Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Wednesday, November 30, 2005

A Guerra dos Aflitos


Este texto não vai ter nexo. Não vai seguir uma ordem lógica ou ter um parágrafo encadeado no outro. Já estou me desculpando com antecedência porque talvez esta seja a primeira vez que escrevo com o peito ao invés da cabeça. Com o coração ao invés do cérebro. Com os pés ao invés das mãos.

Fosse aquela uma cena narrada em um livro ou passada em um filme, ninguém acreditaria. Espectadores sairiam no meio da projeção e leitores deixariam o texto de lado, provavelmente exclamando frases da seguinte natureza: “Até parece” ou “Isso é coisa de filme”. Fosse obra da mente de um gênio criativo, seria tomada como fantasiosa. Mas aconteceu de verdade. Eu vi acontecer, acompanhei todo e cada momento decisivo, e até ainda não acredito.

O dia 26 de novembro de 2005 já entrou para a História do futebol. Foi a data em que o esporte mais amado do mundo deixou de ser apenas futebol e assumiu ares mitológicos, épicos, inspiradores. Foi o dia em que um clube de três cores do Sul do Brasil mostrou o que é ser grande. O dia em que, mais uma vez, como aconteceu diversas vezes ao longo dos mais de 100 anos de existência, o Grêmio fez o Brasil e o mundo se curvar à sua majestade.

Talvez eu não tenha nada a acrescentar a tudo aquilo que já foi dito sobre a epopéia que foi Grêmio e Náutico. Pessoas muito mais talentosas que eu já expressaram suas opiniões. Mas me senti, sim, na obrigação, como gaúcho, como amante do futebol e, mais do que tudo, como gremista, de colocar à disposição de quem quiser ler estas minhas palavras.

O que aconteceu sábado foi algo inexplicável. Palavras racionais jamais conseguirão descrever aquela partida de futebol. Foi o dia em que o maior clube que já existiu no Brasil conquistou o título mais importante de toda a sua já vitoriosa trajetória. Sim, o mais importante. Não por ter sido o maior ou o que teve mais valor. Mas foi o mais importante por tudo o que o cercou.

O lugar de um clube imenso como o Grêmio não é a segunda divisão. De alguma forma, os jogadores compreenderam isso. E compreenderam como nem mesmo os gremistas achavam que eles haviam compreendido. Há pouco tempo escrevi um texto xingando todos aqueles que faziam parte do Grêmio patético do ano passado e início deste ano. Todos os que não entendiam que faziam parte de um clube de futebol diferente de todos os outros.

Pois sábado eu vi o Grêmio que me fez virar gremista. O Grêmio do sangue no rosto de de León, o Grêmio dos pontapés de Dinho, o Grêmio dos gols feios de Jardel, o Grêmio de Felipão, o Grêmio da paixão de Paulo Santana, o Grêmio da veneração de Eduardo Bueno. E, mais do que tudo, vi o Grêmio de toda a nação que usa as três cores como uma segunda pele.

O time do Grêmio que viajou até o nordeste para a Guerra dos Aflitos (nunca o nome de um estádio foi tão apropriado) não tem grande qualidade futebolística. Um ou outro talento desponta ali naquele grupo. Mas poucas vezes em toda a minha vida senti tanto orgulho vendo um time de futebol. A revolta contra as marcações absurdas do árbitro demonstra a diferença entre o Tricolor e o outro de Porto Alegre. Entre o Tricolor e qualquer outro time, para falar a verdade. Os sete bravos guerreiros restantes impedindo o árbitro de se dirigir à marca do pênalti foi uma das cenas mais lindas que já vi em toda a minha vida.

Foi inspirador de ver. Dizem que quanto maior a dor, maior o alívio que a segue. Pois foi exatamente isso que aconteceu no sábado. Nunca sofri tanto assistindo a um jogo de futebol. A corrida do lateral esquerdo Ademar em direção à bola, na cobrança do segundo pênalti do Náutico, foi um dos piores momentos da minha existência. O tempo se suspendeu. Nada mais existia. Entrei em alguma outra dimensão por aqueles poucos segundos. Sentia-me diante de um pelotão de fuzilamento. Com as armas todas apontadas para mim. E o apito do juiz foi o grito de “fogo!”. Mesmo escrevendo essas palavras, tempo depois e já sabendo do final, sinto um nó na barriga. Sinto meus órgãos parando de funcionar.

Mas as armas falharam. O tiro saiu pela culatra. A defesa do herói, do santo, do soldado, da barreira, do ícone, do messias Galatto foi algo extraordinário. Uma canela. Jamais declarei meu amor por uma canela, mas eu amo a canela do Galatto. Façam uma estátua da canela do Galatto. Aquela canela que mostrou ao mundo o tamanho do Grêmio. A canela que disse ao mundo o que passava na cabeça dos jogadores naquele momento: “Nós não podemos perder esse jogo! Nós não vamos perder esse jogo!”.

Foi assim que deixaram de existir sete jogadores. Ali, naquele estádio, longe de sua terra natal, os atletas tornaram-se sete profetas de uma religião. Uma religião liderada por um moleque abusado de 17 anos e um goleiro iluminado. Uma religião que foi buscar novos seguidores longe de seu templo. Longe de seus maiores fiéis. E conseguiu.

Ao deitar a cabeça no travesseiro na noite de sexta para sábado, nenhum gremista duvidava da classificação. Mas garanto nenhum fazia idéia de como ela seria conquistada. A comemoração, a loucura furiosamente maravilhosa que assomou as ruas de Porto Alegre durante o final de semana não foi pelo título. Era obrigação de um clube como o Grêmio vencer este título. A euforia veio pela forma como ela foi conquistada. Pela forma sobrenatural, milagrosa, inacreditável.

O que aconteceu em Pernambuco só acontece com quem nasceu para feitos grandiosos. Mesmo aquele que talvez seja o título com menos valor da história do Grêmio foi conquistado de forma épica, inesquecível. Os eventos do dia 26 de novembro de 2005 jamais haviam ocorrido antes e jamais irão ocorrer depois. Foi algo único. Como o Grêmio.

Por isso, este texto não é para colorados. Talvez eu devesse ter escrito isso no início. Se algum colorado está lendo isso, pare agora e tente apagar estas palavras da mente. Este texto é para gremistas. Para aqueles que sabem celebrar o sofrimento. Para aqueles que conhecem a sensação inigualável de torcer para algo que é mais que um time, que é algo maior do que a vida. Para aqueles que já experimentaram o prazer de calar 100 mil pessoas no Maracanã e fazer 60 mil corinthianos saírem de cabeça baixa do Morumbi. E para quem riu por último da cara dos torcedores do Náutico, que comemoravam com antecedência um título que estava escrito nas estrelas que seria do Grêmio. É um texto para quem sabe que acordou, domingo de manhã, uma pessoa completamente diferente após o ritual de purificação do sábado.

Pouco antes da cobrança do segundo pênalti, perguntei a mim mesmo: “Por que eu gosto de futebol? Por que passar por tanto sofrimento por algo que, na verdade, em nada se relaciona comigo?” Dois minutos depois, agradecia a quem quer que fosse por ser viciado neste esporte. E, mais importante, por ser gremista.

Porque ser gremista é isso. É sofrer, é chorar de tristeza, é quase falecer, mas é também celebrar, é vibrar, é não conseguir compreender como outros conseguem torcer para times diferentes. É ir do mais profundo desespero à sensação plena de felicidade em alguns segundos. É fazer parte de algo que é difícil de colocar em palavras. É simplesmente ser gremista.

Foi uma batalha inigualável, indescritível e inacreditável. A guerra dos Aflitos. Uma partida monumental. Como foi, é e sempre será o Grêmio.

Silvio Pilau – 30/11/06

Saturday, November 26, 2005

Miasma

O lugar fedia a mijo. Era a primeira vez que entrava lá. Gostei. Fedia a mijo, mas meu apartamento também fedia. Talvez por isso me senti tão em casa. A fumaça parecia neblina. Doía os olhos. Não os meus, mas machucaria os de pessoas não acostumadas. Eu enxergava perfeitamente ali dentro. Como um gato no escuro.

Nas mesas, ocupantes de meter medo. Guardas de presídio correriam ao enxergam as cicatrizes daqueles rostos e as tatuagens daqueles corpos. Esse era o bar que eu havia escolhido para relaxar. Um lugar de perdição.

Meu tipo de lugar.

Fui ao balcão. Vazio. Apoiei meu cotovelo na madeira cheira de cuspe. Olhei para a mulher atrás do bar. Se ficasse preso com ela em uma ilha deserta, eu teria um motivo para escapar do lugar. A nado, se preciso fosse. A mulher era horrorosa.

- O que vai querer, querido? – ela perguntou. Aquele “querido” me balançou. Há tempos alguém não me tratava tão carinhosamente. Já começava a pensar em como seria uma noite com ela.

- O que você tiver de mais forte – falei.

- Tem certeza que agüenta?

- Quem olha para sua cara sem vomitar, encara qualquer coisa.

Ela me lançou um olhar furioso. Não me daria mais papo. Não parecia com vontade de conversar. Tudo bem. Eu só queria beber.

Bateu um cálice no balcão. Bem na minha frente. Despejou ali dentro um líquido estranho. Sorriu ironicamente e disse:

- Vai, machão.

Não respondi. Simplesmente virei a bebida em um gole. Desceu bem. Se aquilo era o mais forte que ela tinha, não sairia dali recomendando este lugar aos meus amigos. Se eu ainda tivesse algum.

A mulher do balcão pegou a garrafa e virou as costas. Segurei o braço dela. A pele gorda imiscuiu-se em meus dedos.

- Solte-me, seu imundo!

- Com o maior prazer. Mas deixe a garrafa.

Meio a contragosto, ela me obedeceu. Soltei o braço dela e servi mais uma dose. Acendi um cigarro. Dei uma bela tragada. Enquanto prendia a fumaça, tomei mais um gole. Aí a outra apareceu.

Aquele não era um lugar pra ela. Definitivamente. Ninguém imaginaria que uma mulher daquelas freqüentaria um antro como aqueles. Mas ali ela estava. Longos cabelos morenos. Pele levemente bronzeada. Pernas que pareciam não acabar mais. Lábios incandescentes. E eu louco para me queimar.

- Tem fogo? – ela perguntou. O perfume contrastava com o cheiro do local. O que diabos ela fazia ali?

- Tenho – respondi, acendendo o cigarro na boca dela. Seu olhar me fez tremer. Pelo menos achei que tinha sido o olhar. Mas bebi outra dose e a tremedeira passou. – E você?

- Eu o quê? – ela se espantou.

- Tem fogo? – perguntei.

- Depende – ela disse, sentando-se ao meu lado.

- De quê?

- De você querer se queimar.

- Sou anti-inflamável, querida. Sempre fui. Há anos aguardo uma boa queimadura.

Ela sorriu, tragou o cigarro e exalou a fumaça. Nunca a nicotina foi tão sensual.

- O que alguém como você faz em um lugar como esse? – perguntei.

- Procuro. Mas está difícil de encontrar.

- E qual a sua busca?

- Acho que você sabe.

- Eu nunca sei de nada. Já me dei muito mal por acreditar que sabia das coisas.

- Nenhum palpite?

- Sempre tenho palpite. Tenho palpite até sobre a cor do papel de parede desse bar.

- E sobre mim?

- Tenho um palpite sobre você.

- Qual é?

- Que você é uma puta.

Ela não se indignou. Sabia que não o faria. Gostei disso. Começava a desejar ela. A mulher disse:

- Tudo depende de ponto de vista.

- Minha vista não é das melhores.

- Só sou puta se depender de você. Se você me pagar.

- E se eu não pagar?

- Aí sou apenas um anjo que caiu em sua vida para lhe dar prazer.

- Bastante presunçosa, não?

- Garanto que estar com a opinião mudada pela manhã.

Definitivamente gostava dela. Estiquei o braço e coloquei a mão em sua coxa. Bem gostosa.

- Por que eu a levaria para minha casa?

- Porque você não tem outro lugar para me levar.

- Minha casa está podre. Suja.

- Assim como eu.

- Você nem vai estar lá pela manhã. Se der sorte, vou encontrar um bilhete seu no travesseiro.

- Não sou boa de redação. Prefiro deixar minha marca em você mesmo.

- Você é uma puta.

- E você é um canalha.

Feitos um para o outro, pensei.

- Canalha era meu pai. Eu sou apenas desprezível.

- Que não fode há quanto tempo?

- Mais do que eu gostaria.

Ela deu a última tragada e apagou o cigarro. Virei o copo. Perguntei:

- Vamos?

- Onde?

- Ao meu apartamento.

- Não sou desse tipo de mulher.

- De apartamento?

- Que fode na primeira noite.

- Podemos esperar a manhã chegar.

Ela não disse nada. Após um instante, indagou:

- Vai pagar um drink pra mim ou não?

- Não. Vai dar pra mim?

- Não.

Dei um tapa nela. Foi bonito. O rosto dela se retorceu. Minha mão ardeu, como se queimada. A boca dela era mesmo incandescente. Ela não se mexeu. Deveria estar acostumada a ser tratada assim.

Se ela não estava, isso era comum para mim. Por isso não fiquei mal quando um troglodita me expulsou a porradas. Pelo menos não paguei pela bebida.

Aquela puta. Minha mão ardia.

Não gastei nada no bar. Ainda tinha dinheiro para beber. Caminhei um pouco na noite. Frio. Como eu gostava. Mas o ar estava puro demais. Limpo demais. Não agüentaria ficar muito tempo ali. Entrei no primeiro boteco que eu vi.

O lugar fedia a mijo.


Thursday, November 03, 2005

Soneto do TCC

Se existe alguém que visita este lugar
Este recipiente de minhas idéias
Não se desepere com meu não-publicar
Ainda correm palavras em minhas artérias

Sofro, no momento, um grande mal
Já afligiu muitos e agora chegou meu dia
Mas, tranqüilizem-se, pois está quase no final
Vade retro, maldita monografia

Em pouco tempo retornarei, garanto
De volta aos risos, ao dormir e à viver
Sou vagabundo, por quê me exigir tanto?

Só uma semana e chega de TCC!
Ao final, direi, segurando o pranto:
Estão todos convidados! Vamos beber!

P.S.: Soneto feito às 2h da manhã de quarta para quinta-feira, após um belo dia de feriado passado na frente de um computador por um trabalho de conclusão.