Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Tuesday, September 06, 2005

Uma Tarde com Erico

P.S.: Enviei esse texto para um concurso do centenário de Erico Veríssimo. Não ganhou nada, mas eu achei legal, já que busca uma abordagem diferente. O concurso era sobre a vida ou obra do autor e eu escolhi falar sobre um detalhe da vida dele em especial: o fato de ele escrever seus livros no porão de casa, com a esposa em silêncio ao lado, tricotando. Não sei se fugiu demais do tema proposto pelo concurso, mas tá aí pra apreciação.
Estranha ironia: para exercer o ofício que o eleva acima de todos os outros, ele desce. Desce, todas as tardes, até o porão de sua casa. Escritório improvisado, definitivamente inusitado. Diante de uma mesa de aspecto vetusto, a figura singela do escritor acomoda-se perante uma máquina de escrever. As teclas, já gastas, aguardam com ansiedade o toque daqueles longos dedos que já deram vida a tantos pensamentos e levaram pensamentos a tantas vidas. Na parte interior da capa que envolve a máquina, um nome destaca-se, grafado, não em tinta, mas no próprio material, garantindo a perene sensação de que ela não pertence, e jamais pertencerá, a mais ninguém.

A temperatura amena de uma tarde de maio percorre todas as rachaduras das paredes e objetos do local, dando o tom adequado a uma agradável sessão de trabalho. Folhas de papel colocadas ao lado da máquina esboçam desenhos e anotações que fazem sentido apenas àquele homem ali sentado. Se fosse possível, a máquina estaria sorrindo. Iria começar tudo de novo, como nos dias anteriores.

O rosto benevolente do escritor contrasta com a imagem típica de um literato. Nada de longas barbas e aspecto austero, rígido. Na cabeça, já parcialmente calva, cabelos brancos oferecem um ar de experiência. Seus grandes olhos, encimados pelas grossas sobrancelhas, traduzem o que há de mais íntimo naquela inusitada figura: sua incessante curiosidade e a extremada bondade. Curvado sobre a máquina, ele espera. Aguarda a inspiração, que logo chega.

Gentil e delicadamente, a porta do porão se abre. O escritor não muda sua posição. Fato corriqueiro, aguardado. Uma mulher, procurando fazer o menor ruído possível, entra e fecha a porta. Posiciona-se com sutileza em uma poltrona próxima ao local onde o escritor se localiza. Não diz palavra. Retira seu material de tricô e entretém-se no ir e vir das agulhas e dos fios.

O único som é o da máquina que, incessantemente, passa a despejar letras, palavras e sensações na folha outrora branca. Sozinho no porão, o escritor deixa-se ser enlevado por outras pessoas, criações de sua própria mente. A cada toque, convence-se mais de que ele não cria nada. São os personagens que o carregam. Sabe que não passa de um instrumento, um intermediário para contar uma história que já existe em algum lugar, apenas esperando alguém para repassá-la.

Ocasionalmente, a mulher desvia o olhar para o escritor. O que a faz ficar sentada ali durante esse tempo, sem emitir nenhum som? Seria cumplicidade? Companheirismo? Uma necessidade íntima de simplesmente estar perto dele, mesmo nesse momento? Seria ciúme daquela máquina, recipiente de tanta atenção e amor por parte dele? Ou, quem sabe, tudo isso junto?

O fato é que continuam assim por algumas horas. Em silêncio, com exceção do ritmo constante e compassado das batidas na máquina. Ele, no momento, pertencente a um local e a uma época distantes. Ela, pertencente a ele. Ou o contrário? Será que conseguiria escrever sem a presença da mulher ao seu lado? Sem o apoio, o lastro que ela representa?

As perguntas e dúvidas aparecem para qualquer um que tome consciência da cena. Para quem vê de fora, é algo inusitado. Mas, para eles, o momento prescinde de palavras, de reflexões. Faz parte do cotidiano, de uma rotina, mas não por isso é menos especial. É único e particular. Um momento próprio daquele casal.

Ao final da tarde, a mulher guarda novamente seu material. Levanta-se e percorre o caminho em direção à porta. Ainda silente, sai do porão, voltando à casa. O escritor, novamente solitário, permanece mais alguns minutos. A máquina cessou os ruídos. Ele organiza as folhas e os objetos à sua volta. Por último, fecha novamente seu instrumento de trabalho. Antes, detém-se diante das cinco letras de seu nome, incrustado na capa da máquina de escrever.
"Erico", o objeto diz, como despedindo-se de mais um dia. Um leve sorriso expressando gratidão é a resposta do escritor. Mais do que um adeus, é um tácito acordo de reencontro. No dia seguinte, ele estará de volta.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

ÓÓÓ..
Não ganho??? mas que droga!!! muuuuito bom!!!
me adiciona na tua lista para manda os e-mails!!
beijinhus

6:07 AM  
Anonymous Anonymous said...

Gostei tb, bacana, bacana, mas quando ele escreveu o Rodrigo Cambará, estava em uma salinha de merda de uma editora.

1:35 PM  

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