Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Thursday, October 29, 2009

SUBSTITUTOS


SUBSTITUTOS (SURROGATES)
De Jonathan Mostow. Com Bruce Willis, Radha Mitchell, Rosamund Pike, Ving Rhames e James Cromwell.


As melhores ficções-científicas são um reflexo da sociedade. Claro que, ao longo dos anos, o gênero funcionou centenas de vezes como um mero veículo para diversão, com histórias de aventuras passadas no espaço e sem maior conteúdo. No entanto, autores como Phillip K. Dick, Isaac Asimov, Aldous Huxley, George Orwell e outros perceberam que narrativas situadas no futuro poderiam servir como forma de questionar temas, valores e condições do mundo em que vivemos. Por aí surgiram algumas das maiores obras da ficção-científica, aquelas que são cultuadas até hoje por milhões de fãs pelas ideias e reflexões propostas.

Nem tudo, porém, é preto e branco. Entre criações vazias e outras mais densas, existem também as que ficam pelo meio do caminho, sugerindo temas interessantes, mas jamais os desenvolvendo de maneira satisfatória. É o caso, por exemplo, de Substitutos, novo filme do diretor Jonathan Mostow. A história é situada em um futuro próximo, onde as pessoas utilizam andróides para desempenharem suas tarefas no dia-a-dia, enquanto ficam em casa controlando os autômatos apenas com a mente. Essa vida segura é interrompida quando um ataque aos chamados Substitutos acaba tirando a vida dos controladores, e os agentes Greer e Peters são chamados para investigar o caso.

Escrito pelos irregulares Michael Ferris e John D. Brancatto, o filme de Mostow leva algum tempo para conseguir fazer o espectador acreditar naquele mundo. Durante os primeiros quinze ou vinte minutos, acompanhar Bruce Willis e Radha Mitchell com pele lisa e perfeita e olhar inexpressivo (sem falar na peruca emo loira de Willis) é apenas bizarro. Claro que, aos poucos, isso se torna mais natural e chega até a se tornar uma ideia interessante do filme, especialmente quando Mostow apresenta a contraposição entre a textura de borracha dos robôs e as rugas e barba mal-feita do personagem em carne e osso de Bruce Willis – nesse sentido, o cineasta também acerta ao dar destaque os machucados do agente Greer.

E é exatamente quando trata do tema “ser humano vs. máquinas” que Substitutos dá sinais do que poderia ter sido. Desde as primeiras cenas, o filme apresenta um contexto promissor, levantando a questão: “Devemos viver a nossa vida através das máquinas?” Pode não ser original (filmes como Matrix e WALL·E, só para citar dois, já fizeram isso), mas é uma discussão sempre válida. O problema é que a ideia é jogada na mesa, mas não desenvolvida. A partir daí, a cada nova cena o filme acaba fugindo de seu promissor ponto de partida, optando por deixar a reflexão e a discussão de lado para se focar em uma trama policial capenga, que jamais faz muito sentido.

O enredo de Ferris e Brancatto é repleto de clichês e situações que não conseguem fugir do lugar-comum. Ao longo da projeção, o espectador é obrigado a acompanhar uma série de artifícios aos quais já está mais do que acostumado, como o policial que decide seguir a investigação mesmo sem o apoio de seus superiores, o trauma do passado e as reviravoltas que tentam surpreender, mas não possuem muita lógica. Além disso, o roteiro se permite furos e questões não respondidas: até agora não entendi por que o crime caiu a zero com o surgimento dos substitutos - com a possibilidade de se “mascarar”, tenho certeza de que as pessoas tomariam ainda mais atitudes ilegais (uma explicação até poderia ter surgido mais tarde com o hacker, mas ele diz claramente que o que fez para impedir um estupro é algo novo).

O maior problema do roteiro, porém, mora no fraco desenvolvimento dos personagens. Todos eles são tratados de forma esquemática, sem qualquer personalidade. Nem mesmo o já citado trauma do protagonista é abordado de maneira eficiente, aparecendo mais como uma mera curiosidade do que como algo para a plateia compreender melhor o agente Greer. Da mesma forma, as motivações do vilão não fazem sentido e alguns personagens – incluso o próprio protagonista – mudam de opinião sobre os substitutos sem maiores explicações: de uma hora para outra, passam de usuários para críticos dos robôs.

Como consequência, os atores não têm muito material sobre o qual trabalhar, o que acaba limitando suas atuações. Willis, por exemplo, apresenta uma contradição interessante entre o Greer real e o Greer robótico, tanto na composição visual quanto forma de se mover e agir, mas jamais chega a construir um personagem interessante, com o qual o público é capaz de se identificar. O mesmo vale para Radha Mitchell, Rosamund Pike e James Cromwell, totalmente desperdiçados em seus papéis, e Ving Rhames, que apela para a caricatura, mas ao menos parece se divertir um pouco no papel do Profeta.

Apesar destes problemas, Jonathan Mostow é hábil ao manter o interesse da plateia até o final, mesmo após a estranheza dos primeiros minutos. Ainda que o roteiro deixe a desejar em diversos momentos, a história é contada em um ritmo interessante e as mudanças na trama acabam prendendo a atenção do espectador. Além disso, o diretor também cria algumas boas cenas, como a perseguição de Greer a um robô pelas ruas da cidade: não deixa de ser agradável ver um cineasta voltar a filmar uma cena de ação de maneira mais tradicional, sem os exageros de um Michael Bay ou a câmera nervosa de Paul Greengrass.

No geral, Substitutos é um filme de ação eficaz, com uma história que garante a atenção, mesmo que não faça muito sentido quando se pensa sobre ela. O roteiro apresenta alguns temas interessantes e Mostow é um diretor de certa habilidade, mas faltou ousadia para ir a fundo nas questões que levanta. Mais uma boa ideia que se transformou em apenas um produto do cinema americano.

Nota: 6.0

Friday, October 16, 2009

BASTARDOS INGLÓRIOS


Quentin Tarantino é foda. Eu já escrevi isso, outras pessoas já escreveram isso e todo mundo que já assistiu a um filme do cara já pensou isso. Tarantino é foda. Ponto. O cara consegue fazer um cinema que ninguém mais consegue fazer. Discorda? Então vá assistir Bastardos Inglórios e me diga se algum outro cineasta seria capaz de realizar um filme desses. Não é o melhor do ano e não é nem o melhor dele, mas é único. Bastardos Inglórios não é um filme de guerra. É um filme de Tarantino situado durante a guerra. Faz toda a diferença. Todas as características que tornam o seu cinema tão peculiar estão presentes nas duas horas e meia de projeção: a cuidadosa construção de cada cena, as brincadeiras com o tempo, os longos e deliciosos diálogos, o humor negro e, claro a violência exagerada e absurda. Como é de praxe, Tarantino divide seu filme em capítulos, cada um quase um curta-metragem, que se unem e se confundem para formar um todo fantástico. Cada capítulo é formado por cenas desenvolvidas sem a menor pressa, nas quais os personagens conversam e conversam estabelecendo a situação, criando a tensão e preparando o clímax sempre explosivo. E a inteligência das falas chamam a atenção: a pressão psicológica de Landa no fazendeiro, por exemplo, logo no capítulo inicial, é fantástica. Os personagens de Tarantino jamais dizem logo o que querem dizer; é necessário que usem de metáforas e digressões. Mesmo que isso torne o filme mais longo, a habilidade de Tarantino com as palavras e na construção da mise en scène faz com que a obra jamais fique cansativa. As palavras, auxiliadas pelos olhares e pelos silêncios, servem para gerar tensão. O cineasta brinca com o tempo, não de forma cronológica, como é normal em seu cinema, mas alongando a expectativa. A pressa não tem lugar em Bastardos Inglórios. O filme não entra no ritmo do que o público espera, mas faz o inverso: é a plateia quem deve se adequar à velocidade da obra. Somente após a verborragia é que ocorre a ação, e esta, quando vem, vem exatamente com o que se espera de Tarantino: com sangue, mas sem repulsa. A violência de Tarantino não choca, pois ela parece pertencer em um mundo à parte: o mundo do cinema. É gráfica, é sangrenta, mas não é real. Não chega a ser cartunesca como em Kill Bill, mas acompanhar os bastardos escalpelando nazistas gera apenas risadas, não repúdio. Além do comando do cineasta na condução da história, Bastardos Inglórios ainda exibe todo o seu virtuosismo técnico, com movimentos de câmera que vão desde o elegante (a festa no salão do cinema de Shosanna) até as claras homenagens de gênero (como na apresentação dos Bastardos). Aliás, este talvez seja o filme de Tarantino que mais homenageie o próprio cinema. São dezenas – talvez centenas – de referências, desde as mais óbvias às sutis. De quebra, Tarantino utiliza o próprio filme, a película, como arma no final. O cinema como ferramenta de libertação do mundo – quer declaração maior de amor à Sétima Arte do que essa? Impossível não comentar também a incrível atuação de Christoph Waltz no papel do coronel Hans Landa: charmoso, sedutor, divertido, ameaçador e perigoso ao mesmo tempo, Waltz faz talvez o melhor vilão do ano e o antagonista perfeito para os Bastardos liderados por Brad Pitt. Este, aliás, comprova mais uma vez que, quando deixa de lado a pose de galã, é um ótimo ator. Puxando seu personagem para o lado cômico, com sotaque exagerado e caretas caricatas, Pitt é responsável pelos momentos mais engraçados do filme, com destaque para a cena na qual se passa por um italiano (seu arrivederci é nada menos que fabuloso). Bastardos Inglórios tem os seus problemas aqui e ali, a maioria deles decorrente do ego gigante de Tarantino, que tem a mais absoluta convicção de que tudo o que faz é genial. Assim, algumas de suas digressões narrativas são desnecessárias e ele se repete em certas cenas, momentos que certamente seriam cortados da versão final caso se tratasse de outro diretor. Além disso, o roteiro parece não se preocupar em apresentar o destino de todos os Bastardos, deixando dúvidas na cabeça da plateia. Tudo isso, porém é muito pouco perto da grande obra cinematográfica que é Bastardos Inglórios. Tudo bem que o estilo de Tarantino não vai mais mudar o cinema como fez com Cães de Aluguel e Pulp Fiction. Mas ele continua um puta roteirista e diretor, capaz de subverter expectativas e construir momentos de puro cinema. Bastardos Inglórios é divertido, original e inteligente. Um filme claramente feito por um cinéfilo para outros cinéfilos. Se alguém de fora desse grupo gostar, é apenas lucro.

Nota: 8.5

Wednesday, October 14, 2009

Anticristo e a arte.

Fui ver o Anticristo, do Von Trier. O que vou escrever aqui não é uma crítica sobre o filme, não se preocupem. Na verdade, nem sei se gostei ou não do que vi. Se me pedissem para dar uma nota, diria que é algo entre 1.0 e 9.0. A obra do auto-proclamado “melhor diretor de cinema do mundo” pode ser uma verdadeira bomba ou uma obra-prima. Ela atende as duas definições. Difícil – se não impossível – defini-la. Certamente a grande maioria vai odiar. Muitos, porém, irão adorar. E centenas de outros vão pensar como eu: que estivemos diante de uma manifestação da arte em sua mais pura forma.

Já faz praticamente 24 horas que assisti e as imagens e a complexidade do trabalho de Von Trier continuam me assombrando. Não consigo esquecê-las. Saí da sala do cinema chocado com o que vi, mas, principalmente, intrigado. Saí pensativo. Voltei para casa pensando no que havia assistido. Fui dormir tentando compreender na totalidade o que o diretor quis dizer. Aproveitei os intervalos do trabalho no dia seguinte para buscar informações e opiniões que me ajudassem a montar a minha própria interpretação. Finalmente, cheguei à conclusão de que a conclusão não necessariamente existe. Explicações, plural, sim. Uma, a definitiva, não.

E foi em meio a essas reflexões sobre o significado de Anticristo que me dei conta de que estive diante de uma verdadeira obra de arte. Posso até não ter gostado do filme, posso ter achado os excessos escatológicos de Von Trier até gratuitos, mas admirei o cineasta por fazer o que fez. Anticristo não é para ser assistido, mas para ser pensado. Para ser apreciado, é preciso refletir sobre seus simbolismos, seus personagens, suas belas imagens e, acima de tudo, sua selvageria. Anticristo é um filme corajoso que ousa cutucar o espectador e fazê-lo sair de seu marasmo intelectual.

Isso é arte. Arte não é Michael Bay ou Dan Brown. Estes dois são entretenimento. Passatempo. A verdadeira arte é aquela capaz de instigar, de questionar. É a que faz a gente enxergar o mundo de outra forma. A que gera novas opiniões, que propõe pontos de vista diferenciados. Arte é o que nos leva a pensar, refletir, e que nos torna mais críticos. Arte de verdade é aquela criação que nos faz evoluir como seres humanos, que oferece ao menos um milésimo de uma compreensão maior sobre aquilo que nos cerca. E, de preferência, o faz através de perguntas, não de respostas, levando-nos a encontrar nossas próprias soluções.

É raro encontrar uma obra assim, seja no cinema, na literatura, na música, na pintura, ou em qualquer outro lugar. A arte que muda o mundo é a arte subversiva, que teima em não se adequar a padrões. O objetivo da arte não é ser aceita, mas provocar reações. É ser, de preferência, contestada. De início, gerar repulsa, ódio, medo. Não apenas através do choque pelo choque. Isso qualquer um faz. Eli Roth acha que é gênio por mostrar sangue e tortura em seus albergues. Ele não é gênio. É apenas um sádico sedento por sangue. Seus filmes são vazios em reflexão. O Anticristo de Von Trier não. Roth mostra, Von Trier desafia. Roth apresenta, Von Trier provoca. Roth é um cineasta, Von Trier é um artista.

Confesso que fazia um bom tempo que um filme não me incomodava tanto quanto Anticristo. Incomodar no bom sentido. No sentido de ser desafiado. De saber que, agora, sou uma pessoa mais completa do que era antes de assistir ao filme. Exagero, talvez, mas sinto aquela sensação prazerosa de que, de alguma forma, cresci. Aprendi algo com essa obra. Somente a arte, a verdadeira arte, a arte que provoca, que instiga, é capaz disso. Essa arte pode mudar uma pessoa e expandir uma forma de pensar. Pode criar uma nova forma de pensar

Esse é o medo das pessoas em relação a esse tipo de arte. A imensa maioria vai odiar Anticristo não porque é um filme ruim, mas simplesmente porque não irá ao menos tentar compreendê-lo. Terá preguiça de pensar sobre ele. Não refletirá sobre o que assistiu ou sobre o que o artista buscou transmitir. Por preguiça, claro, mas também por medo. Um é consequência do outro. Como não querem pensar, não aceitam o que é diferente. O original dá medo. A inovação assusta. O novo traz receio. Tudo o que foge das fórmulas preestabelecidas é pretensioso. A pasteurização domina. O fast-food intelectual reina.

Lars Von Trier é o melhor diretor de cinema do mundo, como falou em Cannes? Não sei dizer. Provavelmente não. Talvez seja impossível apontar um. Mas ele está, certamente, entre os poucos diretores capazes de criar verdadeira arte. De apresentar uma visão original e levar a plateia a refletir sobre aquilo que assiste. Von Trier faz cinema para inquietar, para provocar e para questionar. Por isso, mesmo que eu não consiga dizer se gosto ou não de seu último filme, posso dizer com segurança que o admiro por ter a coragem de ser um artista verdadeiro e único em uma época onde eles são tão raros.