Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, July 21, 2008

O CAVALEIRO DAS TREVAS


BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (THE DARK KNIGHT)
De Christopher Nolan. Com Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Gary Oldman, Morgan Freeman, Eric Roberts, Michael Caine e Cillian Murphy.


Quando a primeira parte da trilogia O Senhor dos Anéis foi lançada, já no longínquo 2001, ficou claro que Peter Jackson havia alcançado um feito monumental. O neozelandês, com sua brilhante visão da saga de J.R.R. Tolkien, não apenas ressuscitou o gênero fantasia, como o elevou a um nível tão alto que nenhuma outra produção conseguiu alcançá-lo desde então – o que provavelmente não acontecerá por muito tempo. As batalhas magníficas, a jornada emocional e um incrível respeito pela mitologia criada pelo escritor inglês fizeram com que o épico de nove horas de Peter Jackson se tornasse referência, exemplo a ser seguido e batido por quem se aventurar pelo gênero.

Pois Batman – O Cavaleiro das Trevas é para cinema de super-heróis o que O Senhor dos Anéis foi para o de fantasia. De forma rápida e direta, é o melhor filme já realizado dentro do gênero que mais dinheiro arrecada hoje em dia, o que provavelmente colocará em apuros futuras produções. O trabalho de Christopher Nolan é uma obra ambiciosa, pesada e de alcance épico que, ironicamente, encontra sua força exatamente por não parecer um filme de super-herói. Moralmente complexa, emocionalmente exaustiva e inesperadamente densa para uma superprodução norte-americana, O Cavaleiro das Trevas é a continuação perfeita para o já ótimo Batman Begins e, desde já, um dos grandes filmes dos últimos anos, quebrando qualquer barreira que o gênero impunha.

Mas vamos com calma. Quando O Cavaleiro das Trevas tem início, Gotham City encontra-se dividida entre os que consideram Batman um herói e aqueles que vêem como um vilão. Atormentado por esta reação do público, Bruce Wayne não vê a hora de desistir da vida de justiceiro e viver ao lado de sua amada Rachel Dawes. A esperança surge na figura do promotor público Harvey Dent, que decide agir contra o crime organizado com a ajuda do homem-morcego e do chefe de polícia Gordon. É quando um novo criminoso chamado Coringa chega promovendo um verdadeiro caos na cidade, vendendo seus serviços aos mafiosos com a promessa de resolver os problemas deles ao eliminar Batman de uma vez por todas.

Dando continuidade à abordagem psicológica desenvolvida com sucesso em Batman Begins, Christopher Nolan (a partir de um roteiro escrito por ele mesmo e seu irmão Jonathan) novamente assume um tom realista e vira seu foco para os personagens e a história. Ainda que O Cavaleiro das Trevas esteja repleto de ótimas cenas de ação, é a capacidade de Nolan em apresentar seres humanos complexos em conflito com seus próprios demônios, bem como levantar questões essenciais à natureza humana, que dão o tom do filme – abordagem, aliás, recorrente na carreira do cineasta, vide seus trabalhos anteriores, como Amnésia e Insônia, histórias ricas em personagens angustiados e com um lado sombrio proeminente.

Nesta seqüência, Nolan constrói sua obra sobre três personagens principais: Bruce/Batman, Harvey Dent e Coringa. É a partir desta pirâmide que todo o resto se desenvolve, em uma crescente de desespero e angústia capaz de revelar a complexidade do ser humano e de tudo o que o cerca. Batman, por exemplo, como apresentado no filme anterior, não é somente um justiceiro mascarado, mas um homem incrivelmente traumatizado, que precisa conviver com seus próprios problemas enquanto combate nas ruas. Agora Bruce Wayne encontra-se cansado do “serviço” e, acima de tudo, decepcionado pela imagem que as pessoas construíram de Batman. “Não era isso o que eu esperava quando quis inspirar o bem”, diz ele em certo momento. O peso da responsabilidade o atormenta e cresce gradativamente até o estágio em que fica difícil suportá-lo. “Ou você morre como herói ou vive o bastante para se tornar o vilão”, diz alguém.

E a alma atormentada de Wayne é encarnada impecavelmente por Christian Bale. Ator extremamente talentoso, capaz de representar de forma extremamente eficaz sem qualquer espécie de afetação, Bale é a incorporação definitiva de Batman, dando um passo além do que já havia construído em Batman Begins. Se antes o que mais importava era a transformação, o fundamental agora é demonstrar a carga imensa depositada sobre os ombros do personagem, fato que Bale tira de letra. Mais do que isso, o intérprete ainda se sai muito bem sob o uniforme, atento inclusive a detalhes como a mudança do tom de voz, de forma a preservar a identidade do vigilante – o que no início causa estranheza, mas é perfeito dentro da proposta realista do filme.

No entanto, se o arco dramático de Bruce Wayne é reduzido em O Cavaleiro das Trevas, o promotor público Harvey Dent preenche a lacuna. Desejoso de transferir a responsabilidade para alguém honesto e com coragem de enfrentar a escória de Gotham, Wayne encontra em Dent um símbolo de esperança, um homem no qual os cidadãos podem e devem confiar. Esta é uma das tramas principais do roteiro de O Cavaleiro das Trevas, dando espaço para a importância de Harvey Dent na trama. E, neste sentido, Dent torna-se o personagem com a jornada mais bem definida da produção, uma vez que termina o filme uma pessoa completamente diferente daquela do início.

Sua trajetória – que é a representação máxima de um dos principais temas discutidos pelo roteiro, a tênue linha entre o bem o mal – precisava de uma abordagem cuidadosa para não soar falsa. É aí que surge o talento de Aaron Eckhart. Com o material riquíssimo dos irmãos Nolan e sob a batuta segura do diretor, Eckhart jamais permite que sua modificação se torne brusca ou forjada. Muito pelo contrário, é visível no rosto de Eckhart que as ações futuras de Harvey Dent são resultado unicamente de uma fúria por tudo o que aconteceu, um desejo de vingança com a qual ele não se sente bem em levar à prática.

Chegamos, enfim, ao grande achado de O Cavaleiro das Trevas: o Coringa de Heath Ledger. Se o principal problema de Batman Begins era a falta de um antagonista à altura do herói, aqui o problema está resolvido. Desenvolvido com muita inteligência por Nolan e Ledger – que acertaram ao não apresentar, e até confundir, as origens do personagem, tornando-o ainda mais imprevisível e assustador –, o Coringa é o dono do filme, um verdadeiro anarquista ou, como ele próprio se classifica, “um agente do caos”. Sádico, brilhante, cruel e divertido, o Coringa de O Cavaleiro das Trevas em nada lembra aquele composto por Jack Nicholson no filme de Tim Burton; aqui, ele é um doente imprevisível, capaz de fazer qualquer coisa simplesmente pelo prazer de “ver o circo pegar fogo”.

Interpretando Coringa com uma mistura da anarquia de Tyler Durden (Clube da Luta), o sadismo de Mickey Knox (Assassinos por Natureza) e a demência de Sid Vicious, Heath Ledger entrega, provavelmente, a interpretação mais surpreendente desde que Johnny Depp quebrou todas as expectativas com o Jack Sparrow de Piratas do Caribe. Com voz anasalada e repleto de trejeitos que o fazem lembrar um animal em seus mais primitivos instintos, como a repulsiva forma com que passa a língua nos lábios, Ledger compõe um verdadeiro e perigoso inconseqüente, que se diverte promovendo o caos (“Eu adoro este trabalho!”). Ao mesmo tempo que causa repulsa e nervosismo, Ledger atrai o olhar do espectador, que fica tenso pela sua próxima ação, porém fascinado pela imagem perturbadora daquele ser. Uma grande atuação e um vilão já antológico.

Porém, não é só na construção dos personagens que Nolan demonstra um olhar diferenciado, mas também na relação entre eles. Este, em essência, é o verdadeiro núcleo de O Cavaleiro das Trevas e a partir de onde se sustenta toda a estrutura do filme. A dicotomia entre Batman e o Coringa, por exemplo, é nada menos que genial, diferente de qualquer outro antagonismo já desenvolvido entre herói/bandido. O palhaço nada mais é do que uma conseqüência das ações do morcego – e as mortes originadas por isso são outro peso para Wayne – e a genialidade doentia do primeiro só encontra sentido com um oponente à altura, como Batman. Aliás, é daí que sai uma das melhores falas do filme, quando o Coringa diz para o herói: “Você me completa”. Quem diria que o palhaço do crime seria fã de Jerry Maguire?

O Cavaleiro das Trevas, porém, não é uma obra reflexiva e arrastada, procupada apenas em desenvolver os personagens. A trama que impulsiona tais relações é igualmente elaborada e surpreendente, uma verdadeira e grandiosa saga sobre o crime nos moldes de grandes clássicos do cinema policial. Há de tudo no roteiro dos Nolan, desde corrupção policial, presença da máfia e as conseqüências desta existência na vida das famílias das vítimas. É um enredo gigantesco, tanto em acontecimentos quanto em pretensos, repleto de reviravoltas, com dezenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo e centenas de personagens ganhando a tela e com papel crucial na narrativa. E o melhor: tudo amarrado de forma magistral, sem uma única subtrama sobrando ou causando tédio.

E aí entra, novamente, o talento de Chistopher Nolan como diretor. À medida que as ações e os acontecimentos vão se acumulando, tudo parece se encaminhar para um desastre total, tanto na história quanto no próprio filme. O segundo jamais acontece. O clima de caos total que o Coringa faz despertar em Gotham não reflete na narrativa, exemplarmente dominada pela mão firme de Nolan. O cineasta tem o controle completo daquilo que quer transmitir e jamais dá um passo em falso, construindo a obra em um crescendo de emoções e reflexões que fazem o espectador se questionar se aquilo que está na tela é realmente um filme de super-herói ou um drama de contundente força emocional.

Muito disso se deve também à já citada ambientação realista proposta por Nolan. Ao tratar seus personagens como pessoas reais, com defeitos e problemas, O Cavaleiro das Trevas se aproxima de nosso mundo, causando identificação imediata com a platéia. Bruce Wayne, por exemplo, é um homem repleto de feridas – tanto físicas quanto psicológicas –, portanto vulnerável, e não um super-herói com poderes. Desta forma, a tensão aumenta e as emoções crescem, fato realçado também pela opção do cineasta em filmar as cenas da forma mais orgânica possível, apelando para computação gráfica somente quando estritamente necessária. Assim, O Cavaleiro das Trevas assume um clima sujo, real, de verdadeiro perigo, como se a vida de todos os personagens estivesse constantemente ameaçada.

Nolan ainda demonstra imensa qualidade no aspecto técnico da produção. Desde a impressionante direção de arte à fotografia escura, representando os sentimentos dos personagens, O Cavaleiro das Trevas é um primor. Mais do que isso, o cineasta constrói planos com inteligência e filma algumas cenas de maneira brilhante, sejam as seqüências de ação (como a espetacular pirueta do caminhão), sejam os momentos mais íntimos (como a maneira como retrata Wayne sofrendo uma morte, sentado em sua mansão com a cidade que ousou proteger e que muito lhe custou em segundo plano). No entanto, o meu momento favorito é a maravilhosa explosão de um hospital, uma cena fabulosa que parece ter sido realizada em curto plano-seqüência, contando também com a inspirada presença em cena de Ledger.

Mas ainda há mais, muito mais em O Cavaleiro das Trevas. Deixando de lado a superficialidade da maioria dos filmes do gênero e ousando vôos ainda mais altos que o já inteligente X-Men 2, a produção se aprofunda não apenas na mente e nos corações tortuosos de seus personagens, mas também em densas questões de moral e ética. Em O Cavaleiro das Trevas, não há a simples diferenciação entre o bem e o mal. Ao contrário, o que o filme defende é que todo ser humano é capaz dos atos mais sórdidos quando impulsionado – na realidade, esta parece ser a verdadeira e única motivação do Coringa, que se extasia ao levar um dos personagens à perdição e ao colocar milhares de pessoas de dois barcos em contato com o lado mais escuro de suas naturezas.

Como conseqüência, O Cavaleiro das Trevas não se resume a heróis combatendo os vilões para livrar a sociedade de um plano maligno. Nada no filme é simples assim. Aliás, nem os próprios mocinhos e bandidos são tão bem definidos, com um sempre trazendo dentro de si algo que deveria pertencer ao outro. Todos os atos têm conseqüências, muitas vezes trágicas, os sentimentos se atropelam e o sacrifício não é um ato honrado, mas uma opção dolorosa, que traz cicatrizes. Além disso, existem fortes críticas sociais, como a invasão de privacidade, outro momento no qual as questões éticas são trazidas à tona, desta vez através do sempre correto e sensato Lucius Fox.

E já que mencionei isto, o espaço dedicado aos personagens secundários é igualmente expandido em relação a Batman Begins. Em O Cavaleiro das Trevas, todos têm oportunidade de brilhar e desempenhar algum papel na trama, ao invés de apenas figurar como coadjuvantes de luxo. Isto vale tanto para o já citado Lucius Fox, quanto para a Rachel Dawes de Maggie Gyllenhal, o Alfred do impecável Michael Caine e o comissário Gordon, interpretado de forma eficaz por Gary Oldman. Mais do que isso, o roteiro ainda guarda grandes frases, desde as que já nascem clássicas (“Por que tão sério?”) àquelas que parecem ter sido retiradas de uma grande obra de literatura ( “A noite é sempre mais escura antes do amanhecer”, belíssima e perfeita dentro do contexto da obra).

Exceto por um outro exagero desnecessário, O Cavaleiro das Trevas é uma verdadeira obra-prima e o melhor filme do ano até aqui ao lado do igualmente ambicioso Sangue Negro. Quem espera um filme-pipoca para levar as crianças vai se surpreender ao encontrar uma obra pesada, profundamente reflexiva e que exige muito do espectador em termos emocionais. O sentimento ao final da sessão não é a de ter assistido um superprodução bacana, mas de ter passado por uma experiência difícil, tamanha a carga dramática do filme. O Cavaleiro das Trevas não é um filme de super-heróis, mas um conto moral sobre culpa, crime, maldade e a verdadeira natureza do ser humano. Apenas acontece de, no meio, ter um maluco correndo e pulando de máscara e capa preta.

Nota: 9.5

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Thursday, July 03, 2008

WALL-E


WALL-E
De Andrew Stanton. Com as vozes de Bem Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin, Fred Willard, Sigourney Weaver, Kathy Najimy e John Ratzenberger.

Hoje, um dos maiores clichês da indústria cinematográfica norte-americana é falar bem da Pixar. Desde que revolucionou a animação com Toy Story, o estúdio de John Lasseter conseguiu a incrível façanha de realizar somente filmes de qualidade indiscutível, como Monstros S.A., Procurando Nemo, Os Incríveis e Ratatouille, além de alcançar uma posição onde suas produções são adoradas tanto por crianças quanto por adultos. Com seu último trabalho, no entanto, a Pixar se superou. Wall-E, uma experiência fantástica para o espectador, não é somente o melhor filme do estúdio, como também uma das realizações mais corajosas do Cinema nos últimos anos.

Escrito e dirigido por Andrew Stanton, Wall-E tem início aproximadamente setecentos anos no futuro. A Terra acumulou imensa quantidade de lixo e tornou-se um lugar inabitável, o que fez com que os humanos se mudassem para uma grande nave no espaço enquanto robôs recolhem o lixo no planeta. Um destes robôs é Wall-E, provavelmente o último de sua espécie, que passa os dias sozinho, catando lixo e colecionando pequenos itens que encontra. É quando, certo dia, uma nave pousa e dela sai Eve, uma robô com a missão de encontrar possibilidade de vida na Terra. Wall-E fica fascinado pela companhia e fará de tudo para não perdê-la.

Claro que, em sua embalagem, Wall-E é um desenho animado e, a princípio, voltado para crianças. No entanto, rotular a magnífica obra de Andrew Stanton desta forma é reduzir o seu alcance e ousadia. Wall-E possui ambição narrativa digna de grandes filmes, o que fica muito claro nos primeiros quarenta e cinco minutos de projeção. Durante todo este tempo, os diálogos simplesmente não existem. Wall-E e Eve comunicam-se unicamente através de sons indefiníveis e gestos, em um desafio imenso aos realizadores – só em termos de comparação, a obra-prima Sangue Negro tinha “somente” os primeiros quinze minutos sem diálogos, aproximadamente três vezes menos.

Mas a conquista de Andrew Stanton é monumental. Este primeiro ato de Wall-E não apenas funciona à perfeição, como representa alguns dos melhores minutos cinematográficos dos últimos anos. É uma realização mágica, que simboliza a verdadeira paixão por contar uma história, fazendo o espectador se envolver com os personagens e conhecer aquele mundo quase unicamente através de imagens. O cineasta apresenta uma realidade fascinante – ainda que desoladora – explorando planos aéreos para demonstrar a imensidão do problema e, de quebra, ressaltar a solidão de Wall-E. O tom em sépia ajuda a reforçar este sentimento, dando a impressão que o planeta Terra é um imenso deserto sem vida e completamente parado no tempo.

Wall-E, no entanto, não é composto unicamente destes primeiros quarenta e cinco minutos. Por mais que represente o ápice narrativo da obra, o filme mantém-se maravilhoso durante toda a projeção, pelo simples fato de o espectador estar completamente apaixonado pelos personagens e pela jornada destes. O roteiro riquíssimo não se limita a contar uma história e passar uma simples mensagem, abordando de maneira inteligente, e até ácida, um sem-número de temas, como a solidão, o amor, a preservação ecológica, o consumismo e o sedentarismo. Assim, o escopo é muito maior do que quase a totalidade dos filmes do gênero e, se Os Incríveis e Ratatouille já possuíam detalhes voltados unicamente aos adultos, Wall-E pode ser considerado o primeiro filme da Pixar que “gente grande” vai gostar mais que os pequenos.

Conquanto apresente um visual arrebatador e ousados objetivos narrativos, é inegável que o núcleo de Wall-E são os personagens. Em um trabalho magnífico dos criadores, o protagonista e sua companheira Eva conseguem ser mais expressivos e cativantes do que atores de carne e osso da grande maioria de produções norte-americanas. Eles não têm muito com o que trabalhar em termos físicos – apenas leves mudanças na posição dos olhos de Wall-E ou nos leds do visor de Eve –, mas a imersão na história é tanta que compreendemos os sentimentos do casal em todos os momentos. Ao invés de dizer, Wall-E faz sentir. Assim, quando Eve está brava com Wall-E por este tê-la seguido ou quando eles compartilham momentos juntos, o espectador não tem a menor dificuldade de entender o que se passa na “alma” daqueles dois seres.

E Wall-E é um personagem fantástico. Inocente e completamente atrapalhado, o robozinho é uma mistura de Inspetor Closeau, Chaplin e Buster Keaton, resultando em uma criação nada menos que adorável. Sua capacidade de ser desajeitado resulta em cenas hilárias, enquanto a pureza de sua percepção de vida cria momentos espetacularmente tocantes. Wall-E nada tem de complexo: após anos e anos de uma vida sem sentido, tudo o que ele quer é encontrar a sua “diretriz”, como o filme repete várias vezes. Enquanto isso, Eve assume este papel. No início, não é necessariamente a companhia ideal para o protagonista, mas apenas uma companhia. Apenas após conhecer melhor a personalidade apaixonante do “lixeiro” ela começa a enxergar algo mais do que apenas cumprir sua missão.

Como se pode perceber, Wall-E é, acima de tudo, uma história de amor. E, o mais impressionante, uma história de amor belíssima, construída com sensibilidade e sentimentos reais, apesar da natureza dos personagens. O relacionamento entre os dois robôs é tocante e convincente, permeado por uma série de cenas que já nascem clássicas, como a maravilhosa dança em volta da nave e o edificante final, que pode fazer correr lágrimas de alguns espectadores. Não é exagero algum afirmar que Wall-E e Eve fazem parte dos grandes casais do Cinema, ao lado de ícones do porte de Rhett e Scarlett (... E o Vento Levou), Rick e Ilsa (Casablanca) e – por que não? – Dama e Vagabundo.

Mas as qualidades não param por aí. A produção é repleta de referências culturais – algumas sutis, outras nem tanto – que certamente passarão despercebidas aos olhares dos pequenos. O piloto automático da nave, por exemplo, é uma homenagem direta ao Hal de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. O filme de Kubrick, aliás, aparece diversas outras vezes, como na hilária utilização da clássica Assim Falou Zaratustra. Há, também, referências mais diretas, como ao musical Alô, Dolly, de 1969, e utilizações de diversas músicas que normalmente não se esperaria encontrar em um filme dessa natureza. Se formos um pouco além, uma das principais mensagens de Wall-E remete ao mito da caverna, de Platão, quando os obesos humanos descobrem que existe muito mais do que a vida que viviam até então.

Por mais que existam inúmeros atrativos para os adultos, Wall-E ainda precisa falar com as crianças, e é exatamente quando começa a ação no espaço que perde um pouco sua genialidade. Ainda que os momentos de correria na nave sejam ótimos e impecavelmente realizados, Wall-E deixa de lado parte do seu brilhantismo e unicidade ao cair no lugar-comum das produções do gênero. Da mesma forma, é difícil entender a opção de Stanton em utilizar tanto pessoas reais quanto pessoas em desenho. Há, certamente, uma intenção (mostrar que no futuro viramos caricaturas de nós mesmos?), mas a escolha soa, no mínimo, gratuita.

No entanto, isto é pouco, muito pouco, perto da genialidade de Wall-E. Com uma combinação perfeita entre o aspecto visual e a história, o filme não é somente uma animação, mas uma comédia engraçada, um romance cativante, um drama emotivo e uma ficção-científica reflexiva. São quase duas horas de magia, que revelam uma agradável surpresa quando se descobre que o filme com mais coração do ano é sobre personagens feitos de lata. Não à toa, a obra encerra com uma luz brilhando no escuro. E Wall-E é nada mais que isso: uma luz de esperança. Na vida, nas relações humanas, no mundo e, principalmente, no próprio Cinema.

Nota: 9.0

P.S.: Não percam o hilário curta Presto, exibido antes de Wall-E.

P.S. 2: Fica a reclamação à distribuidora, que, ao menos aqui em Porto Alegre, disponibilizou somente cópias dubladas.
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