Câncer
Meus olhos arderam. Acordar depois de beber o que tinha bebido não é fácil. Parecia ter escorrido sabonete em minha retina. Voltei a fechá-los por alguns segundos e tentei colocar os pensamentos em ordem. A cabeça pulsava insistentemente. Maldito cérebro batendo contra as paredes do crânio na tentativa de escapar de sua prisão. Dele, eu apenas exigia um pouco de coerência, tentando rememorar os acontecimentos da noite anterior. Nada lembrava. Abri mais uma vez os olhos. O quarto estava escuro, mas a mínima claridade que encontrava espaço através da veneziana já era suficiente para exigir demais de meus olhos, colocando um esgar de dor em minha face. Permaneci na mesma posição por alguns segundos, tentando livrar-me dos resquícios oníricos e acostumar-me novamente com as luzes e formas do mundo real. Sentei-me na beirada da cama, em um esforço hercúleo. O colchão e o travesseiro eram como duas amantes irresistíveis chamando-me para momentos de prazer. Mas não cedi às suas tentações. O corpo doía em todas as suas articulações e músculos e a cabeça continuava prestes a estourar a qualquer momento. Uma bomba-relógio, parecia. Respirei fundo, apenas para me arrepender de tal atitude: o quarto fedia a cigarro. Peças de roupas espalhadas aleatoriamente pelo chão sujo davam o tom do momento. As coisas ficavam mais claras. Peguei uma delas e trouxe para perto do nariz, sentindo o nauseante cheiro de nicotina contida na vestimenta. Joguei novamente no chão e estiquei o braço para o criado-mudo. Carteira de cigarros vazia. Encontrei um já amassado no chão e acendi o isqueiro, parceiro de quase vinte anos. Olhei para os dois e falei para mim mesmo que, segunda-feira, pararia de fumar. De vez e pela quarta vez. Dando uma prazerosa tragada matinal, que para mim tinha um efeito apaziguador. Mais relaxado com a fumaça destruindo meus pulmões, ergui-me da cama e fui até a janela. Espiei através da veneziana o domingo de sol que se apresentava. Na rua, imbecis. Idiotas passeando com seus cachorros ou caminhando simplesmente para manter a futilidade da boa forma. Sim, acreditem que a vida pode ser bela. Imbecis. Que horas seriam? Virei-me para a cama amassada, ainda parado ao lado da janela. Estranho. Um volume sob o cobertor. Cabelos loiros sobre o travesseiro. Não lembrava de ter trazido ninguém para casa. Mas, também, não lembrava de nada. Enquanto ia até o corpo, passei na frente do espelho, dando-me conta de que estava completamente nu. Contemplei minha aparência destruída e a barriga avantajada. Podre. Dei uma risada repleta de escárnio para a minha própria carcaça. Joguei o cigarro no chão e puxei, de uma só vez, o cobertor da cama. Que diabos era aquilo? A mulher ali deitada, se é que aquilo pode ser chamado de mulher, estava bastante acima do peso. Bastante não. Bastante estou eu. Aquilo era uma aberração. Meu rosto se contorceu em uma expressão de nojo. Eu tinha feito isso? A visão daquela gorda pelada em minha própria cama era asquerosa e agradeci por não lembrar de nada do que havia acontecido. Ela não fez a menor menção de acordar. Revirei as roupas atiradas no chão em busca da minha carteira. Encontrei de tudo, mas nem sinal do dinheiro. Abri a porta do armário e retirei da gaveta os quarenta e três reais, minhas economias de todo o ano. Separei duas notas de dez e voltei para a gorda. Dei três tapas na cara dela, mandando-a levantar. Ela se revirou um pouco, causando um leve abalo nas estruturas do prédio. Assim que abriu os olhos, coloquei os vinte reais em sua mão. O dinheiro desapareceu em meio às protuberantes quantidades de gordura. Você é puta?, perguntei. Ela ficou em silêncio, meio sem entender e meio que ainda acordando. Tô te dando vinte reais, agora cai fora da minha casa, continuei. Não sou puta, respondeu ela. Era o meu medo. Eu realmente havia conhecido ela em algum bar e dado em cima dela apenas por sexo. Preferia que fosse uma puta. Melhor, disse eu, assim não preciso pagar. Peguei o dinheiro de sua mão e voltei à janela, chutando a roupa que estava no chão. Parei mais uma vez sob os resquícios de sol da veneziana, observando o esforço da aberração para levantar da cama. Ela não disse mais nada, carregando seu corpo excessivo pelo quarto e juntando suas vestimentas. Pensei em perguntar para ela onde havia me conhecido e como havia sido a noite, apenas para jogar alguma luz na escuridão que eram minhas lembranças, mas preferi ficar quieto. Sinceramente, não queria saber. Continuei parado com o cigarro no canto boca, ao lado da janela, completamente nu, acompanhando os movimentos dela. Ver a gorda pelada caminhar pelo quarto, agachando-se e erguendo aquela bunda imensa, excitou-me. Não sei como. Mas aconteceu. Não pude fazer nada para evitar a ereção. Peguei novamente os vinte reais no criado mudo e joguei na cara dela. Por uma rapidinha, disse eu. A gorda ergueu-se e veio em minha direção. Ela era maior que eu, não apenas em largura, mas em altura também. Joguei a fumaça para o lado e o cigarro no chão, pronto para me imiscuir naquele monte de banha. Ela, porém, cuspiu em meu rosto. Com a saliva dela escorrendo pela bochecha, ainda recebi um tapa no lado esquerdo da face. Disparado por uma mão gigantesca, causou muita dor, especialmente por eu já estar com o corpo dolorido da ressaca. Olhei para a gorda na minha frente e, com o punho fechado, golpeei-lhe o nariz. Seco, duro. Como eu bateria em algum segurança me expulsando de um bar por não ter dinheiro. Ela caiu para trás, com sangue escorrendo pela cara. Olhava-me apavorada. Aqui é assim, meu anjo, disse-lhe eu. Ajudei-a a levantar. Pelos cabelos. Conduzi-a até a porta do apartamento, enquanto ela me xingava de todos os palavrões existentes, e alguns até não-existentes, em nossa língua. Empurrei-a para fora, ainda nua, e fechei a porta. Voltei ao quarto e acendi mais um toco de cigarro. Pensei em abrir a janela para deixar entrar um pouco de sol, mas preferi voltar para cama. Dei mais uma tragada, pensando que realmente deveria parar de fumar. Mas, então, lembrei-me de como adorava essa vida de merda.