RASTROS DE ÓDIO
RASTROS DE ÓDIO (THE SEARCHERS)
De John Ford. Com John Wayne, Jeffrey Hunter, Ward Bond, Vera Miles, Natalie Wood e Henry Brandon.
As pessoas adoram listas. Nada mais comum do que encontrar, principalmente na internet, compilações elencando os melhores representantes de determinado assunto. Em relação ao cinema não é diferente. Por mais difícil que seja eleger um único filme para assumir o posto de a melhor obra cinematográfica já realizada, as listas continuam surgindo, das mais variadas origens. Hoje em dia, a produção que normalmente encabeça estes rankings é Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles – claro que, ocasionalmente, outros clássicos assumem a posição, desde O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) a O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), sem deixar de lado aquela que é considerada a obra seminal de John Ford, Rastros de Ódio (The Searchers, 1956).
Todos os filmes acima – e, obviamente, outros que não foram citados – possuem imensa relevância não apenas no cinema norte-americano, mas também no mundial, seja por suas revoluções técnicas, seja pela ousadia temática, seja pela quebra de barreiras culturais. É neste sentido que Rastros de Ódio encontra o seu lugar histórico: se, em termos técnicos, o trabalho de Ford não possa ser considerado tão inovador quanto os de Griffith ou Welles, por exemplo, o filme representa uma brusca mudança de visão em relação à forma com a qual se percebia o cinema e, principalmente o papel do herói. Não é à toa que a revista New York Magazine a elegeu a produção cinematográfica mais influente de todos os tempos e um cineasta do porte de Steven Spielberg o considera o grande filme norte-americano.
Hoje, mais de cinco décadas após a sua estreia, praticamente tudo já foi dito, escrito e estudado sobre Rastros de Ódio. O racismo do personagem principal, as sutilezas do que não é dito, a jornada de obsessão de Ethan Edwards e os demais detalhes da obra foram dissecados à exaustão. Por isso, talvez seja difícil compreender o impacto de Rastros de Ódio – e seu protagonista, principalmente – na mentalidade da época. Acostumado a um gênero no qual os mocinhos e vilões sempre foram bem definidos, eles se viram diante de um herói complexo, ambíguo, repleto de defeitos e falhas de caráter. Sim, os índios ainda continuavam a representar o lado do mal, mas será que é possível chamar Ethan de herói? As coisas, tanto no western quanto no cinema em geral, começavam a deixar de ser apenas “preto no branco”, dando espaço a personagens mais conflituosos e nada fáceis de serem rotulados.
E é, indiscutivelmente, a corajosa construção do protagonista que coloca Rastros de Ódio no rol dos grandes filmes de todos os tempos. Ethan Edwards não é somente o “durão” que John Wayne se acostumou a interpretar; mais do que isso, é um homem traumatizado por um passado que jamais fica claro, com princípios moralmente questionáveis – afinal, a obsessão que motiva sua busca, a partir de certo momento da obra, não é mais o resgate da sobrinha, mas a necessidade de assassiná-la para que a jovem não viva mais como uma índia. É exatamente aí que o filme ultrapassa um limite raro para a época, fazendo com que a própria plateia se questionasse sobre se é válido torcer ou não para o protagonista.
Como se não bastasse esta ousadia de Ford e do roteirista Frank Nugent em relação aos valores de seu herói, eles ainda “escondem” informações do espectador, inserindo na narrativa somente dicas sutis de onde veio ou quem é Ethan Edwards. Não obstante o explícito racismo, revelado de forma indiscutível durante todo o filme, diversas questões ficam em aberto: houve alguma espécie de relacionamento entre ele e a cunhada? Qual o passado que tem com o irmão e com os demais personagens? Por onde andou nos três anos após o final da Guerra da Secessão? Ele está sendo procurado por algum crime? São indagações como estas, apenas sugeridas pelo filme, que ajudam a criar uma aura de mistério em torno de Edwards, tornando-o um personagem ainda mais ambíguo e, consequentemente, interessante.
E é em Rastros de Ódio que John Wayne tem aquela que é, provavelmente, a melhor interpretação de sua carreira – superior, inclusive, ao trabalho que lhe rendeu o Oscar em Bravura Indômita (True Grit, 1969). Poucas vezes reconhecido como um ator de verdade, Wayne se mostrava, com este filme, ser um intérprete de real talento, sendo capaz de sustentar de forma eficaz a dualidade de seu personagem e, tão importante quanto, colaborar para que ele jamais se revele totalmente à plateia. Mais do que isso, o “Duke” tem momentos de puro brilhantismo, especialmente nos raros closes de Ford em seu rosto, em cenas específicas, instantes nos quais assume olhares que combinam diversos sentimentos sem deixar de lado toda a dor de um passado que, como sabemos, jamais fica claro.
Não deixa de ser uma pena, então, que tanto a belíssima construção de personagem quanto a ótima interpretação de Wayne não encontrem contraponto à altura na performance de Jeffrey Hunter. A relação entre Matin Pawley, personagem de Hunter, e Ethan Edwards é um dos principais temas de Rastros de Ódio e o enredo a partir do qual a plateia acaba por conhecer ainda mais o caráter do protagonista – fica claro que a constante implicância de Edwards em relação a Pawley vem diretamente do fato de ele possuir descendência indígena. Mesmo bem construída pelo roteiro, esta dinâmica é prejudicada pela falta de sutileza na interpretação de Hunter, que parece sempre exagerado e artificial – algo até comum para o modo de atuação da época, mas que, nos dias atuais, acaba enfraquecendo a obra.
Aliás, este aspecto de Rastros de Ódio mostra que alguns trechos do filme realmente envelheceram mal. Por diversos instantes, e não somente naqueles protagonizados por Hunter, a obra apresenta um excesso de teatralidade que chega a ser irritante, inclusive na forma com a qual Ford constrói os seus momentos de alívio cômico. Novamente, eram conceitos que não incomodavam à época, mas hoje soam apenas datados, desviando a atenção do espectador daquilo que realmente importa na história. Da mesma forma, há uma subtrama envolvendo a relação de Pawley com uma jovem que não leva a lugar algum, também servindo unicamente como distração, uma vez que nada contribui para a incessante busca de Edwards por sua sobrinha.
Por outro lado, é praticamente impossível não ficar de queixo caído com o trabalho de John Ford em Rastros de Ódio. No que diz respeito ao visual, este talvez seja o mais belo filme do cineasta – o que não é pouco. Ford compõe planos e cenas belíssimas, não somente capturando de forma maravilhosa a vastidão do Monument Valley – sua locação favorita – como também construindo momentos impecáveis em sua execução, como a sequência na qual duas fileiras de índios cercam os heróis e a já histórica rima visual entre o início e o fechamento do filme na soleira de uma porta – este final, com Edwards voltando para o seu destino errante enquanto a família busca o refúgio do lar, pode facilmente ser incluído entre os mais belos momentos do cinema norte-americano.
Prejudicado ainda ao não deixar muito clara a passagem do tempo, Rastros de Ódio é um filme que não ficou incólume à passagem dos anos. Visto hoje, o trabalho de Ford possui falhas mais gritantes do que à época de seu lançamento, mas nada que diminua a força da história, o grandioso trabalho de direção e a importância histórica da obra. Apontá-lo como o filme que marcou o ocaso do western talvez seja uma temeridade – o próprio Ford faria isso de forma mais significativa em O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) –, mas Rastros de Ódio foi essencial para a mudança de pensamento das plateias em relação ao gênero e à forma de se relacionar com o próprio cinema.
Pode até não ser um dos melhores filmes norte-americanos, porém, sem dúvida, é um dos mais importantes.
Nota: 8.0
De John Ford. Com John Wayne, Jeffrey Hunter, Ward Bond, Vera Miles, Natalie Wood e Henry Brandon.
As pessoas adoram listas. Nada mais comum do que encontrar, principalmente na internet, compilações elencando os melhores representantes de determinado assunto. Em relação ao cinema não é diferente. Por mais difícil que seja eleger um único filme para assumir o posto de a melhor obra cinematográfica já realizada, as listas continuam surgindo, das mais variadas origens. Hoje em dia, a produção que normalmente encabeça estes rankings é Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles – claro que, ocasionalmente, outros clássicos assumem a posição, desde O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) a O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), sem deixar de lado aquela que é considerada a obra seminal de John Ford, Rastros de Ódio (The Searchers, 1956).
Todos os filmes acima – e, obviamente, outros que não foram citados – possuem imensa relevância não apenas no cinema norte-americano, mas também no mundial, seja por suas revoluções técnicas, seja pela ousadia temática, seja pela quebra de barreiras culturais. É neste sentido que Rastros de Ódio encontra o seu lugar histórico: se, em termos técnicos, o trabalho de Ford não possa ser considerado tão inovador quanto os de Griffith ou Welles, por exemplo, o filme representa uma brusca mudança de visão em relação à forma com a qual se percebia o cinema e, principalmente o papel do herói. Não é à toa que a revista New York Magazine a elegeu a produção cinematográfica mais influente de todos os tempos e um cineasta do porte de Steven Spielberg o considera o grande filme norte-americano.
Hoje, mais de cinco décadas após a sua estreia, praticamente tudo já foi dito, escrito e estudado sobre Rastros de Ódio. O racismo do personagem principal, as sutilezas do que não é dito, a jornada de obsessão de Ethan Edwards e os demais detalhes da obra foram dissecados à exaustão. Por isso, talvez seja difícil compreender o impacto de Rastros de Ódio – e seu protagonista, principalmente – na mentalidade da época. Acostumado a um gênero no qual os mocinhos e vilões sempre foram bem definidos, eles se viram diante de um herói complexo, ambíguo, repleto de defeitos e falhas de caráter. Sim, os índios ainda continuavam a representar o lado do mal, mas será que é possível chamar Ethan de herói? As coisas, tanto no western quanto no cinema em geral, começavam a deixar de ser apenas “preto no branco”, dando espaço a personagens mais conflituosos e nada fáceis de serem rotulados.
E é, indiscutivelmente, a corajosa construção do protagonista que coloca Rastros de Ódio no rol dos grandes filmes de todos os tempos. Ethan Edwards não é somente o “durão” que John Wayne se acostumou a interpretar; mais do que isso, é um homem traumatizado por um passado que jamais fica claro, com princípios moralmente questionáveis – afinal, a obsessão que motiva sua busca, a partir de certo momento da obra, não é mais o resgate da sobrinha, mas a necessidade de assassiná-la para que a jovem não viva mais como uma índia. É exatamente aí que o filme ultrapassa um limite raro para a época, fazendo com que a própria plateia se questionasse sobre se é válido torcer ou não para o protagonista.
Como se não bastasse esta ousadia de Ford e do roteirista Frank Nugent em relação aos valores de seu herói, eles ainda “escondem” informações do espectador, inserindo na narrativa somente dicas sutis de onde veio ou quem é Ethan Edwards. Não obstante o explícito racismo, revelado de forma indiscutível durante todo o filme, diversas questões ficam em aberto: houve alguma espécie de relacionamento entre ele e a cunhada? Qual o passado que tem com o irmão e com os demais personagens? Por onde andou nos três anos após o final da Guerra da Secessão? Ele está sendo procurado por algum crime? São indagações como estas, apenas sugeridas pelo filme, que ajudam a criar uma aura de mistério em torno de Edwards, tornando-o um personagem ainda mais ambíguo e, consequentemente, interessante.
E é em Rastros de Ódio que John Wayne tem aquela que é, provavelmente, a melhor interpretação de sua carreira – superior, inclusive, ao trabalho que lhe rendeu o Oscar em Bravura Indômita (True Grit, 1969). Poucas vezes reconhecido como um ator de verdade, Wayne se mostrava, com este filme, ser um intérprete de real talento, sendo capaz de sustentar de forma eficaz a dualidade de seu personagem e, tão importante quanto, colaborar para que ele jamais se revele totalmente à plateia. Mais do que isso, o “Duke” tem momentos de puro brilhantismo, especialmente nos raros closes de Ford em seu rosto, em cenas específicas, instantes nos quais assume olhares que combinam diversos sentimentos sem deixar de lado toda a dor de um passado que, como sabemos, jamais fica claro.
Não deixa de ser uma pena, então, que tanto a belíssima construção de personagem quanto a ótima interpretação de Wayne não encontrem contraponto à altura na performance de Jeffrey Hunter. A relação entre Matin Pawley, personagem de Hunter, e Ethan Edwards é um dos principais temas de Rastros de Ódio e o enredo a partir do qual a plateia acaba por conhecer ainda mais o caráter do protagonista – fica claro que a constante implicância de Edwards em relação a Pawley vem diretamente do fato de ele possuir descendência indígena. Mesmo bem construída pelo roteiro, esta dinâmica é prejudicada pela falta de sutileza na interpretação de Hunter, que parece sempre exagerado e artificial – algo até comum para o modo de atuação da época, mas que, nos dias atuais, acaba enfraquecendo a obra.
Aliás, este aspecto de Rastros de Ódio mostra que alguns trechos do filme realmente envelheceram mal. Por diversos instantes, e não somente naqueles protagonizados por Hunter, a obra apresenta um excesso de teatralidade que chega a ser irritante, inclusive na forma com a qual Ford constrói os seus momentos de alívio cômico. Novamente, eram conceitos que não incomodavam à época, mas hoje soam apenas datados, desviando a atenção do espectador daquilo que realmente importa na história. Da mesma forma, há uma subtrama envolvendo a relação de Pawley com uma jovem que não leva a lugar algum, também servindo unicamente como distração, uma vez que nada contribui para a incessante busca de Edwards por sua sobrinha.
Por outro lado, é praticamente impossível não ficar de queixo caído com o trabalho de John Ford em Rastros de Ódio. No que diz respeito ao visual, este talvez seja o mais belo filme do cineasta – o que não é pouco. Ford compõe planos e cenas belíssimas, não somente capturando de forma maravilhosa a vastidão do Monument Valley – sua locação favorita – como também construindo momentos impecáveis em sua execução, como a sequência na qual duas fileiras de índios cercam os heróis e a já histórica rima visual entre o início e o fechamento do filme na soleira de uma porta – este final, com Edwards voltando para o seu destino errante enquanto a família busca o refúgio do lar, pode facilmente ser incluído entre os mais belos momentos do cinema norte-americano.
Prejudicado ainda ao não deixar muito clara a passagem do tempo, Rastros de Ódio é um filme que não ficou incólume à passagem dos anos. Visto hoje, o trabalho de Ford possui falhas mais gritantes do que à época de seu lançamento, mas nada que diminua a força da história, o grandioso trabalho de direção e a importância histórica da obra. Apontá-lo como o filme que marcou o ocaso do western talvez seja uma temeridade – o próprio Ford faria isso de forma mais significativa em O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) –, mas Rastros de Ódio foi essencial para a mudança de pensamento das plateias em relação ao gênero e à forma de se relacionar com o próprio cinema.
Pode até não ser um dos melhores filmes norte-americanos, porém, sem dúvida, é um dos mais importantes.
Nota: 8.0