Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Tuesday, January 31, 2006

Auto-Engano/Felicidade




Admito que se visse estes dois livros em alguma livraria eu não comprava. Provavelmente os tiraria pra obras de auto-ajuda, gênero que tenho repulsa. Auto-engano e Felicidade, de Eduardo Giannetti, foram indicadas por alguém cuja opinião eu confio, e acabei dando uma chance. O que posso dizer é que, após ter lido os dois livros, sinto-me uma pessoa muito melhor. Sinto-me muito mais completo. E não é exagero. Giannetti é um dos grandes pensadores do Brasil. Profundo conhecedor da história das idéias, o autor realiza em Auto-engano uma avassaladora dissecação da mente humana e daquilo que ela realiza para nos livrar das dificuldades da vida. A impossibilidade de conviver com uma imagem repulsiva de si próprio por muito tempo, resultando, assim, no auto-engano que faz o ser humano acreditar que o problema que o problema que aflige outro não o aflige, ainda que isso realmente aconteça, é apenas um dos temas aprofundados por Giannetti. O objetivo do autor não é fornecer fórmulas para viver melhor, mas mostrar, com embasamento teórico e alta consciência do que fala, por que o ser humano age como age. Já em Felicidade, o autor assume de vez o caráter filosófico da sua obra ao construir diversas opiniões e conceitos a respeito do tema que dá nome ao livro, através de diálogos entre quatro personagens. A relação entre o progresso e a felicidade (“a civilização entristece o animal humano?”) é, talvez, o principal assunto a ser abordado. Mais do que oferecer respostas, Giannetti propõe questões difíceis de serem respondidas, verdadeiro papel da filosofia. São dois livros que exigem atenção e reflexão para serem aproveitados em sua totalidade. Quem se dispor a entrar nessa viagem, porém, certamente voltará dela com uma nova compreensão a respeito de certos assuntos.

Monday, January 30, 2006

A Casa dos Budas Ditosos


A Casa dos Budas Ditosos é um livro difícil de se encaixar em alguma definição. Humor? Com certeza, há passagens hilárias. Biografia? Não deixa de ser, já que supostamente conta a história da vida de uma mulher. Pornografia? Indiscutivelmente. Mistério? Em parte, uma vez que a suposta autora segura até o final a revelação da doença que a aflige. João Ubaldo Ribeiro assina o livro, atribuindo a autoria a uma velhinha devassa que enviou suas memórias a ele. Pura estratégia de marketing, mas faz parte do charme do livro. Na verdade, falar charme é pegar leve com a obra. A Casa dos Budas Ditosos é um livro que certamente deve ter despertado a repulsa de muitas pessoas que tiveram acesso às suas palavras. Isso porque o autor não poupa ninguém, tirando sarro o tempo inteiro dos puritanos e hipócrita ao descrever em detalhes explícitos as experiências sexuais da personagem/autora. E não é pouca coisa. Sexo com o irmão, com o tio, com homens, com mulheres, padres, freiras e muito mais, sempre tratando como se fosse a coisa mais natural do mundo. Misturado a tudo isso, a velhinha ainda aproveita para demonstrar sua erudição, utilizando citações e fazendo referências a grandes pensadores. O resultado? Uma obra divertida de ler – para quem não tem problemas em entrar em contato com um material dessa liberdade –, pornográfica e escrita de maneira tão envolvente que o desejo que fica é não largar o livro. Ou conhecer a velhinha. Fernanda Torres era a estrela de uma peça baseada na obra, que, pelo que recordo, não passou por aqui. Divirtam-se com o livro, então.

Saturday, January 28, 2006

LARANJA MECÂNICA


LARANJA MECÂNICA (A CLOCKWORK ORANGE) *****
De Stanley Kubrick. Com Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates e Warren Clark.

28/12/05 – Silvio Pilau


É difícil para as gerações mais novas (eu incluso) compreenderem filmes como Laranja Mecânica em sua totalidade. Isto pelo simples fato de não terem acesso ou lembranças do impacto que o lançamento de obras como a de Kubrick causaram em suas épocas. O mundo era muito diferente quando Laranja Mecânica chegou aos cinemas e, de certa forma, o próprio cinema era muito diferente. Porém, conquanto muito tenha mudado desde então, estas obras conseguem manter-se atuais ao longo dos anos, em grande parte devido às suas mensagens atemporais. É essa longevidade que caracteriza um clássico. E é por isso que Laranja Mecânica continua uma obra quase intocável, mesmo com as gerações mais novas.

Roteirizado pelo próprio Kubrick a partir da obra literária de Anthony Burgess, o filme segue a trajetória de Alex, um jovem morador de alguma cidade inglesa em um futuro próximo. Na companhia de seus amigos, ou drugues, como os chama, Alex tem o costume de praticar atos de violência, como estupro, espancamento e até assassinato por simples prazer. Porém, quando capturado pela polícia, Alex é submetido a um tratamento inovador que busca eliminar o instinto violento de criminosos como ele.
Laranja Mecânica tem mais de 30 anos de existência e, mesmo assim, conta-se nos dedos os filmes que conseguem ser tão completos quanto ele. Mais do que um impecável exemplo de utilização da técnica cinematográfica, Laranja Mecânica consegue levantar uma série de questões de cunho social e filosófico, constantemente indagando o espectador sobre os mais diversos assuntos.
O roteiro brilhantemente construído por Kubrick é de uma riqueza impressionante. Pontuado por uma incômoda ironia, o cineasta apresenta um mundo que, superficialmente, difere em muito do nosso, mas traz em sua essência os mesmos valores e problemas que enfrentamos, tanto hoje quanto na época de lançamento no filme. Desta forma, ao situar a trama em algum ponto indefinido do futuro, Kubrick realiza uma espécie de sátira, repleta de humor negro, para transmitir suas idéias.
Ao contrário do que muitos já disseram, Laranja Mecânica não é um libelo contra ou mesmo a favor da violência. A trama do filme não se posiciona a este respeito, preferindo apenas mostrar que a violência é algo intrínseco ao ser humano e que, por fazer parte de seus instintos básicos, não adianta reprimi-la.

E é fascinante acompanhar a sagacidade do roteiro de Kubrick. Para mostrar como a violência não é exclusiva de Alex e seus amigos, o cineasta faz com que as mesmas vítimas do bando ajam de forma semelhante quando têm a chance. É uma espécia de círculo vicioso de violência.

Mas a trama do filme não é unicamente sobre a violência. Ao longo das mais de duas horas de produção, Kubrick encontra espaço para tocar em temas como a liberdade de cada pessoa dentro de uma sociedade ou mesmo a influência que o meio provoca sobre o indivíduo. Na primeira questão, Kubrick envereda por um assunto semelhante ao levantado pelo recente Minority Report: até que ponto pode-se ceder a liberdade em prol de um bem maior? Qual seria o limite? Em certo momento, um dos personagens afirma: “Quando um homem não pode escolher, deixa de ser homem”.

Mas tão importante quanto o que Laranja Mecânica tem a dizer é a forma como Kubrick diz. Assim como toda obra do diretor, a narrativa é irrepreensível, contando com um requinte visual e um domínio da técnica cinematográfica que talvez ainda não tenha sido igualado por outro cineasta. Sabe-se que Kubrick era perfeccionista ao extremo e tal dedicação é percebida em cada instante de Laranja Mecânica.

Desde a impecável cena inicial com Alex olhando fixamente para a câmera ao final aberto a interpretações, Laranja Mecânica parece ter sido concebido com muita calma e preciosismo. A impressão que fica é a de que cada plano - e, conseqüentemente, cada gesto dos atores e objetos colocados em cena – foi exaustivamente estudado, ponderando a participação dos mínimos detalhes que aparecem na tela. Kubrick tem a capacidade de tirar o máximo de cada tomada. É a forma completando o conteúdo.

Assim, Laranja Mecânica possui seqüências brilhantemente concebidas e executadas, trazendo imagens que já se tornaram icônicas. Cenas como a de Alex no tratamento Ludovico, com os olhos arregalados, ou o espancamento ao som de Singin’ in the Rain ou Beethoven tornaram-se parte do imaginário da cultura ocidental.

A música, aliás, como é comum nas obras de Kubrick, é parte essencial de Laranja Mecânica. O cineasta é capaz de encontrar a sinergia perfeita entre imagem e som, como fica claro nas cenas comentadas no parágrafo acima. Mais do que isso, em Laranja Mecânica a música ainda faz parte da história, uma vez que o personagem é devotado a Beethoven e fica proibido de escutar o mestre após passar pelo tratamento.

Sendo Laranja Mecânica um filme mais de história e forma do que de personagens, há pouco espaço para os atores brilharem. O único que recebe devido tempo em tela para isso é Malcolm McDowell, no papel de Alex, e ele encarna a oportunidade com grande devoção. Seu Alex passa pelos mais diversos estados de espírito e o ator transita entre as diferentes mudanças com talento. Reparem na diferença entre o Alex do início do filme, o Alex da prisão e o Alex perdido, após a cena em que ele é recusado por seus pais quando volta para casa.

Polêmico (há uma cena em que o protagonista se imagina flagelando Cristo na cruz), porém divertido, Laranja Mecânica é um filme obrigatório de ser assistido. Certamente, nem todos irão gostar e menos irão entender tudo aquilo que Kubrick quis dizer com a obra. Esta, porém, é uma das grandes qualidades de Laranja Mecânica: além da técnica e da narrativa irrepreensíveis, o filme levanta muitas questões e é passível de múltiplas interpretações. Resta ao espectador tirar as suas.

Friday, January 27, 2006

Ser Feliz


Olho pra minha prateleira de livros e vejo uma pilha de, mais ou menos, uns vinte não-lidos. E é uma pilha que não pára de crescer. Resquícios da Feira do Livro, misturado com presentes de formatura e outros empréstimos. Foi o que falei para um amigo quando ele me indicou uma obra chamada “Ser Feliz”, de Will Ferguson. Olhei para a capa e disse: “Auto-ajuda não”. Ele: “Lê”. Li o resumo e simplesmente esqueci da pilha de livros na prateleira. Passei o “Ser Feliz” na frente de todos, tamanho o interesse que tive pela obra. A história parte de uma idéia genial: um editor de livros recebe o manuscrito de uma obra de auto-ajuda de mais de mil páginas. Após alguns eventos, consegue publicar o livro, sem jamais esperar o que poderia acontecer. A obra, com o nome “O que aprendi na montanha” torna-se uma febre mundial, vendendo mais do que qualquer outro livro já escrito. Mas esta não era uma publicação normal de auto-ajuda. Pela primeira vez, os mandamentos do livro são seguidos à risca, causando uma onde de felicidade em todo o planeta. As pessoas não se irritam mais, se aceitam como são, largam seus empregos. Pouco a pouco, a sociedade como conhecemos começa a ruir, o mundo entra em colapso. Este é o enredo de “Ser Feliz”, um livro simplesmente genial que consegue combinar tudo aquilo que se espera de uma peça de arte. É profundo, levantando uma série de questões a respeito do ser humano e de seu papel no mundo, é extremamente agradável de ler, especialmente graças ao corrosivo humor do autor (as cenas em que o personagem chuta o gato da mulher são hilárias) e, de quebra, ainda faz uma crítica a essa febre de auto-ajuda que ocorre atualmente. A narrativa cinematográfica, com capítulos curtos, engana, trazendo reflexões interessantíssimas sobre os mais diversos assuntos: felicidade, comportamento, dinheiro, morte e muito mais. “Ser Feliz” é aquilo que os americanos chamam de page-turner, aquele livro difícil de largar. Não li notícias ou críticas a respeito, mas não deve ser difícil de achar, porque é bem recente. A recomendação tá feita.

Thursday, January 19, 2006

Palavras?




Sem palavras no momento.

Parte da História

- Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a sua colaboração em nome de toda a emissora. Nossos telespectadores procuram resposta há anos. Sei que é a primeira vez que vai falar sobre o assunto, não?
- Primeira vez que vou falar sobre meus motivos.
- E por que agora? Por que vinte e nove anos depois?
- Surgiu uma necessidade. Precisava contá-la.
- Que necessidade era essa?
- Vamos por partes. Deixemos isto para o final.
- Tudo bem, como o senhor quiser. Como foi a sua infância?
- Não tive infância problemática, se é isso que quer saber. Meu pai não bebia, não batia em mim ou na minha mãe, minha mãe não saía dormindo com qualquer um e eu nunca precisei roubar para comer. Não tive a típica criação de um serial killer.
- Então o senhor se considera um serial killer?
- De certa forma.
- O que quer dizer com “de certa forma”?
- Eu matei pessoas, minha querida. Mais de uma. Isso me faz um serial killer. Mas não sou um criminoso qualquer. Não tenho distúrbios psicológicos e não matei para satisfazer um instinto assassino.
- Sr. Von Hagen, desculpe-me a franqueza, mas todas as pessoas com distúrbio mental acreditam serem sãs.
- As que realmente o são também.
- E o senhor se encaixa na segunda categoria?
- Sim.
- E por que, então, matou sete pessoas?
- A culpa foi toda da polícia.
- Da polícia? Como assim?
- Digo que se não fosse a polícia, apenas uma pessoa teria morrido. Seis outras vidas poderiam ter sido salvas.
- De que forma?
- Eu só queria matar uma. Só a primeira. Mas eles foram incompetentes. Não conseguiram me pegar. Tive que continuar.
- Pela forma que o senhor fala, parece que queria ser capturado.
- Com certeza. Este era o meu objetivo.
- Seu objetivo era ir para a prisão?
- Sim. Desde o início.
- Foi por isso que matou todas estas pessoas?
- Foi por isso que matei a primeira. Matei o resto porque a polícia é estúpida.
- E por que queria ir para a prisão? Pergunto isso porque o senhor tinha uma carreira de sucesso e uma vida que parecia estável.
- E era. Estava satisfeito com a minha vida. Com exceção de algumas coisas, como acontece com todos.
- Tipo?
- Tempo. O problema todo foi tempo. Matei por causa do tempo.
- Por que tinha tempo de sobra?
- Não. Porque me faltava.
- Não sei se estou conseguindo acompanhá-lo, sr. Von Hagen. O senhor estava satisfeito com a sua vida, mas queria ir para a prisão. E agora diz que matou por que lhe faltava tempo? Qual dos dois?
- Ambos, minha querida. Matei porque indo para a prisão eu teria mais tempo.
- Tempo para que, sr. Von Hagen?
- Para ler.
- Ler?
- Sim, ler. Não arranjava tempo para ler enquanto vivia minha vida fora daqui.
- Mas ler o quê?
- Tudo. Tudo o que me dava vontade. Cada vez mais eu arranjava coisas para ler e menos tempo para terminá-las.
- E por que não se demitiu do seu emprego, simplesmente?
- E iria sobreviver como? Aqui na prisão tenho tudo o que eu preciso. Comida, cama e um acesso à biblioteca. E eu sabia que, graças à minha formação, seria tratado de forma diferente aqui dentro.
- Então o senhor matou sete pessoas para ter tempo para ler?
- Não. Já lhe disse. Matei uma pessoa com este objetivo. As outras foram culpa da polícia.
- E o senhor acha que valeu a pena? De que adianta aprender tanto e estar fora do convívio social?
- Eu aprendi para me tornar uma pessoa melhor. Não para mostrar aos outros que virei uma.
- E quando você vai saber quando se tornou esta pessoa?
- Há um trecho em um livro de Somerset Maugham no qual o personagem é questionado sobre o que fará assim que se tornar sábio. Ele responde: “Quando eu chegar lá, espero ser sábio o suficiente para saber o que fazer”. Enquanto isso, continuamos. Eu e ele.
- Então você pretende continuar na prisão por mais tempo?
- Com certeza.
- Mas ano que vem, após trinta anos, o senhor estará livre. Isso significa que pretende matar de novo quando voltar às ruas?
- Não vou voltar às ruas.
- O que pretende fazer, então?
- Arranjar minha oitava vítima aqui dentro.
- Algum preso? Um guarda?
- Não, nada disso. Meu plano já está em prática.
- Que plano é esse?
- A primeira parte era trazer alguém de fora para cá, utilizando algum pretexto.
- E como vai fazer isto?
- Isso já foi feito.
- Quer dizer que a oitava vítima já se encontra aqui na prisão?
- Sim.
- Que pretexto o senhor usou para trazê-la?
- Uma entrevista para contar minha história.
- ...
- Obrigado por ter vindo.

Thursday, January 12, 2006

Os Três Mosqueteiros

Acabei ontem de ler “Os Três Mosqueteiros”. Acho que todo mundo já conhece ou pelo menos já ouviu falar na história concebida por Alexandre Dumas (o pai). D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis, “um por todos e todos por um” e mais outras coisas que já nos acostumamos a ver em dezenas de filmes, peças de teatro e até desenho animado. “Os Três Mosqueteiros” é um grande épico e um livro imenso, com centenas de personagens. Mas a narrativa de Dumas é simplesmente brilhante. O autor constrói os personagens e todo o cenário que os cerca de forma genial e a vontade é de ler o livro todo de uma só vez. Depois que se conhece o trio, que na verdade é um quarteto, é difícil de se separar deles. Pontuado por um constante e irresistível bom-humor, Dumas conta uma história de honra, de orgulho, de vinganças, de intrigas e de traições, com personagens bem construídos e carismáticos. Fiquei sabendo, enquanto ainda lia o livro, que Dumas era pago por palavra. Talvez seja este o motivo pelo qual a obra seja tão grande, porque fica claro que muito poderia ter sido cortado. São inúmeras subtramas que parecem apenas encher lingüiça e que, apesar de deliciosas de ler, pouco têm a ver com a trama principal. Mas isso é o de menos. “Os Três Mosqueteiros” é uma leitura prazerosa e de altíssima qualidade, ainda que não tão rápida. Quem ainda não leu, dê uma chance. Entregue-se nas mãos dos fidalgos de Dumas que a diversão é garantida.

Monday, January 09, 2006

Reescrevendo a Obra-Prima


Quantas vezes já foi dito que o corpo humano é perfeito? Que é a obra-prima da natureza? Ou de Deus, para quem acredita no barbudo lá em cima? Ouso discordar. Dizer que nosso corpo é perfeito é coisa de quem se satisfaz com pouco ou com aquilo que tem. Porque o corpo humano poderia ser melhor. Muito melhor. Quer ver?

Vou começar pelo óbvio: braços. Por que apenas dois? É mais do que comum pedir um favor a alguém e ouvir como resposta: “calma, eu só tenho duas mãos”. Pois não precisava ser assim. Se o corpo humano fosse perfeito, teríamos três ou quatro braços. Imagine como facilitaria nossa vida apenas um braço a mais. Poderíamos executar tarefas com muito mais rapidez, ganhando tempo para fazer outras coisas.

E, já que comecei falando dos braços, seguimos neles. Acredito que também poderiam ser elásticos. Eu já passei por situações nas quais, bem deitado na minha cama ou atirado no sofá, tive que me levantar para alcançar determinado objeto. Poucas coisas no mundo são piores do que isso e acredito que muitos pensam da mesma forma. Em um momento de total e completa preguiça, ser retirado do ócio por não ter a devida elasticidade para buscar alguma coisa é frustrante.

Outra coisa que poderia ser diferente é o número de olhos. Custava ter um olho na parte de trás da cabeça? Uma visão 360 graus? Imaginem só: caminhar tranqüilamente na rua, sem ficar pensando sem tem uma pessoa nos seguindo. Quando alguém chamasse pelo seu nome, não seria preciso virar todo o corpo, naquele esforço monumental e exaustivo, especialmente para os adeptos da preguiça, como eu.

E continuo nos olhos. Não dá pra se satisfazer com os que a gente tem. Pois vejamos: o gato enxerga no escuro, a visão da águia tem o alcance de não sei quantos quilômetros e a mosca pode ver a cor ultravioleta. Enquanto isso, o ser humano fica com essas duas bolotas brancas que, com muita freqüência, precisam de lentes de vidro para funcionar direito. Sacanagem, não?

Acredito que já apresentei alguns bons argumentos para refutar a idéia de que o corpo humano é perfeito, mas vou seguir mais um pouco. E a questão agora é o metabolismo. Sabe-se que a velocidade do metabolismo de cada pessoa é diferente, mas por que diabos ele não segue o critério do prazer que a pessoa tem com a comida? Se o cidadão adora comer, ele deveria ser veloz. Se a pessoa só come por obrigação, ele deveria ser lento. Seria muito melhor comer sem a preocupação de engordar ou ficar muito magro.

E o apêndice? Ah, o apêndice. Ô, coisa chata. O que faz este troço nojento na nossa barriga? Não serve pra nada a não ser se inflamar e ser retirado com urgência. Por que não dois fígados ao invés deste corpo inútil dentro do organismo? Com certeza um outro fígado, ainda que menor, de reserva, seria muito melhor aproveitado do que o tal de apêndice.

Outra mudança bem-vinda seria em relação ao sono. O ideal seria haver um controle em relação a ele: quando quiséssemos dormir, dormiríamos. Nada de ficar duelando contra o abraço de Morfeu. Todos já devem ter enfrentado situações nas quais existia o desejo de ficar acordado, mas o sono venceu. Seria muito mais simples dormir quando tivéssemos tempo ou vontade. Algo como uma cota mensal de sono. Por exemplo, todo ser humano deve dormir 250 horas por mês. E aí o problema seria de cada um, sendo cada indivíduo o responsável para fechar esta carga horária.

Se o corpo humano fosse perfeito, as mulheres não ficariam sangrando por dias todos os meses, naquele processo que altera até o humor delas. Se o corpo humano fosse perfeito, os homens não sofreriam com câncer de próstata, evitando a necessidade de passar por aquele teste embaraçoso – e pavoroso – para a grande maioria.

Se o corpo humano fosse perfeito, possuiríamos guelras para respirar embaixo d’água e os cabelos, unhas e barba ficariam do modo que deixamos a última vez, eliminando a chatice de ter que cortá-los com freqüência. Se o corpo humano fosse perfeito, teríamos uma regulagem na bexiga, para mijarmos apenas quando fosse conveniente e a vontade não aparecesse no meio da projeção de um filme no cinema.

Com certeza você que está lendo este texto já pensou em algumas coisas que acha que poderiam ser melhores no corpo humano. E quem pensa que a visão de seres com três braços, um olho atrás da cabeça e guelras seria uma visão assustadora, eu digo que tudo isso é questão de costume. Se fôssemos assim desde o princípio dos tempos, seria normal. Ou você acha que alienígenas achariam Angelina Jolie bonita? Para eles, ela seria uma aberração.

Se bem que, agora, pensando em Angelina Jolie, retiro tudo o que escrevi. O corpo humano é perfeito, sim. Alguns, pelo menos.

Thursday, January 05, 2006

BALANÇO 2005


Como já é tradição em final de ano velho/início de ano novo, aqui está a minha lista dos melhores e piores filmes que chegaram ao Brasil em 2005. Dessa vez, vou cortar todo o papinho que eu fazia antes da lista, por dois motivos: primeiro, por falta de tempo mesmo; segundo, porque eu perdi uns dois meses de filmes por causa da monografia. Então, essa lista está longe de ser completa. Alguns filmes que, pelos comentários, certamente entrariam em algumas dessas listas (Crash, O Jardineiro Fiel, Marcas da Violência) acabaram ficando de fora pelo simples fato de eu não ter assistido a estas produções. Lembrando, mais uma vez, que aqui só estão compilados os filmes que eu assisti que chegaram ao Brasil este ano. Eis a lista:

PIORES FILMES DO ANO (o número 10 é o 10o pior, o 9 é o 9o pior e assim por diante, até o número 1, que é o pior de todos)

10) Reencarnação (Birth) – EUA
Pior do que um filme ruim, só um filme ruim que tenta passar por obra-prima. É o caso desta porcaria. O diretor Jonathan Glazer busca dar um significado que não existe a todas as cenas, fazendo uma obra vazia e pretensiosa. De bom, só a presença de Nicole Kidman, sempre ótima.

9) Refém (Hostage) – EUA
Poderia ser um enlatado de ação suportável, mas Refém se perde na tentativa de ser algo mais. A construção do personagem de Bruce Willis é lamentável, com um trauma que só enrola a trama. Cenas de ação sem graça e um roteiro idiota que nem o carisma de Willis consegue salvar.

8) O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre) – EUA
Esta refilmagem de um clássico de terror dos anos 70 não chega nem aos pés do original. Todo o clima angustiante que existia na obra anterior se perdeu nesta versão, que prefere colocar Jessica Biel fugindo durante quase toda a projeção. Até a família bizarra de Leatherface perdeu sua bizarrice. No final, gritaria e correria sem a menor tensão.

7) Vozes do Além (White Noise) – EUA
Um filme que parte de um princípio interessante, mas que pouco a pouco vai se desmoronando até o final inacreditável de tão ruim. Michael Keaton atinge o fundo do poço em sua carreira neste terror/drama/nada que insulta a inteligência do espectador.

6) A Sogra (Monster In-Law) – EUA
Jennifer Lopez continuar insistindo em ser atriz é algo que não entra na minha cabeça. Ela parece pior a cada filme e A Sogra é o mais recente exemplo disso. Uma comédia sem a menor graça e com cenas constrangedoras para os atores, especialmente Jane Fonda, que merecia um veículo melhor para o seu retorno às telas.

5) Elektra – EUA
Tenho uma simpatia por Jennifer Garner. Apesar de ela nada ter feito de bom no cinema, acredito que ela seja uma boa atriz. Mas Elektra ainda não foi o filme que fez a bela estourar. E com justiça. A produção é lamentável, com uma história que não faz o menor sentido e cenas de ação de fazer bocejar. Para piorar, há a tentativa em realizar um drama na relação entre Elektra e a garotinha, algo que, como era de se esperar, chega quase ao ponto do risível de tão mal conduzido.

4) O Chamado 2 (The Ring 2) – EUA
Continuação que em nada lembra o assustador filme original. Na verdade, pouco tem de continuação, uma vez que a história é completamente distorcida em relação à primeira obra. Naomi Watts faz o que pode, mas O Chamado 2 não causa medo, não prende a atenção e não faz o menor sentido.

3) Operação Babá (The Pacifier) – EUA
Além de copiar descaradamente o conceito de Um Tira no Jardim de Infância, este filme não consegue se sustentar com suas próprias pernas. Vin Diesel tem carisma, sim, mas revela não possuir timing para a comédia. É uma comédia que não faz rir em nenhum momento e isso basta para colocar Operação Babá nesta lista.

2) Blade: Trinity – EUA
É surpresa para mim colocar o terceiro capítulo da série Blade nesta lista. Gosto dos dois primeiros, especialmente do segundo, mas Blade: Trinity é intragável. Toda a aura, digamos “cool” que envolvia o personagem foi dissipada, restando um filme sem personalidade alguma e, pior, totalmente sem graça. Um pena a trilogia Blade encerrar dessa forma.

1) O Grito (The Grudge) – EUA
Estreou no início do ano esta refilmagem de um filme japonês de terror, mas conseguiu se manter no topo da lista dos piores até o final. O Grito não é nada, não tem história, não tem sustos, não tem tensão, não tem sentido. É uma coletânea de sustos baratos sem a menor coesão. Uma bagunça que merece a honra da liderança nessa lista.

Menções Honrosas

Meu Vizinho Mafioso 2 (The Whole Ten Yards) - EUA
O Vôo da Fênix (The Flight of the Phoenix) - EUA
Amigo Oculto (Hide and Seek) - EUA
O Casamento de Romeu e Julieta - Brasil
Be Cool – O Outro Nome do Jogo (Be Cool) - EUA
Sahara - EUA
Cruzada (Kingdom of Heaven) - EUA
Guia do Mochileiro das Galáxias (The Hitchhiker’s Guide to the Galaxy) - EUA

MELHORES FILMES DO ANO (o número 10 é o 10o melhor, o número 9 é o 9o melhor e assim por diante, até o número 1, que é o melhor filme do ano)

10) Vozes Inocentes (Voces Inocentes) – México/EUA/Porto Rico
Uma belíssima e pouco assistida produção, Vozes Inocentes conta uma história com forte mensagem social sem jamais esquecer dos personagens. Mostrando a guerra através dos olhos de uma criança (o excelente Carlos Padilla), o diretor Luis Mandoki encontra o equilíbrio certo entre a emoção e a angústia, revelando ainda um pedaço da História pouco conhecida. Uma pérola a ser descoberta.

9) O Aviador (The Aviator) – EUA
O Aviador marca o retorno de Martin Scorsese ao rol dos grandes cineastas após alguns anos de trabalhos irregulares. Com uma suntuosidade insuspeitada para o diretor, o filme retrata brilhantemente a personalidade de Howard Hughes, em uma narrativa impecável pontuada por cenas inesquecíveis.

8) Em Busca da Terra do Nunca (Finding Neverland) – EUA
É simplesmente o filme que mais me fez chorar no cinema nos últimos anos. Simples assim. E isso graças a uma belíssima e inspiradora história, contada com sensibilidade exacerbada pelo diretor Marc Foster. Johnny Depp está perfeito no papel principal e sua dinâmica com o garotinho Freddie Highmore é brilhante. A meia hora final é de deixar a cara inchada de qualquer pessoa com um coração.

7) A Queda – As Últimas Horas de Hitler (Der Untergang) – Alemanha/Itália/Áustria
Contundente produção sobre os momentos finais do nazismo e de seu maior líder, A Queda hipnotiza o espectador em quase duas horas e meia de projeção, especialmente graças à interpretação sobrenatural de Bruno Ganz no papel principal. O desespero e a insanidade de Hitler são capturados de forma magistral pelo diretor Oliver Hirschbiegel, que ainda aproveita o clima claustrofóbico do bunker para criar cenas de forte impacto.

6) Star Wars: Episódio III – A Vingança dos Sith (Star Wars: Episode III – The Revenge of the Sith) – EUA
Finalmente os fãs não puderam reclamar. O último capítulo recuperou toda a magia da maior saga do Cinema, em uma produção de encher os olhos. Lucas acertou ao deixar de lado o clima juvenil das duas obras anteriores e fez de A Vingança dos Sith uma tragédia sombria e empolgante. Apesar de uma ou outra pieguice, o roteiro encaixou e as cenas de ação funcionaram. Um verdadeiro presente para os fãs.

5) Closer – Perto Demais (Closer) – EUA
Closer é uma análise devastadora das relações amorosas. Com uma crueza impressionante, o diretor Mike Nichols constrói uma teia entre dois casais cujos integrantes não hesitam em machucar uns aos outros quando decepcionados. Atuações exemplares, roteiro impecável e direção segura fazem de Closer um dos melhores e mais surpreendentes filmes do ano.

4) Hotel Ruanda (Hotel Rwanda) – EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul
Incrivelmente poderoso, Hotel Ruanda é capaz de assombrar o espectador por um bom tempo após o término da sessão. Baseado em uma história real, a história de Paul Rusesabagina (interpretado de forma fabulosa por Don Cheadle) é inspiradora, sem jamais apelar para soluções fáceis e momentos melodramáticos. Méritos do diretor Terry George, que consegue chocar e emocionar em doses corretas, além de realizar uma crítica à comunidade internacional.

3) Maria Cheia de Graça (Maria Full of Grace) – Colômbia/EUA
O que mais impressiona Maria Cheia de Graça é a segurança com que o diretor Joshua Marston conta sua história. Sem excessos, clichês ou qualquer apelo excessivamente dramático, o filme é um retrato realista e emocionante da vida de uma personagem baseada em diversas histórias semelhantes. A construção da protagonista é cuidadosa, resultando em uma das personagens mais tridimensionais do ano graças à brilhante atuação de Catalina Sandino Moreno. Impactante e real.

2) Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset) – EUA
O filme mais mágico do ano. O trio Richard Linklater, Ethan Hawke e Julie Deply acertaram novamente na continuação de Antes do Amanhecer. Baseado quase que unicamente em diálogos entre os dois protagonistas, Antes do Pôr-do-Sol atinge níveis poucas vezes igualados de sensibilidade e inteligência. Os personagens são reais e a relação é palpável – sente-se a paixão crescendo entre os dois. Um filme simples, singelo e extremamente recompensador.

1) Sin City – A Cidade do Pecado (Sin City) - EUA
O melhor filme do ano é completamente diferente do segundo colocado, mas tão imperdível e espetacular quanto. A adaptação da HQ é um projeto visionário de Robert Rodrigues, que transpôs para as telas o mesmo visual e tom do trabalho gráfico de Frank Miller. O resultado é um filme esteticamente arrebatador, que enche os olhos a cada segundo. Mais do que isso, porém, Sin City tem com um roteiro brilhante, oferecendo diálogos impecáveis e personagens inesquecíveis, com atuações inspiradas de todo o elenco. Uma obra-prima em todos os sentidos: violenta, sanguinária e deliciosa de assistir.

Menções Honrosas

Clã das Adagas Voadoras (Shi mian mai fu) – China/Hong Kong
A Intérprete (The Interpreter) - EUA
Hora de Voltar (Garden State) - EUA
King Kong - EUA
Batman Begins - EUA
Mar Adentro – Espanha/França/Itália
2 Filhos de Francisco - Brasil
Casa de Areia e Névoa (House of Sand and Fog) - EUA
Sideways – Entre Umas e Outras (Sideways) - EUA
Menina de Ouro (Million Dollar Baby) - EUA
Herói (Ying Xiong) – China/Hong Kong

PIOR ATRIZ

1) Téa Leoni (Espanglês)
2) Sarah Michelle Gellar (O Grito)
3) Jennifer Lopez (A Sogra)

MELHOR ATRIZ

1) Julie Delpy (Antes do Pôr-do-Sol)
2) Catalina Sandino Moreno (Maria Cheia de Graça)
3) Hillary Swank (Menina de Ouro)

PIOR ATOR

1) Cary Elwes (Jogos Mortais)
2) Michael Keaton (Vozes do Além)
3) Orlando Bloom (Cruzada)

MELHOR ATOR

1) Jamie Foxx (Ray)
2) Don Cheadle (Hotel Ruanda)
3) Bruno Ganz (A Queda)
4) Johnny Depp (A Fantástica Fábrica de Chocolates)

MELHOR DIRETOR

1) Richard Linklater (Antes do Pôr-do-Sol)
2) Robert Rodriguez (Sin City)
3) Joshua Marston (Maria Cheia de Graça)
4) Martin Scorsese (O Aviador)
5) Peter Jackson (King Kong)

MELHOR CENA

1) Anakin Skywalker colocando a máscara de Darth Vader (Star Wars: Episódio III – A Vingança dos Sith)
2) Kong vs. T-Rex (King Kong)
3) Magda Goebbels envenenando os filhos (A Queda – As Últimas Horas de Hitler)
4) Natalie Portman caminhando ao som de The Blower’s Daughter (Closer – Perto Demais)
5) Viagem de avião para os EUA (Maria Cheia de Graça)
6) Paul Rusesabagina deixando colocando a família no caminhão da ONU (Hotel Ruanda)
7) Jantar com marido e mulher desconfiando um do outro (Sr. e sra. Smith)




Monday, January 02, 2006

Cinco Dólares e um Acerto de Contas

Abriu o tambor de sua Colt 45. Uma, duas, três, quatro, cinco. Cinco balas. Uma das câmaras ficara vazia. Puxou uma nota de cinco dólares que, não obstante a pequena população da cidade, demonstrava já ter passado pelas mãos de muitos homens. Enrolou a nota ainda mais e, cuidadosamente, pô-la na câmara vazia da arma.
- Por que isso? – perguntou espantado o garoto de roupas esfarrapadas que cuidava do cavalo.
O homem sorriu, mostrando que por trás da aparência assustadora existia um ser humano, e olhou nos olhos do garoto.
- Os cinco dólares?
A criança balançou a cabeça afirmativamente, interessada.
- É por precaução. Para que a arma não dispare sem que eu aperte o gatilho, deixo uma câmara vazia.
- E os cinco dólares?
- Os cinco dólares são para o funeral, caso eu seja derrotado.
Estavam apenas os dois no beco atrás da casa do ferreiro da cidade. O cavalo já preso em uma tora de madeira. O garoto, insistente, prosseguia com as perguntas.
- Você vai mesmo enfrentá-lo?
- Vou.
- Dizem que ele já matou muita gente.
O homem colocou a Colt no coldre e passou a mão sobre a cabeça do garoto.
- Já disseram o mesmo de mim – e começou a caminhar, as botas levantando poeira na terra seca. – Fique aqui cuidando do meu cavalo. Volto rápido.
Sob os olhares atentos do garoto, o homem saiu do beco e entrou na rua principal. Ali percebeu a cidade nervosa. As pessoas na rua baixavam o olhar à medida que caminhava. Inclusive aqueles que outrora foram seus amigos temiam o momento que se aproximava.
Passou em frente à sua antiga casa. Sacudiu a cabeça. Não era hora de pensar nisso. Era hora de fazer o que tinha que ser feito.
O único movimento da cidade era seu caminhar. Olhava de relance para as portas e as janelas das casas e via as pessoas ansiosas. Algumas torcendo por ele, outras não.
Pôs a mão sobre a coronha da Colt 45 quando se aproximou do saloon, para se certificar que ela estava realmente ali. Sua companheira. A poucos metros da porta, um homem cortou a sua frente. A estrela dourada reluziu com o poder do sol.
- Ele está aí, xerife?
- Sim – respondeu o outro, com a estrela.
- Chame-o.
- Ele diz que não tem nada para resolver com você.
O homem encarou o xerife diretamente nos olhos. A mão direita não se afastava do coldre.
- Não posso deixar você fazer isso – falou o xerife, aproximando a mão direita da cintura.
- Isso não é seu problema.
- Esqueça tudo.
- Você esqueceria?
O xerife não respondeu.
- Você não é mais esse tipo de pessoa. Já largou essa vida.
- Larguei enquanto tinha uma família. Aquele cara lá dentro me jogou de volta ao passado.
- Ele é mais rápido que você.
Foi a vez do homem com a Colt não responder. Apenas sorriu, como se já tivesse tudo planejado. Os dois se olharam por um momento. Finalmente, o xerife deu dois passos para o lado, abrindo caminho. O homem tocou na ponta do chapéu branco, agradecendo, e adentrou o salão.
Havia bastante gente dentro do local. No entanto, o silêncio reinou no exato instante em que o homem fechou a portinhola vaivém atrás de si. Os olhares se voltaram para ele. Tudo o que se ouvia era a respiração dos freqüentadores. Ele começou a caminhar, percorrendo com o olhar toda a extensão do salão. A madeira estalava sob seus pés a cada passo.
Enxergou o homem que procurava em uma mesa no canto. Usava um chapéu preto e estava sentado com quatro pessoas ao seu lado, despreocupado. Lentamente, o homem que recém havia entrado dirigiu-se até lá. O outro do chapéu preto não se levantou, mas os olhares se encontraram.
Ficaram a poucos metros um do outro.
- Quer ir lá para fora? – perguntou o homem sentado, alisando seu chapéu preto.
Assim que terminou a pergunta, ouviu dois estalos. Desabou para trás com a cadeira, enquanto um filete de sangue escorria por sua testa.
O homem que estava em pé ficou alguns segundos com a mão ainda no cão da sua Colt 45. Sua Peacemaker. Que acabara de fazer jus ao apelido.
Ninguém se mexia. Alguns pareciam surpresos com a forma como tudo se desenrolou. Outros mostravam indiferença.
O homem guardou a arma e saiu do saloon, sem olhar para os lados. Na porta, encontrou o xerife novamente.
- Isso não foi nem um pouco honrado – comentou o xerife.
- Não existe honra em nosso tempo – respondeu rispidamente.
Saiu sob os olhares do xerife, caminhando pela cidade mais uma vez, agora pelo caminho inverso. O garoto permanecia sentado ao lado do cavalo, brincando com a areia e aguardando o retorno do homem.
- Como foi? – o garoto perguntou, ansioso.
O homem não respondeu. Retirou a arma do coldre. Duas balas a menos agora. Abriu o tambor e puxou a nota de cinco dólares amassada em uma das câmaras. Colocou-a na mão do garoto e subiu no cavalo.
Fez um rápido sinal com a cabeça, tocou na ponta do chapéu e bateu as esporas da bota no corpo do animal. Partiu, deixando apenas para trás um redemoinho de poeira e três corpos sem vida. Dois deles, os únicos que jamais amara.