Sei que o Olvídio não passa de um estranho para a maioria. Mas, como é o personagem principal dessa história, tenho que apresentá-lo. Apesar do nome meio peculiar, ele é um cara legal. Bacana mesmo. Daquele tipo de gente que dá vontade de estar ao lado a toda hora. Sempre tem uma palavra de apoio, uma frase espirituosa e é parceiro para tomar uma ceva em qualquer boteco e a qualquer momento.
Só que o Olvídio nunca foi muito pegador. Na verdade, tinha até um currículo extenso, mas de qualidade baixa. Acho que nunca vi o Olvídio com uma gostosa, e tenho certeza que o Gema, o Carlão e o Beto vão dizer a mesma coisa se perguntarem isso a eles. O Olvídio costumava circular sempre com mulheres de qualidade média pra baixo. Às vezes, baixa mesmo, de admirar a coragem do rapaz.
Até surgir a Laila. Pra simplificar, ela era demais pro Olvídio.
- Olvídio, ela é demais pra ti – a gente dizia.
Mas claro que o Olvídio nem dava bola. Tava pegando uma puta duma gostosa, por que ouviria quatro marmanjos cheios de pêlos no peito?
Cara, a Laila era foda.
O Olvídio é quase meu irmão, mas acho que se ela viesse pra cima de mim eu não teria como resistir. Cabelo bem preto, liso até o meio das costas. Cinturinha fina, mas com um quadril no ponto, acompanhando uma bunda que deixaria até americano maluco. Aquela barriguinha sempre de fora, reta, e um piercing no umbigo que dava um toque de realeza. E os peitos? Nada de silicone, simplesmente porque não precisavam. E um rostinho lindo, de mulher para casar.
Em resumo, cara, a Laira era foda.
Óbvio que, com esse patrimônio cultural-histórico todo, a Laila freqüentava uma academia. Acho até que não precisava, mas ela ia. Todo dia. E, pouco depois de começar a namorar o Olvídio, surgiu o convite.
- Amor, você não quer malhar comigo?
O susto foi tanto que o Olvídio espalhou todos os sucrilhos no chão. Mas a reação dele se justifica. Eu esqueci de contar. O Olvídio odeia esportes. Dizem que odiar é uma palavra forte, mas se houvesse uma ainda mais forte, eu usaria aqui. Ele tem pavor, terror, aversão a toda e qualquer forma de exercício físico. Conhecia-o há mais de vinte anos, e nunca o vi fazer algo parecido com um esporte. Sedentário mesmo.
- Malhar? Tipo... academia? – perguntou o Olvídio, com temor nos olhos.
- É. Puxar uns pesos, fazer uns abdominais. Perder essa pancinha aqui – a Laila respondeu, apertando um pneu da coleção que Olvídio carregava consigo todos os dias.
O Olvídio não tinha alternativa. Como dizer não para uma mulher como a Laila? Não é fácil. Entendo o cara e, certamente, faria o mesmo. Aceitaria o convite também. As mulheres fazem o que querem com os homens, todo mundo sabe disso.
No dia seguinte, pela primeira vez em sua vida, Olvídio colocava os pés em uma academia. Não sabia o que fazer, claro. Olhou em volta. Teve medo. Parecia uma criança no primeiro dia de colégio, com medo de soltar a mão de sua mãe. Só que ele não era criança. E a mãe, bom, a mãe era uma garota de vinte e poucos anos atraindo olhares e estourando uma calça branca de ginástica.
- Calma, Olvídio. Não precisa ficar nervoso – disse ela.
- Não estou nervoso. É que nunca me imaginei em um lugar desses.
Um homem de aproximadamente uns trinta anos, o dobro do tamanho de Olvídio, aproximou-se dos dois. Deu um sorrisinho para Laila e indagou:
- É ele?
A voz do bombadão era grave, imponente. Um calafrio percorreu a espinha de Olvídio.
- Sim, é ele – Laila respondeu.
- Deixe-nos.
Ela soltou a mão de Olvídio. Ele tentou novamente segurá-la, mas em vão. Laila deu-lhe um beijo e despediu-se.
- Onde você vai? – Ovídio perguntou em desespero.
- Tenho assuntos para resolver, querido. O Paulão vai tomar conta de você.
A mão de Olvídio ainda se agitava, em um claro de sinal de ansiedade. Até que encontrou algo. Mas não era a mão de Laila. Era de Paulão.
- Vem comigo – disse, puxando Olvídio rumo ao desconhecido.
Por duas horas, Olvídio voltou no tempo. Coitado do cara. Em sua mente, não estava em uma academia. Estava na Idade Média, sendo subjugado aos sádicos deleites de um ditador sanguinário. Vlad Paulão III. Cada aparelho, um maquinário de tortura. Cada novo peso, um grilhão preso ao seu pé puxando-o rumo às profundezas do oceano. Foram os piores e mais longos minutos de toda a vida de Olvídio. E eu posso dizer com propriedade que ele já passou por umas poucas e boas.
- Te vejo amanhã, então? – Paulão perguntou ao final do treino.
Olvídio, com o resto das forças que ainda tinha, conseguiu responder com leve ironia:
- Sim, claro.
Então, Olvídio desapareceu. Sim, desapareceu. O cara sumiu por dois dias. Ninguém sabia onde tinha se enfiado. Não apareceu para trabalhar, não estava em casa. Nem Laila tinha noção de sob qual pedra Olvídio estava escondido.
Mas eu sabia. Conhecia o cara há anos, sabia como ele pensava. E conhecia nossos esconderijos.
O negócio é que o pai do Gema, quando morreu, deixou pra ele um apê no centro. Como o Gema preferia morar com a mãe, pra ter arroz e feijão na mesa e cuecas limpas no armário, o apê acabou se transformando em uma espécie de refúgio nosso. Fazíamos festas, tomávamos tragos e levávamos garotas para lá. Se eu contar o que economizamos em motel com a morte do pai do Gema, ninguém iria acreditar. Mas essa é outra história.
O fato é que fui até lá. Bati na porta, toquei a campainha, gritei. Nada. Estava desistindo quando decidi usar minha chave. Girei a tranca e entrei no apê. Como sempre, tinha roupas e latas de cerveja espalhadas pelo carpete. Como sempre, a louça na pia se acumulava. E, como sempre, Olvídio estava deitado no sofá.
Aproximei-me.
- Olvídio, aí está você! Cara, tá todo mundo te procurando. Tua mãe já avisou até a polícia!
Levemente, Olvídio mexeu a cabeça. Olhou para mim e disse:
- Ggrfstrwsm.
Claro que não entendi nada.
- Olvídio, não entendi nada. Você está bem?
Cheguei mais perto para tentar ouvi-lo. Com muito esforço, sussurrou:
- Laila. Academia.
Vendo que nada mais arrancaria dele, liguei para a Laila. Foi quando ela me explicou toda a história da academia.
Xinguei-a. Nunca me imaginei falando para uma mulher o que falei para Laila, mas despejei através da linha telefônica todos os impropérios que conhecia. Ela não poderia fazer o que fez com Olvídio. Ele confiara nela. Acreditara que ambos poderiam ter algo mais forte. E aí, contra todas as expectativa, ela aprontava isso para ele.
Olvídio, claro, não conseguia se mexer. Aos poucos, à medida que se recuperava, contou-me todo o acontecido. Como o corpo dele doía não a cada movimento, mas a cada menção de movimento. Era só o cérebro cogitar a hipótese de mexer um só músculo, este parecia dizer de volta: “Esquece, cara”.
Por uma semana, fui mãe, pai e melhor amigo de Olvídio. Só não fui namorada porque não era minha praia e, até onde sei, nem a dele. Mas cuidei do meu camarada. Ele comeu como poucas vezes o vira comer. Bebeu como muitas vezes eu o vira beber. Ao final de sete dias, estava pronto para voltar à vida. Mal sabia eu que com um plano malévolo na cabeça.
Voltávamos para casa, eu dirigindo e Olvídio ao meu lado. Conversávamos amenidades, nada relacionado à Laila, à academia ou ao tempo no refúgio. Foi quando ele me pediu para parar o carro.
- Onde? – perguntei.
- Ali – respondeu, apontando uma academia.
- Ali?
- Ali.
- Esta é a academia?
Olvídio me olhou com desprezo. Naquele momento, eu era, para ele, o menor de todos os seres. Senti que só me respondeu por respeito à nossa amizade.
- Não, não é a academia. Aquilo nunca vai ser uma academia. Aquilo é Carandiru. É um gulag. É Auschwitz.
Pulou para fora do carro. Tirou o casaco e jogou sobre o banco. Eu, claro, não sabia o que fazer. Ou melhor, não sabia o que Olvídio iria fazer. E nem adiantaria perguntar, pois ele parecia decidido. Optei por acompanhá-lo, simplesmente.
Olvídio foi direto à porta da academia e entrou. Fiquei parado sob o batente. Por alguns segundos, ele observou todo o espaço. Os aparelhos, os pesos, as esteiras, os colchonetes, mas, principalmente as pessoas. Aquele bando de malucos suando em busca de uma forma ideal.
De repente, um grito.
- Olvídio!
Era Laila. Do fundo da academia, ela avistara Olvídio parado na entrada. Veio correndo em direção a ele.
- Laila, pode parar por aí! – gritou Olvídio, com fúria em sua voz.
Ela tomou um susto e paralisou por alguns instantes.
- Como assim, Olvídio? Onde você andava? Eu estava preocupada!
- Onde eu estava, Laila? Onde eu estava? Estava me recuperando! Recuperando do que você me fez passar! Do mal que me causou!
Todos os freqüentadores da academia já observavam a cena, curiosos como qualquer ser humano.
- Que é isso, Olvídio? Do que está falando? – as lágrimas começaram a surgir no rosto de Laila.
- Você não quebrou apenas meu coração, Laila. Quebrou meu corpo inteiro.
Então, Olvídio tirou a camisa.
- Este corpo!
O choque foi geral. Ouvi gritos diversos, de espanto, de terror, de desolação. Até um “Deus o abençoe” foi ouvido. As pessoas viravam a cara. Uma mãe tapou os olhos dos dois filhos pequenos.
Enquanto isso, Olvídio mostrava sua excessiva carne. Brincava com a flacidez como uma criança se diverte com brinquedo novo. Exibia com orgulho e louvor sua forma oval. Gritava:
- Está vendo isso, Laila? Estão vendo isso, todos vocês? Isso sou eu! Essa gordura sou eu! Não preciso destes aparelhos de tortura! Não quero estes aparelhos de tortura! Levei anos para deixar crescer essa barriga. Anos de cultivo, de cuidado, de amor. E não vou me livrar dela! Ouviram? Não vou me livrar dela!
Olhou para Laila, que estava de joelhos no chão, chorando copiosamente.
- E você, Laila? Fiquei com seus Vlads e seus Paulões. Jamais colocarei meus pés aqui novamente.
Olvídio deu meia volta e saiu da academia. Passou por mim sem dizer palavra e entrou no carro. Fui atrás dele. Também nada falei. Apenas comecei a dirigir, orgulhoso do meu amigo.
Isto aconteceu há alguns anos. Ocasionalmente, em meio a umas e outras cevas, quando inevitavelmente surge o tema de mulher gostosa, tocamos no assunto.
- Lembram da Laila? – alguém pergunta.
- Ah, a Laila – respondem todos, suspirando.
Até que Olvídio se manifesta.
- É, cara. A Laila era foda.
Então, toma mais um longo gole de sua cerveja gelada e completa:
- Mas não valia a pena.