Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Wednesday, May 30, 2012

Animal abandonado.


Era final de tarde quando o luxuoso carro prata freou bruscamente na movimentada avenida. Como se estivesse sozinho na pista, o motorista girou o volante para a direita e estacionou o automóvel no meio-fio, de uma forma que transparecia urgência.

Indiferente ao som das buzinas e dos xingamentos, um jovem homem desceu rapidamente do carro pela porta do motorista, enquanto uma garotinha loira de aproximadamente dez anos desembarcava pelo lado do carona.

- Onde está ele? – perguntou o homem.

- Não sei, papai. Mas eu vi.

- Lá está, querida – disse o pai, apontando para algo pequeno, encostado na parede da fachada de uma loja de móveis.

Os dois correram para o local. Ali, um jovem cachorro preto e branco estava encolhido sobre si mesmo, provavelmente com medo do barulho dos carros e das pessoas que passavam por ele. Esquálido, suas costelas pareciam querer sair do corpo, enquanto a pele com feridas atraía moscas e outros insetos.

A jovem garota chegou mais perto do pobre animal, cujo corpo inteiro tremia diante da aproximação da menina.

- Posso tocá-lo, papai?

- Sim, mas vá devagar. O coitado parece bastante assustado.

Cuidadosamente, a garota esticou a mão para acariciar o cachorro. Ele recuou e afastou-se dois metros para o lado. Ela insistiu e, passo a passo, foi atrás. Mais uma vez, estendeu o braço na direção da cabeça trêmula do animal, que a olhava com desconfiança.

Dessa vez, o famélico cão permitiu o toque. A garota acariciou o pelo do animal por alguns segundos, ganhando a sua confiança. Pouco a pouco, o cachorro pareceu relaxar, aproximando-se da menina à medida que entendia não correr ameaça.

- Vai querer levá-lo, querida? – perguntou o pai. – Ele está bastante mal, pode demorar um pouco até melhorar.

- Sim, papai. A gente não pode deixar ele aqui abandonado.

- Então pega ele e vamos para o carro.

Com carinho, para não assustar o animal, a garota ergueu o leve corpo e carregou-o no colo. O pequeno cão ainda tremia, mas parecia se tranquilizar, como se agradecendo pelo toque de compaixão que vinha da mão da menina.

Enquanto caminhavam em direção ao carro, orgulhoso da atitude de sua filha, o pai da garota notou a alguns metros de distância uma pessoa os observando. Virando a cabeça naquela direção, enxergou um morador de rua parado em frente a uma grande lixeira. Descalço, sujo, com cabelos desgrenhados e uma camisa rasgada em toda a sua extensão, o mendigo olhava incisivamente para os dois.

Levemente sobressaltado, o pai apressou a garota a entrar no carro. Segundos depois, partiram.

O morador de rua voltou sua atenção à imensa lata de lixo, revirando-a em busca de algum resto de comida para matar a fome. Enquanto isso, pensava:

- Ttriste a época em que o valor de um animal é maior que o valor de um homem.

Monday, May 21, 2012

Faça o Que Eu Posto, Não Faça o Que Eu Faço


Redes sociais são divertidas. Gosto de passar um bom tempo navegando por elas. Tem gente que questiona a utilidade de um Facebook, enchendo a boca de podridões para amaldiçoar a criação do Zuckerberg como representação máxima de uma era fria, com relações impessoais, onde não há mais contato humano, blá e blá. Toda aquela balela que muito já se ouviu falar.

Mas redes sociais são divertidas, sim. E o que mais me entretém nelas não é a possibilidade de bisbilhotar atividades de amigos/conhecidos, mas ver como as pessoas podem ser hipócritas. Ou, ao menos, sem a menor noção de quem realmente são. É entretenimento puro.

Às vezes, dá mais vontade de rir com posts supostamente sérios do que com piadas. O Facebook se tornou um verdadeiro veículo de divulgação de autoajuda. O mais comum hoje em dia é ver o feed de atualizações com imagens e frases supostamente inspiradoras, lições de vida anacrônicas e regurgitações filosoficamente rasas, dizendo coisas do tipo “felicidade não é ter, é ser” ou “amor é ação, não palavras”.

O problema é o Facebook ser um verdadeiro megafone desse discurso vazio da literatura de autoajuda. Ele aumenta e põe uma lupa sobre a falácia, pois ela é feita por quem a gente conhece. Uma coisa é contar a estranhos que você faz chover. Outra, bem diferente, é falar o mesmo a quem vive ao seu lado. Não dá mais para ser anônimo. Não é mais o caso de uma tia sua lendo um livro do Shiniashyki, sozinha, congratulando a si mesma e achando que vai mudar de vida ao ler palavras enganadoras como “acredite no seu potencial que seus sonhos se tornarão realidade”. O julgamento é imediato. Tenha certeza de que seus amigos sabem na hora se aquilo é verdade ou não. E, muitas vezes, quem posta o discurso é o primeiro a fazer exatamente o contrário.

Já dizem por aí que é fácil falar, difícil é fazer. Na época em que vivemos hoje, é fácil postar e ainda mais difícil fazer. A máscara do Facebook é ilusória. O que se posta é avaliado por quem sabe quem você é. A mentira dura menos. O discurso é vazio. Quem o recebe já viu seus momentos de intolerância, já sofreu com o seu egoísmo, já presenciou seus ataques de possessividade e ciúme. De que adianta compartilhar diariamente frases de Mário Quintana se os seus contatos sabem que você jamais leu um livro do poeta? Pra que postar sobre generosidade se você nem dá espaço para um carro no trânsito? É a maldição do faça o que eu posto, não faça o que eu faço.

O Facebook é revelador. Ele expõe a autoindulgência. Ele escancara a hipocrisia. Consequentemente, ele diverte. É um passatempo. Experimentem. Na próxima vez que enxergarem alguma mensagem dessa natureza no mural, vejam quem a postou. Analisem a coerência (ou falta dela) entre a mensagem e o seu transmissor. Mas cuidado. Pode se tornar um vício.

Wednesday, May 09, 2012

Orgulho de família


- É um assalto, magrão, pode ir passando a grana aí!

Wesley proferiu essas palavras com surpreendente confiança, especialmente por ser a primeira vez que apontava a arma para alguém. Segurava com firmeza o velho revólver emprestado por Maicon, seu vizinho, olhando diretamente nos olhos do jovem atendente do velho mercadinho da Rua Dom Érico.

- Vamo, vamo! – gritou, aproximando o cano frio da testa do amedrontado homem.

Rapidamente, o atendente abriu a caixa registradora. Suas mãos tremiam de nervosismo e o suor já fazia brilhar as suas proeminentes bochechas enquanto começava a juntar as notas amassadas.

Foi quando Wesley ouviu atrás de si:

- Wesley! Que é isso, guri?

Demorou alguns instantes para voltar ao mundo real. Logo, porém, Wesley reconheceu a voz.

- Puta que o pariu... – suspirou, desanimado.

Antes que pudesse se virar, tomou um tapa na parte de trás da cabeça. Um golpe forte, dado por alguém que parecia já ter feito isso centenas de vezes.

- Que tu tá fazendo!? – falou novamente o homem às suas costas. – Baixa já isso aí!

Lentamente, Wesley recolheu a sua arma. Desviou o olhar do rosto do atendente, que parecia não entender o que estava acontecendo. Olhando para o chão, Wesley virou-se em direção ao homem atrás de si.

- Desculpa, pai – falou, em uma voz que tremia de vergonha.

- Desculpa, nada! – esbravejou o pai de Wesley, retirando de um só golpe a arma da mão de seu filho. – Que diabos é isso!? Desde quando você virou assaltante!? Não devia estar na escola?

- Sim, mas é que o Maicon...

- O Maicon? O que tem o Maicon? O que ele tem a ver com isso? E com quem tu conseguiu essa arma?

- Com o Maicon.

- Cadê aquele moleque? Vou ter uma conversa muito séria com a mãe dele. A dona Rosângela vai gostar de saber disso!

O atendente acompanhava paralisado a briga entre pai e filho. Seguia com as notas na mão, esperando a próxima ordem, sem saber o que fazer.

- Eu devia te dar umas porradas, seu piá de merda – continuava exclamando o pai de Wesley, a centímetros do rosto do rapaz. – Onde já se viu fazer isso? Tu vai ver quando eu chegar em casa!

- Pai, é a primeira vez que...

- Não me interessa se é a primeira! – interrompeu. – Vai ser a última!

Em seguida, agarrou seu filho pelo braço, forçando-o porta afora do mercado.

- Agora te manda daqui! E já pra casa! De noite a gente conversa!

Empurrou o garoto para fora, que saiu esbravejando consigo mesmo. O pai de Wesley retornou ao caixa.

- Desculpe por isso – disse ao atendente.

- Nã... Não tem problema. Que bom que o senhor chegou a tempo de colocar juízo na cabeça do seu filho.

O pai de Wesley fixou seu olhar diretamente nos olhos do homem.

- Não. Não me desculpei pelo que o meu filho fez. Isso é coisa dele.

- Então, por que se desculpou?

Em menos de um segundo, a arma antes na mão de Wesley voltou a ser apontada para a testa do atendente. Agora, porém, pelas mãos do pai do rapaz.

- Por isso.

- Mas... Mas...

- Não é porque trabalho com isso que quero o meu filho nesse ramo – disse o pai de Wesley, justificando sua ação.

O homem à sua frente parecia novamente chocado.

- Agora, vamos – falou calmamente o pai de Wesley. – Junta o dinheiro aí que ainda tenho que bater um papo sério com meu guri.