Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Sunday, October 23, 2005

Exercícios de Saramago

Demorou, o grito, mas saiu, sim, saiu, ou melhor, foi expelido, forte, ainda que combalido, ruidoso, porém silente. A garganta, que, no momento em que contamos essa história, tempos depois de tudo acontecido, não é mais garganta, mas um mero resquício de tecidos humanos rasgados, de cor vermelha, não vermelha-sangue, mas vermelha irritação, quase rosa, a garganta, sim, voltamos a ela, a garganta jamais havia sido tão exigida. Pois o que se passou antes do grito, o mesmo grito do qual já falamos e, por conseqüência, o leitor, esperamos, já está familiarizado, foi um acontecimento inédito na vida do nosso personagem, do qual ainda não falamos e pretendemos falar agora, tanto do fato quanto do personagem. O personagem, primeiro, para depois falarmos sobre o fato, estava na casa dos 23 anos, talvez mais, quiçá um pouco menos, magro, para não dizer esquálido, pois não nos agrada desmerecer nosso próprio personagem, portanto, magro, cabelos negros e, perdoem a redundância, vivacidade viva, em suas pernas, seus braços, todos os membros do seu corpo, bem como em sua cabeça. Como ocupação, no sentido de emprego, ganha-pão, poder-se-ia dizer que o personagem não a tinha, embora recentemente a tivesse, do que conclui-se, logicamente, que, no momento do fato, ele estava desempregado. Eis o personagem, então, como prometido, e agora podemos seguir adiante, dessa vez, cumprindo a outra parte da promessa, para falar do fato. Antes, é necessário falar também do local, porque, como diz a regras de uma boa história, deve-se situar bem o evento narrado, o que, bem ou mal, estamos tentando fazer agora, com estas linhas. Mas o local, portanto, era uma casa, humilde, pobre, no sentido de não possuir muitos recursos, mas ainda uma casa, se considerarmos como casa um lugar com paredes e tetos onde mora alguém, mesmo que essas paredes, ou o teto, não estejam em boas condições. Íamos esquecendo, o que prejudicaria nossa história, de falar que a família do personagem morava junto com ele, família no sentido de instituição, de esposa e filhos, que ele tinha três, esposas, não filhos, caso contrário poderíamos pensar no personagem como um devasso ou como um sheik do Oriente Médio, o que, como sabemos, não corresponde à verdade. Repassando, então, conhecemos o personagem, sua vida, o local e sua família, quase o necessário para começarmos a falar do fato, cerne desta narrativa, na qual já nos enrolamos o suficiente. Só falta, antes de falar do acontecido, o fato que causou aquele grito, falar sobre outra característica fundamental da história, que é a arma, mas arma no sentido de arma de fogo, cuspidora de balas, com gatilho e coronha, porque, se falarmos apenas em arma, poderia o leitor se enganar, uma vez que arma pode ser tanto uma ogiva nuclear quanto um lápis, óbvio, desde que desvirtuado de seu propósito inicial, o de ajudar o ser humano a documentar seus pensamentos, em outras palavras, escrever. Mas, então, a arma, de fogo, como vimos, é outro elemento importante, diríamos até essencial para a história, porque foi a causadora, talvez não causadora, mas o que tornou possível acontecer, sim, dizer dessa forma fica melhor, tornou possível acontecer o fato que resultou no grito. Entramos, finalmente, no fato propriamente dito agora, com nosso personagem empunhando a arma na mão, mão direita, para o leitor imaginar melhor a cena, enquanto caminha pela casa, da qual já falamos. É importante, também, dizer o que se passava na mente do personagem, para que o leitor possa compreender suas motivações para cometer o ato que estamos prestes a narrar, senão a história poderia ficar sem sentido, parecendo uma mera narração com o objetivo de chocar, o que seria uma constatação enganosa por parte do leitor. O que passava, portanto, na mente do personagem, e não estamos conjecturando isso, pois agora, depois de sabermos tudo o que aconteceu, pode-se ter clara noção de seus pensamentos, era que não teria mais, devido ao seu desemprego, o que também já falamos, então, não teria mais como sustentar sua família, esposa e três filhos. O medo, às vezes, pode assumir o controle de uma vida, e foi o que aconteceu com nosso personagem quando se viu sem trabalho, sem fonte de renda, sem ter como alimentar seus filhos e garantir o mínimo necessário para a sobrevivência de sua esposa. O medo, então, dominou ele, tanto o medo do que fazer no momento quanto o medo do futuro, sabendo que fracassou no papel de pai, no papel de marido, no sentido destas duas figuras como provedoras de oportunidades a seus entes queridos. Assim, tomou a decisão, da qual falaremos em seguida, não sem dificuldade, longe disso, talvez tenha sido a decisão mais difícil de toda a sua vida, mas tomou-a, e, por essa razão, agora empunhava a arma de fogo, que, talvez precisemos dizer, pois o leitor poderia achar estranho que alguém pobre como nosso personagem teria condições de comprar uma arma de fogo, talvez precisemos dizer que esta tinha sido herdada por sua esposa, quando o pai dela, portanto, sogro do nosso personagem, falecera, mas, continuando, ele empunhava a arma de fogo e observava pelo vão da porta do quarto enquanto sua família inteira, como sabemos, esposa e três filhos, dormia junto no colchão. Para deixar ainda mais claro o estado de espírito do personagem, o leitor pode colocar na cena uma lágrima, que escapou do canto do olho do personagem enquanto, parado no vão da porta, observava a família, lágrima essa que mostra como ele não queria cometer o ato, que sua força motriz, se é que podemos dizer assim, não foi ódio pela família. É que, decepcionado consigo mesmo, o personagem preferiu não fazer a família passar por dificuldades, que, ele sabia, com certeza viriam, conseqüência do desemprego recente, uma vez que, mesmo quando tinha trabalho, mal conseguia suprir as necessidades da família e, agora, pensava ele, sem emprego, os tempos seriam ainda piores. Nessa altura, se o leitor tiver um pouco de imaginação e, claro, ainda estiver acompanhando esta história, já pode ter uma idéia do que irá acontecer, já que o personagem está parado no vão da porta, olhando sua família dormindo no colchão, único da casa, esquecemos de dizer, com uma arma de fogo na mão direita e uma lágrima no rosto, tudo aquilo que já havíamos dito antes, além, é claro, daquilo que também já falamos que se passa na cabeça dele. Fácil de prever, portanto, mas difícil de compreender, os atos seguintes do personagem, que entraria no quarto, se aquilo se constituísse como um quarto, e, contra todos os seus princípios, apertaria o gatilho apontando, primeiro, para sua esposa, porque ela era a maior e mais forte, portanto, a única capaz de impedi-lo a cometer o ato, mas, voltando, a esposa foi a primeira e, apesar da falta de prática do personagem, o tiro foi direto na testa dela, que, dormindo, talvez até sonhando com o homem que empunhava a arma, nunca soube como morreu, isto se considerarmos que não existe vida do outro lado, após a morte, assunto interessante, mas do qual não devemos nos ocupar nesta história. Sabe-se que um tiro, salvo aqueles disparados por armas com silenciadores, o que não era o caso aqui, constitui-se em algo muito estrepitoso, barulhento mesmo, o que fez com que os três filhos do personagem acordassem, meio atordoados, é verdade, mas acordassem, o que tornou ainda mais difícil para o personagem continuar com suas intenções, pois não deve ser agradável a visão de seus filhos chorando, com a mãe morta ao lado, e você apontando uma arma a eles. Imagina-se, então, a situação na qual se encontrava e nosso personagem e, finalmente, retornando ao início desse texto, compreende-se que a descrição daquele grito não fora exagerada, nem um pouco. O grito, que, se o leitor não lembra, foi descrito nas primeiras linhas deste relato, foi soltado neste momento, por nosso personagem, antes de apertar o gatilho três vezes tirando a vida de seus três filhos, o que ele veio a fazer, não nos enganemos, ainda que com muito sofrimento, sofrimento esse expressado através do grito. Depois de tudo, e estamos chegando quase ao fim do nosso triste relato, o personagem deixou a arma no chão de madeira e deitou-se no colchão, junto aos quatro corpos sem vida de sua família, o que poderia ser uma cena mórbida, se não disséssemos que ele chorava, e muito, e não soubéssemos que ele não deitava com os mortos no único colchão da casa por algum desejo estranho, mas por amor, sim, amor pela família, por acreditar que essa chacina, pois assim a imprensa a rotularia, consistia na única forma de poupá-los, a família, não a imprensa, das dificuldades que enfrentariam. Esta, portanto, conclui-se, é, apesar de todos os elementos que poderiam classificá-la em outro gênero, uma história de amor, amor de um pai por seus filhos, amor de um marido por sua esposa, e que, como grande parte das histórias de amor da vida real, que pouco têm a ver com as do cinema, como todos que já viveram grandes amores sabem, não necessariamente encerram-se com finais felizes.

02/10/05

Thursday, October 13, 2005

O Estranho Caso de Ricardo Almeida

Ricardo Almeida era um devorador de livros. Mas não no sentido figurado da expressão, uma simbologia para representar aquela pessoa que passa horas lendo e adquirindo o conhecimento expresso pelas mais brilhantes mentes do pensamento mundial. Não, Ricardo Almeida definitivamente não se encaixava nessa definição. Ele era um devorador de livros de verdade. Cortava-os em pedacinhos, mastigava-os e engolia. Fazia a digestão e até a evacuação. Aquilo que o corpo das pessoas normais faz com carne, arroz e feijão, o de Ricardo Almeida fazia com páginas, frases e palavras.

Tudo começou quando ele tinha seis anos. Começou não, foi diagnosticado. Porque essa peculiaridade Ricardo teve desde sempre, desde a época em que estava preso na placenta de sua mãe e nadando no líquido amniótico. Mas foi apenas com essa idade que o problema foi finalmente revelado. Até então, Ricardo sofria para se alimentar. Comia, mas tudo fazia mal para ele. Vomitava, e ficava constantemente doente.

Sua mãe tentou as mais diversas refeições, mas de nada adiantava. Os médicos também não compreendiam o que acontecia com o garoto. Esta aflição, tanto para Ricardo quanto para os seus pais, durou seis anos. Foi quando, em um ato sem explicação lógica, exceto o puro instinto, Ricardo viu seu pai recortando algum anúncio no jornal. Parado ao lado, o garoto esticou o braço, pegou o pedaço de papel e o pôs na boca.

Aquilo mudou a vida até então dorida de Ricardo Almeida. O prazer e a satisfação que acompanharam a trajetória digestiva daquele pedaço de celulose trouxe alento à sua existência. A princípio, ele não contou para ninguém. Comia pedaços de jornais e revistas escondido de seus pais. Eles não entendiam como o garoto havia se curado da inexplicável doença e acabaram atribuindo o antigo mal a um acontecimento da idade.

Certo dia, decidiu revelar tudo aos pais. Obviamente, eles encararam a notícia com um certo receio. Mas Ricardo, já um adolescente, fez um lanche na frente dos dois. Rasgou pedaços de uma revista e engoliu. Os dois ficaram pasmos e acreditaram que seu filho estava louco. Ainda assim, optaram por dar-lhe um voto de confiança. E, aos poucos, descobriram que era tudo verdade. Médicos especialistas comprovaram a eles que, de alguma forma, comer livros, jornais e revistas fazia bem a Ricardo.

Mas não foi fácil para ele. O pobre Ricardo Almeida passou a sua juventude sem poder visitar uma pizzaria ou uma churrascaria na companhia de amigos. O seu problema fez com que o rapaz acabasse entrando em depressão. Passava longas noites sozinho no quarto, engolindo papéis com imagens de chocolate. Em compensação, foi nessa época que ele adquiriu paladar.

A revelação veio quando foi ler um livro de Agatha Christie. Assim que lia uma página, Ricardo a devorava. E percebeu que o gosto era diferente. Era saboroso, dava-lhe prazer momentâneo. Para comparar, decidiu comer páginas escritas por Paulo Coelho. Simplesmente não conseguiu engoli-las. Exultante com sua descoberta, começou a experimentar de tudo.

Um acompanhamento de médicos estupefatos com a sua condição fez Ricardo elaborar um cardápio riquíssimo. Apesar de os doutores não compreenderem o problema, descobriram que cada alimento ingerido pelo paciente tinha um valor nutritivo diferente. Os livros da Agatha Christie, por exemplo, tinham sabor, mas pouco ofereciam em termos alimentares. O próprio Ricardo estabeleceu uma comparação com fast-food, aquelas comidas gostosas para serem deliciadas ocasionalmente, sem muita freqüência. Para lanchinhos rápidos no meio da tarde, Ricardo comia contos ou crônicas, já que eram leves, rápidos e não pesavam. Jornais e revistas também eram recomendados.

Almoço e jantar, porém, eram diferentes. Desejosos de alimentar seu filho de forma apropriada, os pais de Ricardo preparavam refeições completas, contendo tudo aquilo que o filho precisava. Assim, ele comia páginas de obras de Machado de Assis, Mario Vargas Llosa e George Orwell, por exemplo. Um cardápio variado, mas rico.

Quando recebiam a família toda em casa, como no Natal ou outras datas festivas, a mesa era farta. Verdadeiros banquetes. Junto a carnes, batatas e víveres das pessoas normais, a ceia trazia obras de alguns dos mais renomados autores de todos os tempos. Nestas ocasiões, Ricardo entrava em um estado de êxtase. Certa vez, na Páscoa, por exemplo, teve a melhor refeição de sua vida. Saramago, García Márquez, Dostoievsky, Nietzsche e Tom Wolfe eram apenas algumas das guloseimas que o esperavam. Passou duas semanas se deliciando com aquelas obras.

Seu estado, após despertar a atenção dos médicos, atraiu a imprensa. Ricardo Almeida virou uma celebridade. Sua vida tornou-se o assunto do momento em diversos cantos do planeta. Escritores interessaram-se e Ricardo acabou vendendo os direitos de sua história para um deles. Quando o livro ficou pronto, Ricardo mal pôde acreditar. Sua vida virara uma obra literária.

Até hoje, ele nunca leu o livro até o final. Não por falta de vontade. Tentou várias vezes, com um exemplar de “O Estranho Caso de Ricardo Almeida” em mãos, sentar em uma poltrona e começar a leitura. Mas o livro era uma bela peça de literatura. Ricardo não agüentava a tentação e sempre acabava se deliciando com as páginas de sua própria vida.

11/08/05

Saturday, October 08, 2005

A Infausta Vida das Excreções


Tenho chegado à conclusão de que tudo pode ser transformado em arte. Tudo mesmo. Mesmo fatos corriqueiros podem ser realizados de forma artística, criativa e elaborada, como amarrar os sapatos, limpar a casa, peidar e arrotar. Sim, peidar e arrotar. Esse texto é uma ode ao peido e ao arroto. É uma maneira encontrada por mim para ressaltar a importância desses dois eternos companheiros do ser humano, que, por alguma razão que foge à minha compreensão, jamais foram valorizados como deveriam. Pelo contrário, são tidos como coisas feias, repugnantes.

E essa é uma das maiores injustiças da humanidade. Até porque toda a humanidade peida e arrota. E digo mais: todo mundo sente prazer ao peidar e arrotar. Vamos deixar a hipocrisia de lado por um momento e admitir que poucas coisas se comparam à satisfação decorrente de uma liberação de gases barulhenta, seja pelo caminho superior ou inferior. Quem disser que não faz essas coisas e que não gosta de fazê-las, está mentindo. Descaradamente.

Embora façam parte de um mesmo conjunto de excreções, vamos analisá-los separadamente. Primeiro, o peido. Também conhecido pela singela alcunha de pum, o peido é uma criação do corpo humano (e de Deus, para quem acredita que existe um barbudo lá em cima comandando tudo) que merece ser respeitada. Afinal, além de sua importante tarefa fisiológica, o peido é um cara que só quer respirar um ar puro, ainda que ele próprio acabe poluindo-o em seguida. Quem nunca peidou na cama e se escondeu debaixo das cobertas para avaliar o resultado?

Fazendo uma analogia brilhante, o peido é igual a uma pessoa presa injustamente. Com tanta sujeira e podridão em volta, ele mantém firme a idéia de liberdade, sonhando em ver mais uma vez a luz do dia. E, finalmente, após muito esforço, a sua tão merecida fuga tem sucesso e ele entra em contato com o mundo exterior. Mas ele ficou preso por muito tempo, as pessoas têm receio para com ele e o vêem como algo a ser ignorado. Mas ele não merece ser rejeitado. Este é o destino do peido. A trágica vida do pum.

Já o arroto (que, ao contrário do peido, não tem alcunha; pelo contrário, tem apenas um nome “científico”: eructação) tem uma vida um pouco mais agradável. Não tanto, mas um pouco. Em alguns locais do mundo, o arroto é até muito bem-vindo, sendo recebido como símbolo de satisfação. Na maioria do tempo, porém, ele é tão rejeitado quanto seu primo, o peido. Cada vez que ele surge, imponente, estrepitoso, recebe caras feias. O que também é uma injustiça, porque, além do prazer do próprio ato de dar um bom arroto, aquele capaz de fazer tremer janelas, ele também limpa grande parte do nosso sistema digestivo. Arrotar é se renovar.

Então, por que toda essa fúria infundada contra as duas indefesas e inofensivas liberações naturais do corpo humano? Para nossa sorte, ainda existem algumas pessoas que aclamam o peido e o arroto como as verdadeiras belezas que são e os transformam em obras de arte.

Como não se sentir extasiado ao ver uma pessoa arrotar frases inteiras? Ou quando se presencia alguém, sentado, inclinar levemente o corpo para um lado, liberando o caminho para a saída do peido? Essas pessoas são gênios e não deveriam ser tratadas como meros mortais. São seres que, em algum momento iluminado de suas vidas, compreenderam a verdadeira essência das excreções e toda a beleza divina existente nelas. E, mais do que isso, têm a coragem de mostrar ao mundo o quão lindo são os peidos e arrotos.

Por tudo isso, respeitem os puns, amem os arrotos. Eles merecem muito mais do que têm. No fundo, são uma parte íntima de cada um de nós. São como nossos filhos, saídos de nosso corpo. Peide e arrote à vontade. E tenha orgulho disso.

Tuesday, October 04, 2005

2 Filhos de Francisco

2 FILHOS DE FRANCISCO
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De Breno Silveira. Com Ângelo Antônio, Dira Paes, Dablio Moreira, Marcos Henrique, Márcio Kieling, Thiago Mendonça, Paloma Duarte, Natália Lage, José Dumont, Lima Duarte e Jackson Antunes.


19/09/05 – Silvio Pilau

Admito que na primeira vez em que ouvi falar sobre o filme baseado na vida de Zezé di Camargo e Luciano, meu pensamento foi o de ficar o mais longe possível de qualquer cinema que estivesse passando a obra. Mas, também, como poderia ser diferente? Depois de anos de atentados à sétima arte cometidos por celebridades que apenas buscam mais uma forma de ganhar alguns milhões (Xuxa, Padre Marcelo Rossi, Eliana, Sandy & Júnior), óbvio que rejeição seria a primeira resposta a 2 Filhos de Francisco.

Pois o filme, ao contrário daqueles protagonizados pelos “atores” citados acima, vem conquistando o respeito da crítica e uma propaganda boca-a-boca como não se via há algum tempo em relação ao cinema nacional. Diante deste quadro, decidi dar uma chance. E afirmo: deixem o preconceito de lado, pois 2 Filhos de Francisco é um belíssimo filme.

A história começa em 1962, em um pequeno casebre em Pirenópolis, no interior de Goiás. É lá que o casal Francisco e Helena tem seu primeiro filho, Mirosmar. Ainda criança, o garoto demonstra aptidão para a música, fazendo dupla com seu irmão. Francisco, acreditando que essa pode ser a única opção de uma vida melhor para os filhos, realiza diversos sacrifícios para ajudar na carreira artística da dupla.

2 Filhos de Francisco é uma história semelhante a diversas outras que já vimos no cinema: sujeitos comuns, sem grandes possibilidades de sucesso na vida, que, depois de enfrentarem uma série de obstáculos e dificuldades, conseguem vencer e atingir seu objetivo. No entanto, este enredo clichê não diminui nem um pouco a força de 2 Filhos de Francisco. Dirigido com extremo talento por Breno Silveira, a obra surpreende com uma trama divertida e emocionante, além de personagens cativantes pelos quais a platéia aprende a torcer.

Mesmo com um ótimo roteiro, o sucesso artístico do filme deve-se, principalmente, a Silveira. Ao invés de transformar a história em uma novela recheada de momentos melodramáticos, o diretor opta por não apelar à pieguice, deixando que a identificação do espectador com os personagens construa os momentos mais emocionantes. Assim, 2 Filhos de Francisco não derrapa no sentimentalismo exagerado, como foi o caso de Olga. Aqui, as emoções que surgem no espectador são naturais, e não forçadas pelo diretor, pelo roteiro ou pela trilha. 2 Filhos de Francisco é um filme verdadeiro e, o que é ainda melhor, respeitoso e honesto com o espectador.

Este aspecto revela-se em algumas belíssimas cenas, contadas com muito talento pelo diretor. Aliás, o filme está repleto de momentos inspirados: reparem na forma como é filmado o momento em que uma das filhas do casal diz que está com fome. A câmera se afasta de Helena, simbolizando todo o constrangimento dela ao não conseguir prover o básico para seus filhos. Uma cena sutil, mas tocante.

Da mesma forma, o primeiro encontro entre Zilu e Zezé também merece destaque. Paloma Duarte e Márcio Kieling demonstram todo o nervosismo dos personagens com aquele momento apenas através gestos, enquanto o diretor estica ao máximo a cena, explorando aquele importante momento entre os dois.

As atuações, aliás, são outro trunfo do filme, uma vez que os atores conquistam a simpatia do público com facilidade. Ângelo Antônio, no papel de Francisco, tem uma interpretação fabulosa, criando um personagem extremamente real: rígido e firme com seus filhos, mas, ao mesmo tempo, carinhoso e preocupado. Como o personagem busca sempre manter uma aparência de dignidade diante dos filhos, o ator expressa sentimentos através de olhares e pequenos gestos. Por motivos semelhantes, Dira Paes também brilha no papel de Helena. Dois grandes trabalhos.

Quem surpreende, porém, é Dablio Moreira e Marcos Henrique, que interpretam os irmãos quando crianças. Com ótima química e imenso carisma, a dupla mirim transforma a primeira metade do filme em um deleite de se assistir. Como adendo, ainda ganham a excelente participação de José Dumont, que evita o estereótipo construindo um personagem fácil do público odiar, mas que, pelo contrário, acaba conquistando a simpatia da platéia.
O roteiro ainda é eficiente ao amarrar fatos passados em quatro décadas, fazendo com que a narrativa flua com naturalidade. Assim, 2 Filhos de Francisco escapa de uma das grandes dificuldades em cinebiografias, a de evitar que o filme pareça episódico. Há ainda uma excelente sacada na trama, aproximadamente na metade do filme, que vai pegar de surpresa aqueles que pouco conhecem a vida dos músicos.

Mas 2 Filhos de Francisco não é isento de falhas. Incomodou-me muito os últimos minutos da obra. Não entrarei aqui em detalhes sobre o que acontece, mas é um apelo desnecessário ao sentimentalismo que Silveira parece ter evitado durante toda a projeção. Além disso, o filme realmente perde um pouco de sua força assim que os músicos se tornam “adultos”. Apesar de alguns ótimos momentos (como a forma encontrada pelo cineasta para mostra o surgimento do sucesso “É o Amor”), Márcio Kieling e Thiago Mendonça ficam aquém do talento dos garotos apresentados na primeira metade.

Ainda assim, 2 Filhos de Francisco é um grande filme capaz de cativar as platéias de todo o país. Claro que isso ocorre, principalmente, pela alta identificação do público com os personagens e com a história. O filme é tanto sobre a ascensão da dupla quanto sobre o esforço de Francisco em oferecer uma vida melhor aos filhos. Por essa razão, o fato de alguém não ser fã de música sertaneja não é empecilho para admirar a bela obra que é 2 Filhos de Francisco. Não é um filme sobre música, é sobre pessoas. Até o momento em que os personagens assumem o nome artístico pelo qual hoje são conhecidos, 2 Filhos de Francisco poderia ser sobre qualquer morador menos privilegiado do Brasil correndo atrás de seu sonho. E essa é a grande força do filme.

E é por isso que não hesito em afirmar, até para minha própria surpresa, que 2 Filhos de Francisco é o melhor filme nacional desde que Fernando Meirelles abençoou o mundo com a obra-prima chamada Cidade de Deus. E reitero aquilo que escrevi no início do texto: deixem o preconceito de lado e dêem uma chance à história de Francisco e sua família.