A Guerra dos Aflitos
Este texto não vai ter nexo. Não vai seguir uma ordem lógica ou ter um parágrafo encadeado no outro. Já estou me desculpando com antecedência porque talvez esta seja a primeira vez que escrevo com o peito ao invés da cabeça. Com o coração ao invés do cérebro. Com os pés ao invés das mãos.
Fosse aquela uma cena narrada em um livro ou passada em um filme, ninguém acreditaria. Espectadores sairiam no meio da projeção e leitores deixariam o texto de lado, provavelmente exclamando frases da seguinte natureza: “Até parece” ou “Isso é coisa de filme”. Fosse obra da mente de um gênio criativo, seria tomada como fantasiosa. Mas aconteceu de verdade. Eu vi acontecer, acompanhei todo e cada momento decisivo, e até ainda não acredito.
O dia 26 de novembro de 2005 já entrou para a História do futebol. Foi a data em que o esporte mais amado do mundo deixou de ser apenas futebol e assumiu ares mitológicos, épicos, inspiradores. Foi o dia em que um clube de três cores do Sul do Brasil mostrou o que é ser grande. O dia em que, mais uma vez, como aconteceu diversas vezes ao longo dos mais de 100 anos de existência, o Grêmio fez o Brasil e o mundo se curvar à sua majestade.
Talvez eu não tenha nada a acrescentar a tudo aquilo que já foi dito sobre a epopéia que foi Grêmio e Náutico. Pessoas muito mais talentosas que eu já expressaram suas opiniões. Mas me senti, sim, na obrigação, como gaúcho, como amante do futebol e, mais do que tudo, como gremista, de colocar à disposição de quem quiser ler estas minhas palavras.
O que aconteceu sábado foi algo inexplicável. Palavras racionais jamais conseguirão descrever aquela partida de futebol. Foi o dia em que o maior clube que já existiu no Brasil conquistou o título mais importante de toda a sua já vitoriosa trajetória. Sim, o mais importante. Não por ter sido o maior ou o que teve mais valor. Mas foi o mais importante por tudo o que o cercou.
O lugar de um clube imenso como o Grêmio não é a segunda divisão. De alguma forma, os jogadores compreenderam isso. E compreenderam como nem mesmo os gremistas achavam que eles haviam compreendido. Há pouco tempo escrevi um texto xingando todos aqueles que faziam parte do Grêmio patético do ano passado e início deste ano. Todos os que não entendiam que faziam parte de um clube de futebol diferente de todos os outros.
Pois sábado eu vi o Grêmio que me fez virar gremista. O Grêmio do sangue no rosto de de León, o Grêmio dos pontapés de Dinho, o Grêmio dos gols feios de Jardel, o Grêmio de Felipão, o Grêmio da paixão de Paulo Santana, o Grêmio da veneração de Eduardo Bueno. E, mais do que tudo, vi o Grêmio de toda a nação que usa as três cores como uma segunda pele.
O time do Grêmio que viajou até o nordeste para a Guerra dos Aflitos (nunca o nome de um estádio foi tão apropriado) não tem grande qualidade futebolística. Um ou outro talento desponta ali naquele grupo. Mas poucas vezes em toda a minha vida senti tanto orgulho vendo um time de futebol. A revolta contra as marcações absurdas do árbitro demonstra a diferença entre o Tricolor e o outro de Porto Alegre. Entre o Tricolor e qualquer outro time, para falar a verdade. Os sete bravos guerreiros restantes impedindo o árbitro de se dirigir à marca do pênalti foi uma das cenas mais lindas que já vi em toda a minha vida.
Foi inspirador de ver. Dizem que quanto maior a dor, maior o alívio que a segue. Pois foi exatamente isso que aconteceu no sábado. Nunca sofri tanto assistindo a um jogo de futebol. A corrida do lateral esquerdo Ademar em direção à bola, na cobrança do segundo pênalti do Náutico, foi um dos piores momentos da minha existência. O tempo se suspendeu. Nada mais existia. Entrei em alguma outra dimensão por aqueles poucos segundos. Sentia-me diante de um pelotão de fuzilamento. Com as armas todas apontadas para mim. E o apito do juiz foi o grito de “fogo!”. Mesmo escrevendo essas palavras, tempo depois e já sabendo do final, sinto um nó na barriga. Sinto meus órgãos parando de funcionar.
Mas as armas falharam. O tiro saiu pela culatra. A defesa do herói, do santo, do soldado, da barreira, do ícone, do messias Galatto foi algo extraordinário. Uma canela. Jamais declarei meu amor por uma canela, mas eu amo a canela do Galatto. Façam uma estátua da canela do Galatto. Aquela canela que mostrou ao mundo o tamanho do Grêmio. A canela que disse ao mundo o que passava na cabeça dos jogadores naquele momento: “Nós não podemos perder esse jogo! Nós não vamos perder esse jogo!”.
Foi assim que deixaram de existir sete jogadores. Ali, naquele estádio, longe de sua terra natal, os atletas tornaram-se sete profetas de uma religião. Uma religião liderada por um moleque abusado de 17 anos e um goleiro iluminado. Uma religião que foi buscar novos seguidores longe de seu templo. Longe de seus maiores fiéis. E conseguiu.
Ao deitar a cabeça no travesseiro na noite de sexta para sábado, nenhum gremista duvidava da classificação. Mas garanto nenhum fazia idéia de como ela seria conquistada. A comemoração, a loucura furiosamente maravilhosa que assomou as ruas de Porto Alegre durante o final de semana não foi pelo título. Era obrigação de um clube como o Grêmio vencer este título. A euforia veio pela forma como ela foi conquistada. Pela forma sobrenatural, milagrosa, inacreditável.
O que aconteceu em Pernambuco só acontece com quem nasceu para feitos grandiosos. Mesmo aquele que talvez seja o título com menos valor da história do Grêmio foi conquistado de forma épica, inesquecível. Os eventos do dia 26 de novembro de 2005 jamais haviam ocorrido antes e jamais irão ocorrer depois. Foi algo único. Como o Grêmio.
Por isso, este texto não é para colorados. Talvez eu devesse ter escrito isso no início. Se algum colorado está lendo isso, pare agora e tente apagar estas palavras da mente. Este texto é para gremistas. Para aqueles que sabem celebrar o sofrimento. Para aqueles que conhecem a sensação inigualável de torcer para algo que é mais que um time, que é algo maior do que a vida. Para aqueles que já experimentaram o prazer de calar 100 mil pessoas no Maracanã e fazer 60 mil corinthianos saírem de cabeça baixa do Morumbi. E para quem riu por último da cara dos torcedores do Náutico, que comemoravam com antecedência um título que estava escrito nas estrelas que seria do Grêmio. É um texto para quem sabe que acordou, domingo de manhã, uma pessoa completamente diferente após o ritual de purificação do sábado.
Pouco antes da cobrança do segundo pênalti, perguntei a mim mesmo: “Por que eu gosto de futebol? Por que passar por tanto sofrimento por algo que, na verdade, em nada se relaciona comigo?” Dois minutos depois, agradecia a quem quer que fosse por ser viciado neste esporte. E, mais importante, por ser gremista.
Porque ser gremista é isso. É sofrer, é chorar de tristeza, é quase falecer, mas é também celebrar, é vibrar, é não conseguir compreender como outros conseguem torcer para times diferentes. É ir do mais profundo desespero à sensação plena de felicidade em alguns segundos. É fazer parte de algo que é difícil de colocar em palavras. É simplesmente ser gremista.
Foi uma batalha inigualável, indescritível e inacreditável. A guerra dos Aflitos. Uma partida monumental. Como foi, é e sempre será o Grêmio.
Silvio Pilau – 30/11/06
Fosse aquela uma cena narrada em um livro ou passada em um filme, ninguém acreditaria. Espectadores sairiam no meio da projeção e leitores deixariam o texto de lado, provavelmente exclamando frases da seguinte natureza: “Até parece” ou “Isso é coisa de filme”. Fosse obra da mente de um gênio criativo, seria tomada como fantasiosa. Mas aconteceu de verdade. Eu vi acontecer, acompanhei todo e cada momento decisivo, e até ainda não acredito.
O dia 26 de novembro de 2005 já entrou para a História do futebol. Foi a data em que o esporte mais amado do mundo deixou de ser apenas futebol e assumiu ares mitológicos, épicos, inspiradores. Foi o dia em que um clube de três cores do Sul do Brasil mostrou o que é ser grande. O dia em que, mais uma vez, como aconteceu diversas vezes ao longo dos mais de 100 anos de existência, o Grêmio fez o Brasil e o mundo se curvar à sua majestade.
Talvez eu não tenha nada a acrescentar a tudo aquilo que já foi dito sobre a epopéia que foi Grêmio e Náutico. Pessoas muito mais talentosas que eu já expressaram suas opiniões. Mas me senti, sim, na obrigação, como gaúcho, como amante do futebol e, mais do que tudo, como gremista, de colocar à disposição de quem quiser ler estas minhas palavras.
O que aconteceu sábado foi algo inexplicável. Palavras racionais jamais conseguirão descrever aquela partida de futebol. Foi o dia em que o maior clube que já existiu no Brasil conquistou o título mais importante de toda a sua já vitoriosa trajetória. Sim, o mais importante. Não por ter sido o maior ou o que teve mais valor. Mas foi o mais importante por tudo o que o cercou.
O lugar de um clube imenso como o Grêmio não é a segunda divisão. De alguma forma, os jogadores compreenderam isso. E compreenderam como nem mesmo os gremistas achavam que eles haviam compreendido. Há pouco tempo escrevi um texto xingando todos aqueles que faziam parte do Grêmio patético do ano passado e início deste ano. Todos os que não entendiam que faziam parte de um clube de futebol diferente de todos os outros.
Pois sábado eu vi o Grêmio que me fez virar gremista. O Grêmio do sangue no rosto de de León, o Grêmio dos pontapés de Dinho, o Grêmio dos gols feios de Jardel, o Grêmio de Felipão, o Grêmio da paixão de Paulo Santana, o Grêmio da veneração de Eduardo Bueno. E, mais do que tudo, vi o Grêmio de toda a nação que usa as três cores como uma segunda pele.
O time do Grêmio que viajou até o nordeste para a Guerra dos Aflitos (nunca o nome de um estádio foi tão apropriado) não tem grande qualidade futebolística. Um ou outro talento desponta ali naquele grupo. Mas poucas vezes em toda a minha vida senti tanto orgulho vendo um time de futebol. A revolta contra as marcações absurdas do árbitro demonstra a diferença entre o Tricolor e o outro de Porto Alegre. Entre o Tricolor e qualquer outro time, para falar a verdade. Os sete bravos guerreiros restantes impedindo o árbitro de se dirigir à marca do pênalti foi uma das cenas mais lindas que já vi em toda a minha vida.
Foi inspirador de ver. Dizem que quanto maior a dor, maior o alívio que a segue. Pois foi exatamente isso que aconteceu no sábado. Nunca sofri tanto assistindo a um jogo de futebol. A corrida do lateral esquerdo Ademar em direção à bola, na cobrança do segundo pênalti do Náutico, foi um dos piores momentos da minha existência. O tempo se suspendeu. Nada mais existia. Entrei em alguma outra dimensão por aqueles poucos segundos. Sentia-me diante de um pelotão de fuzilamento. Com as armas todas apontadas para mim. E o apito do juiz foi o grito de “fogo!”. Mesmo escrevendo essas palavras, tempo depois e já sabendo do final, sinto um nó na barriga. Sinto meus órgãos parando de funcionar.
Mas as armas falharam. O tiro saiu pela culatra. A defesa do herói, do santo, do soldado, da barreira, do ícone, do messias Galatto foi algo extraordinário. Uma canela. Jamais declarei meu amor por uma canela, mas eu amo a canela do Galatto. Façam uma estátua da canela do Galatto. Aquela canela que mostrou ao mundo o tamanho do Grêmio. A canela que disse ao mundo o que passava na cabeça dos jogadores naquele momento: “Nós não podemos perder esse jogo! Nós não vamos perder esse jogo!”.
Foi assim que deixaram de existir sete jogadores. Ali, naquele estádio, longe de sua terra natal, os atletas tornaram-se sete profetas de uma religião. Uma religião liderada por um moleque abusado de 17 anos e um goleiro iluminado. Uma religião que foi buscar novos seguidores longe de seu templo. Longe de seus maiores fiéis. E conseguiu.
Ao deitar a cabeça no travesseiro na noite de sexta para sábado, nenhum gremista duvidava da classificação. Mas garanto nenhum fazia idéia de como ela seria conquistada. A comemoração, a loucura furiosamente maravilhosa que assomou as ruas de Porto Alegre durante o final de semana não foi pelo título. Era obrigação de um clube como o Grêmio vencer este título. A euforia veio pela forma como ela foi conquistada. Pela forma sobrenatural, milagrosa, inacreditável.
O que aconteceu em Pernambuco só acontece com quem nasceu para feitos grandiosos. Mesmo aquele que talvez seja o título com menos valor da história do Grêmio foi conquistado de forma épica, inesquecível. Os eventos do dia 26 de novembro de 2005 jamais haviam ocorrido antes e jamais irão ocorrer depois. Foi algo único. Como o Grêmio.
Por isso, este texto não é para colorados. Talvez eu devesse ter escrito isso no início. Se algum colorado está lendo isso, pare agora e tente apagar estas palavras da mente. Este texto é para gremistas. Para aqueles que sabem celebrar o sofrimento. Para aqueles que conhecem a sensação inigualável de torcer para algo que é mais que um time, que é algo maior do que a vida. Para aqueles que já experimentaram o prazer de calar 100 mil pessoas no Maracanã e fazer 60 mil corinthianos saírem de cabeça baixa do Morumbi. E para quem riu por último da cara dos torcedores do Náutico, que comemoravam com antecedência um título que estava escrito nas estrelas que seria do Grêmio. É um texto para quem sabe que acordou, domingo de manhã, uma pessoa completamente diferente após o ritual de purificação do sábado.
Pouco antes da cobrança do segundo pênalti, perguntei a mim mesmo: “Por que eu gosto de futebol? Por que passar por tanto sofrimento por algo que, na verdade, em nada se relaciona comigo?” Dois minutos depois, agradecia a quem quer que fosse por ser viciado neste esporte. E, mais importante, por ser gremista.
Porque ser gremista é isso. É sofrer, é chorar de tristeza, é quase falecer, mas é também celebrar, é vibrar, é não conseguir compreender como outros conseguem torcer para times diferentes. É ir do mais profundo desespero à sensação plena de felicidade em alguns segundos. É fazer parte de algo que é difícil de colocar em palavras. É simplesmente ser gremista.
Foi uma batalha inigualável, indescritível e inacreditável. A guerra dos Aflitos. Uma partida monumental. Como foi, é e sempre será o Grêmio.
Silvio Pilau – 30/11/06