Gotas
Como tinha gente me achando mórbido demais pelos últimos posts, vai um textinho sobre as pequenas coisas boas da vida.
O som expelido pelos alto-falantes do carro reverberava por todo o veículo, mas ele não o escutava. Guiava em velocidade média, em sintonia com o ritmo do tráfego, alheio às nuvens, relâmpagos e trovões ao redor. A chuva ameaçava dar suas caras desde manhã, mas preguiçosamente, arrastara a sua apresentação por toda a tarde quente de verão. Parecia ter esperado o pior momento para cair.
Não se poderia dizer que ele, ao volante, estava cansado. Mesmo sendo o final do expediente, seu corpo nada demonstrava em termos de fatiga. Mesmo assim, continuava dirigindo sem animação. Em sua mente, nada além do desejo de uma dose, com gelo, do companheiro Jack, enquanto sentava na poltrona ainda não paga, com um cigarro pendendo na outra mão e a televisão ligada.
Estes eram seus planos para o final do dia. Para o restante daquela quarta-feira. Depois, dormir e acordar às seis e meia do dia seguinte, para a mesma rotina do trabalho. Desempenhar as funções de sempre enquanto ansiaria, mais uma vez, pelo companheiro Jack, a poltrona e o cigarro.
Nem percebeu quando a chuva apaziguadora do calor começou, da mesma forma que não percebeu o momento em que ligou o limpador de pára-brisa. Ainda assim, acompanhava hipnotizado o movimento do limpador, aquele vai-e-vem sem mudanças, preso, cíclico, quando ouviu um estampido. Fraco e abafado pelo som do rádio, mas claro. O automóvel começou a puxar para um lado. Não teve alternativa a não ser encostar e parar.
Por três minutos, continuou sentado dentro do carro, costas encurvadas e as duas mãos no volante. A chuva caía lá fora e o rádio continuava emitindo sons sem destino. Como a água não diminuía, tirou a gravata e a dobrou, colocando-a sobre o encosto do banco do passageiro. Fez o mesmo com o paletó. Abriu a porta e saiu do carro.
A chuva atingiu-o com força. Instintivamente, tentou se proteger levando o próprio braço à altura da testa. Falando consigo mesmo, praguejava contra o infortúnio de um pneu furado em meio a um temporal. Caminhou até o porta-malas e, no exato instante em que abriu o bagageiro, foi assomado por uma torrente de lembranças.
Subitamente, viu-se como uma criança, em frente à sua própria casa. Seu pai lavava o humilde carro da família com esmero, enxaguando-o com água saída de uma mangueira, como se o veículo fosse o bem mais valioso que possuíam. O sol quente daquela tarde de janeiro castigava a pele ainda inexperiente do garoto. Nesta lembrança, aproximou-se de seu pai, que percebeu o sofrimento do filho no cálido clima daquela tarde.
O pai esboçou um sorriso e virou o jato da mangueira na direção do garoto. A princípio, ele fugiu. Em seguida, parou e aceitou receber aquele refrescante jato de água em seu corpo. O menino ficou parado na calçada em frente à casa, sorrindo, enquanto o pai sentia prazer ao ver a felicidade estampado no rosto do filho.
Foram rápidos instantes de lembrança, como um flash. Reviveu a sensação daqueles momentos enquanto abria o porta-malas do carro. Nestes breves segundos, teve a consciência de como, uma única vez, há mais de trinta anos, viveu a vida em todo o seu êxtase. Relembrou a aprazível sensação de ser feliz.
Agora, aquela sensação começava a dominar novamente seu corpo. Em movimentos lentos, deu alguns passos para trás e deixou as gotas escorrerem por seus cabelos e seu rosto. A chuva, que até então era alvo de injúrias, começou a assumir ares refrescantes e agradáveis. Mas o que mudava não era a água. Era ele.
Uma espécie de nervosismo o arrebatou, provavelmente por sentir algo há muito preso em seu peito. Um frêmito de satisfação que nem lembrava que existia. Inclinou levemente a cabeça para trás, deixando as pesadas e carinhosas gotas virem diretamente ao encontro de seu rosto. Abriu os braços, da mesma forma que fizera aquela vez na companhia de seu pai e, pela primeira vez em muitos anos, sorriu verdadeiramente.
Sorriu não como uma conseqüência de uma piada ou por um fato engraçado. Também não foi um sorriso forçado, cínico, do tipo que estava acostumado a presenciar todos os dias. Não sorria para os outros. Aquele sorriso era para si mesmo. Era um sorriso íntimo, que nem ele conseguia compreender a razão. Um sorriso de plenitude, de encontro consigo mesmo. Era um sorriso de pura beleza, com vida e destinado à vida.
Naquele momento, soube que compreendeu algo. Algo que ainda não estava bem claro, mas que, com certeza, teria grande importância. Quando abriu os olhos, era uma pessoa diferente. Liberou-se da anestesia que tinha dominado sua existência por langorosos anos e, enquanto voltava para o carro, pôs-se a admirar cada pequeno detalhe do mundo que o cercava. Uma nova percepção sobre todas as coisas o dominava.
Novamente, ficou alguns instantes parado dentro do carro. Ironicamente, na mesma posição de antes, mãos no volante e costas encurvada. Mas havia duas diferenças. A roupa, agora encharcada, e ele próprio. Deu a partida no carro e dirigiu para casa, mais uma vez com o rádio ligado.
Desta vez, porém, cantava.
O som expelido pelos alto-falantes do carro reverberava por todo o veículo, mas ele não o escutava. Guiava em velocidade média, em sintonia com o ritmo do tráfego, alheio às nuvens, relâmpagos e trovões ao redor. A chuva ameaçava dar suas caras desde manhã, mas preguiçosamente, arrastara a sua apresentação por toda a tarde quente de verão. Parecia ter esperado o pior momento para cair.
Não se poderia dizer que ele, ao volante, estava cansado. Mesmo sendo o final do expediente, seu corpo nada demonstrava em termos de fatiga. Mesmo assim, continuava dirigindo sem animação. Em sua mente, nada além do desejo de uma dose, com gelo, do companheiro Jack, enquanto sentava na poltrona ainda não paga, com um cigarro pendendo na outra mão e a televisão ligada.
Estes eram seus planos para o final do dia. Para o restante daquela quarta-feira. Depois, dormir e acordar às seis e meia do dia seguinte, para a mesma rotina do trabalho. Desempenhar as funções de sempre enquanto ansiaria, mais uma vez, pelo companheiro Jack, a poltrona e o cigarro.
Nem percebeu quando a chuva apaziguadora do calor começou, da mesma forma que não percebeu o momento em que ligou o limpador de pára-brisa. Ainda assim, acompanhava hipnotizado o movimento do limpador, aquele vai-e-vem sem mudanças, preso, cíclico, quando ouviu um estampido. Fraco e abafado pelo som do rádio, mas claro. O automóvel começou a puxar para um lado. Não teve alternativa a não ser encostar e parar.
Por três minutos, continuou sentado dentro do carro, costas encurvadas e as duas mãos no volante. A chuva caía lá fora e o rádio continuava emitindo sons sem destino. Como a água não diminuía, tirou a gravata e a dobrou, colocando-a sobre o encosto do banco do passageiro. Fez o mesmo com o paletó. Abriu a porta e saiu do carro.
A chuva atingiu-o com força. Instintivamente, tentou se proteger levando o próprio braço à altura da testa. Falando consigo mesmo, praguejava contra o infortúnio de um pneu furado em meio a um temporal. Caminhou até o porta-malas e, no exato instante em que abriu o bagageiro, foi assomado por uma torrente de lembranças.
Subitamente, viu-se como uma criança, em frente à sua própria casa. Seu pai lavava o humilde carro da família com esmero, enxaguando-o com água saída de uma mangueira, como se o veículo fosse o bem mais valioso que possuíam. O sol quente daquela tarde de janeiro castigava a pele ainda inexperiente do garoto. Nesta lembrança, aproximou-se de seu pai, que percebeu o sofrimento do filho no cálido clima daquela tarde.
O pai esboçou um sorriso e virou o jato da mangueira na direção do garoto. A princípio, ele fugiu. Em seguida, parou e aceitou receber aquele refrescante jato de água em seu corpo. O menino ficou parado na calçada em frente à casa, sorrindo, enquanto o pai sentia prazer ao ver a felicidade estampado no rosto do filho.
Foram rápidos instantes de lembrança, como um flash. Reviveu a sensação daqueles momentos enquanto abria o porta-malas do carro. Nestes breves segundos, teve a consciência de como, uma única vez, há mais de trinta anos, viveu a vida em todo o seu êxtase. Relembrou a aprazível sensação de ser feliz.
Agora, aquela sensação começava a dominar novamente seu corpo. Em movimentos lentos, deu alguns passos para trás e deixou as gotas escorrerem por seus cabelos e seu rosto. A chuva, que até então era alvo de injúrias, começou a assumir ares refrescantes e agradáveis. Mas o que mudava não era a água. Era ele.
Uma espécie de nervosismo o arrebatou, provavelmente por sentir algo há muito preso em seu peito. Um frêmito de satisfação que nem lembrava que existia. Inclinou levemente a cabeça para trás, deixando as pesadas e carinhosas gotas virem diretamente ao encontro de seu rosto. Abriu os braços, da mesma forma que fizera aquela vez na companhia de seu pai e, pela primeira vez em muitos anos, sorriu verdadeiramente.
Sorriu não como uma conseqüência de uma piada ou por um fato engraçado. Também não foi um sorriso forçado, cínico, do tipo que estava acostumado a presenciar todos os dias. Não sorria para os outros. Aquele sorriso era para si mesmo. Era um sorriso íntimo, que nem ele conseguia compreender a razão. Um sorriso de plenitude, de encontro consigo mesmo. Era um sorriso de pura beleza, com vida e destinado à vida.
Naquele momento, soube que compreendeu algo. Algo que ainda não estava bem claro, mas que, com certeza, teria grande importância. Quando abriu os olhos, era uma pessoa diferente. Liberou-se da anestesia que tinha dominado sua existência por langorosos anos e, enquanto voltava para o carro, pôs-se a admirar cada pequeno detalhe do mundo que o cercava. Uma nova percepção sobre todas as coisas o dominava.
Novamente, ficou alguns instantes parado dentro do carro. Ironicamente, na mesma posição de antes, mãos no volante e costas encurvada. Mas havia duas diferenças. A roupa, agora encharcada, e ele próprio. Deu a partida no carro e dirigiu para casa, mais uma vez com o rádio ligado.
Desta vez, porém, cantava.