhos. Lembrou dos amigos e dos inimigos que fez ao longo dos anos em seu ofício de jornalista, da época que foi preso pela ditadura por artigos considerados subversivos. Pensou nos passeatas que participou, dos protestos que organizou e de toda a sua luta contra a repressão. Lembrou de suas inúmeras viagens, a trabalho ou por lazer, solitário ou com a família, pelas maiores capitais do mundo e por lugares que pareciam esquecidos pela raça humana. Pensou também em todas as pessoas que conheceu, da convivência que teve com homens e mulheres que estão presentes em livros de História e o quanto aprendeu com eles. Recordou como também foi ensinado por aquelas pessoas que não recebem manchetes em jornais, as pessoas comuns do dia-a-dia, merecedoras de tanto ou mais respeito do que as grandes personalidades. Lembrou de como sentiu as marcas do tempo refletirem-se em seu corpo e em sua mente, ambas em sentido contrário, com a pele e os órgãos se cansando e as idéias e opiniões cada vez mais precisas e seguras. Pensou em quantas noites passou ao ar livre, apenas apreciando o firmamento, em quantos socos já levou e em quantos já deu em brigas sem sentido, em todas as comidas estranhas e exóticas que já experimentou, nas doenças que já teve, nos arranhões e machucados que sofreu. Lembrou da única vez que atirou uma arma, de em quantas ocasiões confundiu seus sentimentos, das discussões com os filhos, dos jogos de futebol, das bebedeiras com os amigos, da sua rápida incursão no mundo das drogas, dos diversos estilo de moda que presenciou e fez parte, das músicas que ouviu, dos filmes que assistiu.
Naquele breve e fugaz momento, Geraldo lembrou de toda a sua vida, completa e bem vivida, aproveitada ao máximo por alguém que possuía a certeza de ainda ter muita coisa a oferecer ao mundo. Alguém que chegou a conclusão de que a vida só é curta para aqueles que não sabem aproveitá-la.
Com os olhos ainda fixos nos do rapaz, reviveu em sua mente mais uma vez o insensato comentário:
- Imagina se um velho desses vai saber alguma coisa?
No exato instante em que diria algo, a fila do cinema andou. Geraldo ofereceu um sorriso amável ao rapaz e pôs-se a caminhar junto com as outras pessoas.
Satisfazia-o a consciência de que, na vida, tudo tem o seu tempo.
07/03/05
07/03/05
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