Exercícios de Saramago
Demorou, o grito, mas saiu, sim, saiu, ou melhor, foi expelido, forte, ainda que combalido, ruidoso, porém silente. A garganta, que, no momento em que contamos essa história, tempos depois de tudo acontecido, não é mais garganta, mas um mero resquício de tecidos humanos rasgados, de cor vermelha, não vermelha-sangue, mas vermelha irritação, quase rosa, a garganta, sim, voltamos a ela, a garganta jamais havia sido tão exigida. Pois o que se passou antes do grito, o mesmo grito do qual já falamos e, por conseqüência, o leitor, esperamos, já está familiarizado, foi um acontecimento inédito na vida do nosso personagem, do qual ainda não falamos e pretendemos falar agora, tanto do fato quanto do personagem. O personagem, primeiro, para depois falarmos sobre o fato, estava na casa dos 23 anos, talvez mais, quiçá um pouco menos, magro, para não dizer esquálido, pois não nos agrada desmerecer nosso próprio personagem, portanto, magro, cabelos negros e, perdoem a redundância, vivacidade viva, em suas pernas, seus braços, todos os membros do seu corpo, bem como em sua cabeça. Como ocupação, no sentido de emprego, ganha-pão, poder-se-ia dizer que o personagem não a tinha, embora recentemente a tivesse, do que conclui-se, logicamente, que, no momento do fato, ele estava desempregado. Eis o personagem, então, como prometido, e agora podemos seguir adiante, dessa vez, cumprindo a outra parte da promessa, para falar do fato. Antes, é necessário falar também do local, porque, como diz a regras de uma boa história, deve-se situar bem o evento narrado, o que, bem ou mal, estamos tentando fazer agora, com estas linhas. Mas o local, portanto, era uma casa, humilde, pobre, no sentido de não possuir muitos recursos, mas ainda uma casa, se considerarmos como casa um lugar com paredes e tetos onde mora alguém, mesmo que essas paredes, ou o teto, não estejam em boas condições. Íamos esquecendo, o que prejudicaria nossa história, de falar que a família do personagem morava junto com ele, família no sentido de instituição, de esposa e filhos, que ele tinha três, esposas, não filhos, caso contrário poderíamos pensar no personagem como um devasso ou como um sheik do Oriente Médio, o que, como sabemos, não corresponde à verdade. Repassando, então, conhecemos o personagem, sua vida, o local e sua família, quase o necessário para começarmos a falar do fato, cerne desta narrativa, na qual já nos enrolamos o suficiente. Só falta, antes de falar do acontecido, o fato que causou aquele grito, falar sobre outra característica fundamental da história, que é a arma, mas arma no sentido de arma de fogo, cuspidora de balas, com gatilho e coronha, porque, se falarmos apenas em arma, poderia o leitor se enganar, uma vez que arma pode ser tanto uma ogiva nuclear quanto um lápis, óbvio, desde que desvirtuado de seu propósito inicial, o de ajudar o ser humano a documentar seus pensamentos, em outras palavras, escrever. Mas, então, a arma, de fogo, como vimos, é outro elemento importante, diríamos até essencial para a história, porque foi a causadora, talvez não causadora, mas o que tornou possível acontecer, sim, dizer dessa forma fica melhor, tornou possível acontecer o fato que resultou no grito. Entramos, finalmente, no fato propriamente dito agora, com nosso personagem empunhando a arma na mão, mão direita, para o leitor imaginar melhor a cena, enquanto caminha pela casa, da qual já falamos. É importante, também, dizer o que se passava na mente do personagem, para que o leitor possa compreender suas motivações para cometer o ato que estamos prestes a narrar, senão a história poderia ficar sem sentido, parecendo uma mera narração com o objetivo de chocar, o que seria uma constatação enganosa por parte do leitor. O que passava, portanto, na mente do personagem, e não estamos conjecturando isso, pois agora, depois de sabermos tudo o que aconteceu, pode-se ter clara noção de seus pensamentos, era que não teria mais, devido ao seu desemprego, o que também já falamos, então, não teria mais como sustentar sua família, esposa e três filhos. O medo, às vezes, pode assumir o controle de uma vida, e foi o que aconteceu com nosso personagem quando se viu sem trabalho, sem fonte de renda, sem ter como alimentar seus filhos e garantir o mínimo necessário para a sobrevivência de sua esposa. O medo, então, dominou ele, tanto o medo do que fazer no momento quanto o medo do futuro, sabendo que fracassou no papel de pai, no papel de marido, no sentido destas duas figuras como provedoras de oportunidades a seus entes queridos. Assim, tomou a decisão, da qual falaremos em seguida, não sem dificuldade, longe disso, talvez tenha sido a decisão mais difícil de toda a sua vida, mas tomou-a, e, por essa razão, agora empunhava a arma de fogo, que, talvez precisemos dizer, pois o leitor poderia achar estranho que alguém pobre como nosso personagem teria condições de comprar uma arma de fogo, talvez precisemos dizer que esta tinha sido herdada por sua esposa, quando o pai dela, portanto, sogro do nosso personagem, falecera, mas, continuando, ele empunhava a arma de fogo e observava pelo vão da porta do quarto enquanto sua família inteira, como sabemos, esposa e três filhos, dormia junto no colchão. Para deixar ainda mais claro o estado de espírito do personagem, o leitor pode colocar na cena uma lágrima, que escapou do canto do olho do personagem enquanto, parado no vão da porta, observava a família, lágrima essa que mostra como ele não queria cometer o ato, que sua força motriz, se é que podemos dizer assim, não foi ódio pela família. É que, decepcionado consigo mesmo, o personagem preferiu não fazer a família passar por dificuldades, que, ele sabia, com certeza viriam, conseqüência do desemprego recente, uma vez que, mesmo quando tinha trabalho, mal conseguia suprir as necessidades da família e, agora, pensava ele, sem emprego, os tempos seriam ainda piores. Nessa altura, se o leitor tiver um pouco de imaginação e, claro, ainda estiver acompanhando esta história, já pode ter uma idéia do que irá acontecer, já que o personagem está parado no vão da porta, olhando sua família dormindo no colchão, único da casa, esquecemos de dizer, com uma arma de fogo na mão direita e uma lágrima no rosto, tudo aquilo que já havíamos dito antes, além, é claro, daquilo que também já falamos que se passa na cabeça dele. Fácil de prever, portanto, mas difícil de compreender, os atos seguintes do personagem, que entraria no quarto, se aquilo se constituísse como um quarto, e, contra todos os seus princípios, apertaria o gatilho apontando, primeiro, para sua esposa, porque ela era a maior e mais forte, portanto, a única capaz de impedi-lo a cometer o ato, mas, voltando, a esposa foi a primeira e, apesar da falta de prática do personagem, o tiro foi direto na testa dela, que, dormindo, talvez até sonhando com o homem que empunhava a arma, nunca soube como morreu, isto se considerarmos que não existe vida do outro lado, após a morte, assunto interessante, mas do qual não devemos nos ocupar nesta história. Sabe-se que um tiro, salvo aqueles disparados por armas com silenciadores, o que não era o caso aqui, constitui-se em algo muito estrepitoso, barulhento mesmo, o que fez com que os três filhos do personagem acordassem, meio atordoados, é verdade, mas acordassem, o que tornou ainda mais difícil para o personagem continuar com suas intenções, pois não deve ser agradável a visão de seus filhos chorando, com a mãe morta ao lado, e você apontando uma arma a eles. Imagina-se, então, a situação na qual se encontrava e nosso personagem e, finalmente, retornando ao início desse texto, compreende-se que a descrição daquele grito não fora exagerada, nem um pouco. O grito, que, se o leitor não lembra, foi descrito nas primeiras linhas deste relato, foi soltado neste momento, por nosso personagem, antes de apertar o gatilho três vezes tirando a vida de seus três filhos, o que ele veio a fazer, não nos enganemos, ainda que com muito sofrimento, sofrimento esse expressado através do grito. Depois de tudo, e estamos chegando quase ao fim do nosso triste relato, o personagem deixou a arma no chão de madeira e deitou-se no colchão, junto aos quatro corpos sem vida de sua família, o que poderia ser uma cena mórbida, se não disséssemos que ele chorava, e muito, e não soubéssemos que ele não deitava com os mortos no único colchão da casa por algum desejo estranho, mas por amor, sim, amor pela família, por acreditar que essa chacina, pois assim a imprensa a rotularia, consistia na única forma de poupá-los, a família, não a imprensa, das dificuldades que enfrentariam. Esta, portanto, conclui-se, é, apesar de todos os elementos que poderiam classificá-la em outro gênero, uma história de amor, amor de um pai por seus filhos, amor de um marido por sua esposa, e que, como grande parte das histórias de amor da vida real, que pouco têm a ver com as do cinema, como todos que já viveram grandes amores sabem, não necessariamente encerram-se com finais felizes.
02/10/05
02/10/05