Números
O primeiro número apareceu para Dênis no espelho de seu banheiro, quando
foi se refrescar pela manhã. Ainda um pouco sonolento, saiu do chuveiro e
percebeu, na superfície embaçada pelo vapor, um muito bem desenhado algarismo.
10.
Dênis ficou intrigado por alguns segundos, imaginando quem poderia ter
feito aquilo. Chegou à única conclusão possível em termos lógicos: ele próprio
havia feito o desenho na noite anterior ao voltar do bar com os amigos do
trabalho e, alcoolizado, não tinha memória do ato. O vapor simplesmente fizera
o número reaparecer.
De qualquer forma, não deu muita importância ao acontecido. Vestiu seu
terno cinza e tomou o café da manhã – sanduíche com geleia e suco de laranja –
como fazia todos os dias da semana, seguindo logo depois para o estacionamento
do prédio. Chegando ao seu Siena branco, ainda sujo da viagem ao interior
realizada no final de semana, tomou um susto.
Na porta do motorista, delineado em meio à lama da estrada de chão pela
qual precisou dirigir, destacava-se outro número.
9.
Dênis começou a achar que aquilo não poderia ser uma coincidência. Olhou
em volta, procurando alguém que o estivesse sacaneando, mas nada viu. Entrou no
carro e dirigiu ao trabalho.
No trânsito, começou a pensar no que acontecia. O que significavam
aqueles algarismos? Estava em meio a devaneios sobre o assunto quando percebeu
um outdoor à sua direita. O espaço não trazia qualquer anúncio ou informação,
apenas um número gigante.
8.
Assustado com o que viu, Dênis invadiu a faixa da direita, quase
causando um acidente. Recuperou o controle do carro a tempo, mas não o de seus
pensamentos. “Este outdoor é para mim?”, questionava-se ele. “Que números são
esses?”
Permaneceu nesse estado até chegar ao escritório de advocacia onde
trabalhava como contador. Absorto em reflexões, não deu “bom dia” a nenhum dos
colegas que o cumprimentavam, apenas reforçando a sua fama de mal-educado.
Sentou-se à mesa, ligou o computador e, como papel de parede em seu Windows,
surgiu mais um número em letras garrafais.
7.
A essa altura, qualquer ideia de coincidência na aparição dos algarismos
havia evaporado. Dênis tinha certeza de que alguma mensagem estava sendo enviada
a ele, embora tivesse um significado que ainda não conseguia compreender. Olhou
para cada um dos colegas, perscrutando-os em busca qualquer sinal de
culpabilidade, mas todos o ignoravam, atentos às suas tarefas diárias.
Foi o que decidiu fazer também. Focar a mente em outra questão, pois de
nada adiantava perder tempo com aquilo. Quando chegasse a hora, acreditava,
tudo seria revelado.
A estratégia deu certo por algumas horas, mais precisamente até o final
da manhã, quando seu iPhone vibrou sobre a mesa. Dênis desbloqueou a tela e
abriu a mensagem recebida pelo WhatsApp, contendo apenas um número.
6.
Pela primeira vez, porém, ele podia tomar uma atitude. O número do
remetente era estranho, com muito mais dígitos do que o normal. Dênis discou.
Como esperado, o telefone estava desligado. Enviou uma mensagem pelo
próprio WhatsApp: “Quem é você? O que significa tudo isso? Por que está fazendo
isso comigo?”
Dois tracinhos azuis apareceram rapidamente ao lado da mensagem. Visualizada.
Mas, obviamente, não houve resposta.
A partir deste momento, Dênis não conseguiu mais se concentrar no
trabalho. Pediu para falar com o chefe e disse que não estava se sentindo bem e
precisava ir para casa. Mesmo contrariado, nada satisfeito, o diretor da
empresa o liberou.
Dênis juntou suas coisas em poucos segundos, saiu do escritório e entrou
o elevador. Ao esticar seu braço para pressionar o indicador do térreo,
percebeu que havia um único número já aceso no painel.
5.
Deu um pulo para trás. “Como?”, perguntava-se. Foi ali, finalmente,
talvez com certo atraso, que Dênis se deu conta do que todos aqueles números
significavam: era uma contagem regressiva. Mas para quê? O que aconteceria
quando ela chegasse a zero?
Apavorado, saiu do elevador e desceu os oito andares pela escada.
Atravessou correndo o hall de entrada do prédio e pulou para a calçada.
Enquanto seguia em passo acelerado em direção ao seu carro, esbarrou em uma
mulher carregando sacolas de supermercado. Ambos caíram e Dênis pediu
desculpas.
Quando se levantou, seu olhar correu para uma forma no céu. Em meio ao
azul total de um dia de primavera, pairava uma única nuvem, em um formato que
gelou sua espinha. Um número.
4.
Dênis desesperou-se e começou mais uma correria desenfreada, desviando das
pessoas na calçada, que não entendiam o que acontecia com aquele maluco
engravatado. Finalmente chegou ao carro, deu a partida e acelerou. Não sabia
para onde ir, apenas que precisava sair dali. Sua casa não era um bom destino,
já que eles – fossem quem fossem – haviam estado lá. Pensou em ir à casa dos
pais ou ficar dirigindo à toa, mas nada parecia uma boa escolha.
Enquanto decidia, percebeu que, por mais que acelerasse, o velocímetro
do carro permanecia parado em um número.
3.
O coração de Dênis começou a pular dentro do peito. Com medo de bater o
carro, parou o veículo na primeira vaga e desceu. Caminhava a esmo, olhando
para todos os lados, paranoico, esperando que alguém surgisse a qualquer
momento.
Pensou em parar um policial ou simplesmente pedir ajuda a outra pessoa,
mas não sabia quem estava envolvido naquilo. Todos eram suspeitos. Dênis
precisava encarar a situação sozinho, independente do que fosse acontecer.
De tanto caminhar, perdeu o fôlego. Apoiou-se com um braço em uma parede
para respirar, baixando a cabeça. Quando a reergueu, deu de cara com um adesivo
na vitrine da loja à sua frente. Era outro número.
2.
Estava chegando. A contagem regressiva aproximava-se do fim. Dênis quis
ligar para seus pais e amigos para dizer que os amava, mas não conseguiu. Suas
mãos tremiam sem parar diante do fim iminente.
Sentou-se na calçada e começou a chorar. As pessoas olhavam com
curiosidade, mas ninguém parou para oferecer ajuda. Subitamente, uma rajada de
vento fez com que um pedaço de papel voasse em sua direção. O objeto oscilou,
dançou, circulou e terminou sua viagem diretamente no rosto de Dênis.
Ele pegou o papel com as duas mãos e o colocou em frente aos olhos.
Estava escrito aquilo que ele mais temia. Um simples e aterrorizante número.
1.
Dênis desistiu. Para onde corria, os números sempre o encontravam. De
nada adiantava seu esforço. Sem forças ou ânimo, resignou-se ao seu destino.
Começou a caminhar lentamente de volta ao carro, repensando sua vida e listando
tudo o que havia feito e deixado de fazer até ali.
Agora, sorria para as pessoas. Roçava os dedos nas folhas das árvores e
nas texturas das paredes. O desespero transformou-se em serenidade. Em
aceitação.
Dênis chegou ao carro e dirigiu de volta para casa, tranquilamente.
Sabia que o número zero chegaria a qualquer momento e, com ele, o indelével
final daquela jornada.
Estacionou em seu prédio, entrou no elevador e subiu ao seu andar.
Caminhou os poucos passos até o seu apartamento em um estado de transe, como se
sua mente estivesse em um lugar calmo. Retirou a chave do bolso e olhou para
número preso à sua porta. Apenas um algarismo de metal permanecia ali,
solitário.
0.
Era agora. A contagem regressiva havia acabado. Quem o estava
perseguindo, quem o torturava daquela maneira, apareceria naquele momento. O
que tivesse que acontecer, aconteceria naquele exato instante.
Dênis respirou fundo, girou as chaves e entrou no apartamento. Sem
pressa, caminhou até o sofá, retirou os sapatos e se deitou, aguardando tranquilamente
o fatídico e derradeiro golpe. Fechou os olhos, aceitando o fim.
E dormiu.
Acordou desnorteado, tentando entender o que acontecia. Olhou em volta, demorando
alguns segundos para perceber que estava em casa. Finalmente, deu-se conta de
que estava vivo. Nada havia acontecido. Dênis começou a procurar pela casa por
algo diferente. Nada. Ligou para amigos, ligou para seus pais. Também nada. Entrou
na Internet para ver alguma tragédia que poderia ter ocorrido. Nada mais uma
vez.
Não entendia. O que teria sido aquela contagem regressiva? Tudo parecia
exatamente igual.
Decidiu tomar um café da manhã para reorganizar seus pensamentos. Precisava
se acalmar. Caminhou até a porta da geladeira. Enquanto estendia o braço para
abri-la, tomou um susto. Deu um pulo para trás. Permaneceu alguns segundos encarando
fixamente, imóvel, com olhos arregalados, a forma de seus ímãs na porta.
Estavam posicionados de forma diferente do normal. No início, não acreditou,
mas ali estava. Era inegável. Diante de seus olhos, eles formavam um número. Um
curioso e assustador número. Um número que Dênis jamais esqueceria.
-1.