Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, September 28, 2015

Números

O primeiro número apareceu para Dênis no espelho de seu banheiro, quando foi se refrescar pela manhã. Ainda um pouco sonolento, saiu do chuveiro e percebeu, na superfície embaçada pelo vapor, um muito bem desenhado algarismo.

10.

Dênis ficou intrigado por alguns segundos, imaginando quem poderia ter feito aquilo. Chegou à única conclusão possível em termos lógicos: ele próprio havia feito o desenho na noite anterior ao voltar do bar com os amigos do trabalho e, alcoolizado, não tinha memória do ato. O vapor simplesmente fizera o número reaparecer.

De qualquer forma, não deu muita importância ao acontecido. Vestiu seu terno cinza e tomou o café da manhã – sanduíche com geleia e suco de laranja – como fazia todos os dias da semana, seguindo logo depois para o estacionamento do prédio. Chegando ao seu Siena branco, ainda sujo da viagem ao interior realizada no final de semana, tomou um susto.

Na porta do motorista, delineado em meio à lama da estrada de chão pela qual precisou dirigir, destacava-se outro número.

9.

Dênis começou a achar que aquilo não poderia ser uma coincidência. Olhou em volta, procurando alguém que o estivesse sacaneando, mas nada viu. Entrou no carro e dirigiu ao trabalho.

No trânsito, começou a pensar no que acontecia. O que significavam aqueles algarismos? Estava em meio a devaneios sobre o assunto quando percebeu um outdoor à sua direita. O espaço não trazia qualquer anúncio ou informação, apenas um número gigante.

8.

Assustado com o que viu, Dênis invadiu a faixa da direita, quase causando um acidente. Recuperou o controle do carro a tempo, mas não o de seus pensamentos. “Este outdoor é para mim?”, questionava-se ele. “Que números são esses?”

Permaneceu nesse estado até chegar ao escritório de advocacia onde trabalhava como contador. Absorto em reflexões, não deu “bom dia” a nenhum dos colegas que o cumprimentavam, apenas reforçando a sua fama de mal-educado. Sentou-se à mesa, ligou o computador e, como papel de parede em seu Windows, surgiu mais um número em letras garrafais.

7.

A essa altura, qualquer ideia de coincidência na aparição dos algarismos havia evaporado. Dênis tinha certeza de que alguma mensagem estava sendo enviada a ele, embora tivesse um significado que ainda não conseguia compreender. Olhou para cada um dos colegas, perscrutando-os em busca qualquer sinal de culpabilidade, mas todos o ignoravam, atentos às suas tarefas diárias.

Foi o que decidiu fazer também. Focar a mente em outra questão, pois de nada adiantava perder tempo com aquilo. Quando chegasse a hora, acreditava, tudo seria revelado.

A estratégia deu certo por algumas horas, mais precisamente até o final da manhã, quando seu iPhone vibrou sobre a mesa. Dênis desbloqueou a tela e abriu a mensagem recebida pelo WhatsApp, contendo apenas um número.

6.

Pela primeira vez, porém, ele podia tomar uma atitude. O número do remetente era estranho, com muito mais dígitos do que o normal. Dênis discou.

Como esperado, o telefone estava desligado. Enviou uma mensagem pelo próprio WhatsApp: “Quem é você? O que significa tudo isso? Por que está fazendo isso comigo?”

Dois tracinhos azuis apareceram rapidamente ao lado da mensagem. Visualizada. Mas, obviamente, não houve resposta.

A partir deste momento, Dênis não conseguiu mais se concentrar no trabalho. Pediu para falar com o chefe e disse que não estava se sentindo bem e precisava ir para casa. Mesmo contrariado, nada satisfeito, o diretor da empresa o liberou.

Dênis juntou suas coisas em poucos segundos, saiu do escritório e entrou o elevador. Ao esticar seu braço para pressionar o indicador do térreo, percebeu que havia um único número já aceso no painel.

5.

Deu um pulo para trás. “Como?”, perguntava-se. Foi ali, finalmente, talvez com certo atraso, que Dênis se deu conta do que todos aqueles números significavam: era uma contagem regressiva. Mas para quê? O que aconteceria quando ela chegasse a zero?

Apavorado, saiu do elevador e desceu os oito andares pela escada. Atravessou correndo o hall de entrada do prédio e pulou para a calçada. Enquanto seguia em passo acelerado em direção ao seu carro, esbarrou em uma mulher carregando sacolas de supermercado. Ambos caíram e Dênis pediu desculpas.

Quando se levantou, seu olhar correu para uma forma no céu. Em meio ao azul total de um dia de primavera, pairava uma única nuvem, em um formato que gelou sua espinha. Um número.

4.

Dênis desesperou-se e começou mais uma correria desenfreada, desviando das pessoas na calçada, que não entendiam o que acontecia com aquele maluco engravatado. Finalmente chegou ao carro, deu a partida e acelerou. Não sabia para onde ir, apenas que precisava sair dali. Sua casa não era um bom destino, já que eles – fossem quem fossem – haviam estado lá. Pensou em ir à casa dos pais ou ficar dirigindo à toa, mas nada parecia uma boa escolha.

Enquanto decidia, percebeu que, por mais que acelerasse, o velocímetro do carro permanecia parado em um número.

3.

O coração de Dênis começou a pular dentro do peito. Com medo de bater o carro, parou o veículo na primeira vaga e desceu. Caminhava a esmo, olhando para todos os lados, paranoico, esperando que alguém surgisse a qualquer momento.

Pensou em parar um policial ou simplesmente pedir ajuda a outra pessoa, mas não sabia quem estava envolvido naquilo. Todos eram suspeitos. Dênis precisava encarar a situação sozinho, independente do que fosse acontecer.

De tanto caminhar, perdeu o fôlego. Apoiou-se com um braço em uma parede para respirar, baixando a cabeça. Quando a reergueu, deu de cara com um adesivo na vitrine da loja à sua frente. Era outro número.

2.

Estava chegando. A contagem regressiva aproximava-se do fim. Dênis quis ligar para seus pais e amigos para dizer que os amava, mas não conseguiu. Suas mãos tremiam sem parar diante do fim iminente.

Sentou-se na calçada e começou a chorar. As pessoas olhavam com curiosidade, mas ninguém parou para oferecer ajuda. Subitamente, uma rajada de vento fez com que um pedaço de papel voasse em sua direção. O objeto oscilou, dançou, circulou e terminou sua viagem diretamente no rosto de Dênis.

Ele pegou o papel com as duas mãos e o colocou em frente aos olhos. Estava escrito aquilo que ele mais temia. Um simples e aterrorizante número.

1.

Dênis desistiu. Para onde corria, os números sempre o encontravam. De nada adiantava seu esforço. Sem forças ou ânimo, resignou-se ao seu destino. Começou a caminhar lentamente de volta ao carro, repensando sua vida e listando tudo o que havia feito e deixado de fazer até ali.

Agora, sorria para as pessoas. Roçava os dedos nas folhas das árvores e nas texturas das paredes. O desespero transformou-se em serenidade. Em aceitação.

Dênis chegou ao carro e dirigiu de volta para casa, tranquilamente. Sabia que o número zero chegaria a qualquer momento e, com ele, o indelével final daquela jornada.

Estacionou em seu prédio, entrou no elevador e subiu ao seu andar. Caminhou os poucos passos até o seu apartamento em um estado de transe, como se sua mente estivesse em um lugar calmo. Retirou a chave do bolso e olhou para número preso à sua porta. Apenas um algarismo de metal permanecia ali, solitário.

0.

Era agora. A contagem regressiva havia acabado. Quem o estava perseguindo, quem o torturava daquela maneira, apareceria naquele momento. O que tivesse que acontecer, aconteceria naquele exato instante.

Dênis respirou fundo, girou as chaves e entrou no apartamento. Sem pressa, caminhou até o sofá, retirou os sapatos e se deitou, aguardando tranquilamente o fatídico e derradeiro golpe. Fechou os olhos, aceitando o fim.

E dormiu.

Acordou desnorteado, tentando entender o que acontecia. Olhou em volta, demorando alguns segundos para perceber que estava em casa. Finalmente, deu-se conta de que estava vivo. Nada havia acontecido. Dênis começou a procurar pela casa por algo diferente. Nada. Ligou para amigos, ligou para seus pais. Também nada. Entrou na Internet para ver alguma tragédia que poderia ter ocorrido. Nada mais uma vez.

Não entendia. O que teria sido aquela contagem regressiva? Tudo parecia exatamente igual.

Decidiu tomar um café da manhã para reorganizar seus pensamentos. Precisava se acalmar. Caminhou até a porta da geladeira. Enquanto estendia o braço para abri-la, tomou um susto. Deu um pulo para trás. Permaneceu alguns segundos encarando fixamente, imóvel, com olhos arregalados, a forma de seus ímãs na porta. Estavam posicionados de forma diferente do normal. No início, não acreditou, mas ali estava. Era inegável. Diante de seus olhos, eles formavam um número. Um curioso e assustador número. Um número que Dênis jamais esqueceria.


-1.