Conheci o Marco quando ainda éramos crianças com ranho escorrendo pelas narinas. Estudando no mesmo colégio e morando perto um do outro, logo nos tornamos grandes amigos. Inseparáveis, até. Daqueles que tocavam junto a campainha das casas da rua e saíam correndo. Hoje, com as rugas dos quarenta à vista, lembro com ternura das histórias que vivemos, inclusive nossas primeiras descobertas em relação às mulheres.
Fato é que o Marco sempre teve um problema com as mulheres. Ou melhor, as mulheres sempre tiveram um problema com o Marco. E esse problema era simples: Marco era feio. Totalmente desprovido de qualquer sinal de beleza. Parecia uma obra de Picasso. Olhar por mais de cinco segundos para o rosto dele era um sacrifício. Até eu, seu melhor amigo na época, evitava encará-lo diretamente com medo de ser transformado em algum animal estrnho.
Descobri que esse receio não diminuiu com o passar dos anos. Encontrei Marco em um bar perto do meu escritório, quando parei para tomar uma ou dezesseis cervejas. Fazia muito tempo que não o via. Marco estava no balcão, conversando animadamente com um outro homem que devia ser seu colega de trabalho. Meu amigo sempre foi divertido e simpático, talvez por obrigação, talvez por uma tentativa de compensar sua falta de valores estéticos.
Chamei-o e nos cumprimentamos entusiasticamente. Tinha esquecido o quanto seu rosto era desproporcional. Passado o choque inicial, começamos a conversar como os grandes amigos que fomos, tentando recuperar o tempo perdido. Claro que, ocasionalmente, eu ficava encarando o rosto de Marco e tentando compreender por que Deus tinha sido tão vingativo com ele. Na verdade, foi em um desses devaneios que Marco largou as palavras que me deixaram pasmo:
- Pois é, casei com a Cláudia Toledo – ele disse.
Não pude acreditar.
- Cláudia Toledo? – indaguei espantado.
- Sim, lembra dela?
- Cláudia Peitões? Você casou com a Cláudia Peitões?
- Exatamente – gabou-se. – A garota mais gostosa do colégio.
A Cláudia era exatamente isso: a garota mais gostosa do colégio. Aquela que todos sonhavam em pegar, mas inalcançável para meros adolescentes comuns como eu e o Marco. Ou melhor, eu era comum. O Marco era uma aberração. Já a Cláudia era linda, loira, alta, com seios absurdamente fartos para uma adolescente. Cláudia Peitões. A Cláudia embalava sonhos e noites de solitária puberdade da metade masculina do colégio. Mas ninguém conseguia chegar perto. Ela estava em outro nível. Acho que nunca se envolveu com qualquer dos colegas. Não se interessava por meros rapazes com a libido fervendo. A Cláudia podia e queria mais.
Por isso o meu assombro. Jamais uma garota, agora uma mulher, como a Cláudia olharia para o Marco. Se o fizesse, seria unicamente para rir da cara dele. Seria para economizar dinheiro do museu e ver uma obra do cubismo à sua frente. Marco, mesmo após longos anos, continuava feio. Se possível, até mais do que antigamente. O que a Cláudia fazia casada com ele era para mim um mistério ainda maior do que se existia vida fora da Terra.
- Como você conseguiu isso, Marco? A Cláudia Peitões! O sonho de todos os homens do colégio!
Ele deu uma risada, exibindo seus dentes tortos, e disse, cheio de si:
- Pois é. Aconteceu.
A informação era demais para mim. Não poderia continuar falando sobre isso por muito tempo sem me irritar. Como o Marco conseguiu casar com a Cláudia? Perguntei mais algumas vezes, mas ele desconversou. Não quis entrar em detalhes. Segundo ele, simplesmente aconteceu quando se encontraram, anos após o colégio.
Mudei de assunto. Falamos sobre diversos outros temas durante mais de uma hora. Depois, trocamos telefones e me despedi de Marco. O álcool já estava fazendo efeito e tinha até esquecido a história da Cláudia. Mas, logo quando eu estava saindo do bar, Marco gritou:
- Eu digo pra Cláudia que você mandou um beijo!
Aquilo me tomou pelas entranhas e não largou mais. À noite, quando me olhei no espelho do banheiro, tive certeza de que não era o homem mais bonito do mundo, mas também não era um Marco. Eu passava por ser humano, ele tinha dificuldades até pra isso. Então como havia conseguido a Cláudia? Dinheiro não era, já que em nossa conversa ele me disse que é apenas um funcionário de um escritório de contabilidade. Então, como? Como?
Sentia-me como se estivesse tentando unir duas peças erradas de um quebra-cabeça. A coisa simplesmente não encaixava. A formosura de Cláudia e a feiúra de Marco não poderiam ficar juntos de forma harmoniosa. Era impossível visualizar tal cena.
Sonhei com aquilo durante a noite. Sonhei com Marco e Cláudia aos beijos no meu sofá enquanto eu, ao lado, trocava canais pelo controle remoto. Acordei suado, como se tivesse experimentado um grande pesadelo. A chuva que caía forte e os relâmpagos estrondosos apenas aumentaram meu terror.
No dia seguinte, tomando banho para despertar, vi que precisava daquela resposta. E decidi que faria o que fosse possível para tê-la. Naquele mesmo instante, peguei o telefone e disquei o número que Marco havia me dado.
- Alô.
- Marco? Sou eu, Rogério. Beleza?
- Beleza, Rogério. Fala aí.
- Cara, curti muito nosso papo ontem. O que você acha de a gente marcar alguma coisa hoje?
- Opa! Tô dentro! Pode ser ali no bar de ontem mesmo.
- Certo – comentei. E larguei a minha pedra: - Convida a Cláudia também.
Minha tática era essa. Levar a Cláudia junto para tentar tirar alguma informação dela. Marco respondeu:
- Ela não vai poder, cara. Tem um encontro com as amigas todas as quintas-feiras.
Bola fora. Não seria dessa vez. Ainda assim, fui ao encontro com Marco. Bebemos mais algumas dezenas de chopps, falamos bobagens. Tentei, mais uma vez, trazer à tona o assunto Cláudia Peitões. Marco, porém, continuou não dando explicações.
Dois dias depois, liguei novamente para Marco. Convidei-o para um churrasco no meu apartamento, pedindo que ele chamasse Cláudia também.
- Eu vou, mas a Cláudia não pode. Ela tem aula hoje – respondeu.
- Num sábado à noite? – perguntei, já desconfiado.
- É... – Marco respondeu, hesitante. – É uma aula à distância que ela faz. De inglês. O curso fica na Austrália. Então, aqui é noite, mas lá é manhã.
Não insisti. Já desconfiava, mas comecei a ter a certeza de que havia algo estranho acontecendo. Sempre que convidava Cláudia para comparecer junto a Marco em algum evento, ele inventava uma desculpa para a ausência dela. E, para piorar, a cada novo convite, as desculpas ficavam ainda piores:
“Ela tem que tingir o pêlo do cachorro.”
“Ela vai ajudar uma amiga a carregar sacolas do supermercado.”
“Hoje é a noite na qual ela fica em casa ouvindo Elvis.”
Marco estava fazendo de tudo para que eu e Cláudia não nos reencontrássemos. Uma noite, em casa, enquanto tomava banho, pensava sobre qual seria o segredo. E cheguei à conclusão: Cláudia não existia. Ou melhor, claro que existia, mas não era esposa de Marco. Com certeza, ele inventou a história de ter casado com a garota mais gostosa do colégio para se gabar. Não imaginou que eu continuaria o convidando para sair. Somente assim tudo aquilo, desde a suposta união dos dois até as desculpas, faria sentido.
Satisfeito por ter solucionado o problema, naquela noite dormi como não dormia desde que havia voltado a ver Marco. Sem pesadelos, sem imagens bizarras de seus lábios tocando a pele perfeita de Cláudia. No dia seguinte, iria tirar a prova.
Acordei cedo e disposto, como se um grande acontecimento me aguardasse. Sentia como se tivesse tirado um imenso peso das costas e pudesse voltar a ser feliz. Tomei banho, fiz o número dois e saboreei o café com renovado prazer. Saí de casa respirando fundo o ar da manhã e entrei no carro com vontade de cantar.
Mas não fui para o trabalho. Fui direto para a casa de Marco. Era a hora de tirar aquilo a limpo.
Marco, junto com a suposta Cláudia, morava em uma rua bem tranquila da cidade, afastada de qualquer aglomeração. Estacionei bem na frente da casa e desci. Caminhei até a porta de entrada confiante, com um pequeno sorriso no rosto. Ainda sentia carinho por Marco, mas, naquele momento, nada me deixava mais feliz do que desmascarar essa farsa.
Toquei a campainha e aguardei. Fiquei girando de um lado para o outro, nervoso, enquanto a porta não era aberta. Ouvi passos de dentro da casa e me preparei. O trinco girou.
Quem apareceu foi uma senhora loira, com cabelos desgrenhados e aproximadamente uns cento e cinquenta quilos. A pele estava bastante machucada. Não era uma pessoa agradável de se ficar olhando. Provavelmente a empregada.
- Sim? – perguntou ela.
- Bom dia – respondi. – Estou procurando o Marco. Ele se encontra?
- Não, sinto muito. Ele saiu para o trabalho há uns dez minutos.
Ainda me restava uma pergunta a fazer.
- E a Cláudia? Ela se encontra?
A mulher me olhou de maneira desconfiada, como se tentando adivinhar quem eu era e por que estaria procurando os donos da casa. Suas grandes bochechas contraíram-se em dúvida.
- Quem a procura, posso saber?
- Meu nome é Rogério. Sou um grande amigo do Marco. Na verdade, fui colega da Cláudia também quando éramos adolescentes.
Os olhos dela se arregalaram. Seu gigantesco corpo deu um salto para trás. E gritou:
- Rogério! Rogério Davino!
Foi a minha vez de se surpreender. De onde ela saberia meu sobrenome? E por que ficou tão espantada ao ouvir quem eu era?
A mulher pulou em cima de mim. Envolveu-me em um abraço com seus braços gordos e quase me esmagou. Senti uma certa repulsa quando sua face lesionada encostou na minha.
- Há quanto tempo! – continuou ela, exultante. – Quem bom ver você!
Então, compreendi. Finalmente, tudo fez sentido. A grotesca mulher que havia aberto a porta não era a empregada. O amontoado de tecido adiposo que envolvia-me naquele momento era ninguém menos que Cláudia Peitões.
A garota mais gostosa do colégio.
Tentei disfarçar a minha expressão de nojo.
- Cláudia? É você?
Ela me soltou e ficou com o rosto a poucos centímetros do meu. Senti um nauseante cheiro de cigarro que quase me fez desmaiar. De perto, ela estava ainda mais tenebrosa. Os dentes amarelados, os olhos cheios de rugas, o rosto redondo e avermelhado. Não podia acreditar que era ela.
- Mas claro que sou eu! Não me reconhece? Rogério, você não mudou nada!
“Gostaria de dizer o mesmo”, pensei. Mas tive que fugir do assunto.
- E você... você... está gostando da temperatura do dia hoje?
Ela certamente estranhou meu comentário sem sentido, mas nada comentou. Pelo contrário, convidou-me para entrar. Deu alguns passos para dentro de casa, enquanto fiquei parado observando-a. Parecia uma imensa gelatina, com tudo balançando. Aquele monstrengo era Cláudia Peitões, um dia a garota mais gostosa do colégio. Hoje, continuava uma delícia. Isto é, para quem quisesse fazer um churrasco com aquelas fartas carnes.
Foi a minha vez de inventar uma desculpa.
- Sinto muito, Cláudia. Mas tenho que trabalhar. Só queria dizer ao Marco que vou viajar nos próximos dias e não poderemos marcar nada.
- Que pena, Rogério! – lamentou a gigantesca pessoa. – Mas que coisa boa ver você! Venha nos visitar qualquer dia desses.
- Venho, com certeza. Bom vê-la também, Cláudia. Até mais.
Enquanto me dirigia ao carro, sentia um misto de satisfação e terror. Estava feliz por ter solucionado o mistério. Marco não a apresentava porque Cláudia tinha virado um monstro. Tão ou mais feia que ele. Provavelmente, Marco se sentia bem com o fato de eu saber que ele havia se casado com a garota mais gostosa do colégio.
Por outro lado, meu estômago se revirava. Cheguei a ficar tonto antes de sentar atrás do volante, como se precisasse vomitar. Cláudia Toledo havia caído milhões de degraus na escala da beleza. Havia saído do posto de linda e gostosa para a condição de bizarrice e motivo de chacotas. De Cláudia Peitões para Cláudia Aberração. Simplesmente não podia acreditar.
Mais tarde, liguei para Marco.
- Está a fim de fazer alguma coisa? – perguntei.
- Claro, podemos combinar.
Antes mesmo que eu pudesse dizer alguma coisa, ele começou a inventar mais uma desculpa para Cláudia não comparecer.
- Mas a Cláudia tem que cantar para os anões cegos de...
- Marco, eu sei sobre a Cláudia – interrompi.
Ele ficou alguns instantes em silêncio.
- Como assim? – indagou, com a voz tomada por receio.
- Eu estive na sua casa.
Marco continuou sem nada dizer. Continuei:
- Sei que ela deixou de ser a garota mais gostosa do colégio há muito tempo.
O silêncio continuava do outro lado da linha. Desta vez, também não falei. Esperei para que Marco dissesse algo. E, após aproximadamente um minuto, ele se manifestou. Uma única frase. A última frase:
- Pelo menos, um dia ela foi.
E desligou.
Eu entendi. Para ele, aquilo bastava.