A vida de Sérgio girava em torno de duas paixões. Uma delas era a propaganda, atividade que ele exercia diariamente há quase dez anos e ainda mantinha o mesmo entusiasmo. Criar anúncios, peças e campanhas completas não era apenas uma profissão, mas algo que fazia parte de sua essência, chegando ao ponto de Sérgio sentir-se mal quando não estava criando.
A única coisa que o acalmava era o futebol. E aí morava a segunda paixão da vida de Sérgio: o Grêmio. Tendo passado toda a sua existência em Porto Alegre, só poderia ter escolhido entre o Grêmio e o Inter. Optou pelo primeiro e a dedicação ao tricolor gaúcho ocupava boa parte do seu dia.
Sempre que sobrava um tempo, visitava a sala de troféus do Olímpico. Não lembrava da última vez em que comprara um presente em outra loja senão a Grêmio Mania. Sua paixão pelo azul era tanta que chegava a ter medo de sair na rua quando estava nublado e o céu não estava com a cor de seu time.
Desde que começara na propaganda, Sérgio tinha o desejo de realizar algum trabalho sobre futebol. De preferência, relacionado ao Grêmio. E foi logo no primeiro dia de trabalho na nova agência que teve seu sonho realizado. Ao menos parte dele. Perto das três da tarde, ficou sabendo que teria que elaborar uma campanha relacionada ao futebol. Mas ela era para o Inter.
Sérgio teve que ler o pedido de trabalho umas três vezes antes de acreditar. Precisava criar uma campanha para o Inter que convocasse o torcedor colorado a lotar o estádio durante o Campeonato Brasileiro. Ele simplesmente não acreditava.
Falou com o diretor de arte ao seu lado.
- Não sabia que o Inter era nosso cliente.
- É. Conquistamos a conta semana passada.
Por uns três segundos, Sérgio ficou encarando seu colega, sem saber o que pensar.
- Sérgio, você está bem?
- Ah, sim. Estou, pode deixar.
- Algum problema?
- Nada, nada. Só vou no banheiro rapidinho.
Quase correndo, Sérgio foi até o banheiro mais próximo. Ali, sentou na privada com a tampa abaixada, pôs as mãos na cabeça e começou a se lamentar.
Não conseguia acreditar em seu azar. Fazer campanha para o Inter? Isso ia contra todos os seus princípios. Não poderia fazer isso. Seria uma traição contra o Grêmio. Como escapar?
Respirou fundo, molhou o rosto na pia e voltou para a sua mesa, sereno. Olhando para ele, ninguém desconfiaria o dilema no qual Sérgio se encontrava. Até porque era seu primeiro dia ali e ninguém o conhecia direito.
- É Renato, não é? – falou no ouvido de outro redator. Sérgio sabia o nome dele, até porque era igual ao maior ídolo da história do seu time.
- Sim, Renato. Por quê?
- Queria conversar com você. Tem um minuto?
- Na verdade, não. Tenho que entregar este anúncio até às...
- É rapidinho.
Meio desconfiado, Renato aceitou. Sérgio o levou até à copa, onde disse:
- Tenho um pedido pra te fazer.
Renato deu um passo atrás e olhou Sérgio de forma desconfiada.
- Olha, cara. Não sei da onde você tirou isso, mas eu não sou gay – falou Renato.
- Não é nada disso. É que caiu um trabalho pra mim que eu queria que você fizesse.
Renato estava pasmo com o pedido.
- Você não quer fazer seu trabalho?
- Quero, mas é que... – precisava pensar em uma desculpa. Disse a primeira coisa que veio em sua mente: - Você está há mais tempo aqui. Acho que seria melhor alguém que já conhece o cliente pegar uma campanha grande assim.
- Qual o cliente?
- Inter.
- Mas o Inter é cliente novo! Eu sou tão ignorante quanto você no assunto.
Sérgio ficou um instante sem saber o que dizer. Instintivamente, falou:
- Mas você deve gostar de futebol.
- Gosto – respondeu Renato.
- E torce pra qual time?
- Inter.
- Então, é perfeito.
- Você não gosta de futebol, Sérgio?
Mais um cinco segundos sem falar nada. Neste breve espaço de tempo, uma série de pensamentos encadeados ocupou o cérebro de Sérgio. Se ele dissesse que gostava, não teria desculpa para não fazer a campanha. Se dissesse que gostava, não poderia discutir e provocar colorados no futuro, uma das coisas que ele mais gostava de fazer como gremista. O que fazer?
- N... n... não – arriscou.
Agora não tinha mais volta. Teria que encarar as conseqüências e interpretar o personagem que criara. Um personagem que não gostava de futebol.
- Sério? Você tem cara de boleiro. Achei que gostava.
- Pois é.
- E aquela mochila do Grêmio com a qual você chegou hoje?
- Ah... aquilo foi um presente.
- E a discussão sobre o título contra o Náutico ano passado que você estava tendo no almoço?
- Aquilo... quem não se emocionou com aquilo? Até quem odeia futebol foi tocado por aquela experiência.
Sérgio julgara ter escapado bem. Doía profundamente em seu coração ter que agir dessa forma. Mas não tinha outra escolha. Era isso ou fazer uma campanha sobre o valor do Inter. E ele estava decidido a não fazer.
- Que esporte você gosta, então?
Essa veio de surpresa. O correto seria pensar um pouco, para tentar lembrar tudo o que já falara aos novos colegas e não se contradizer, mas Sérgio não tinha esse tempo.
- Cricket.
“Cricket?”, pensou o próprio Sérgio.
- Cricket? – perguntou Renato.
- É, cricket. Meu pai é inglês.
Mais uma mentira que teria que sustentar. A bola de neve estava se formando.
- Verdade? Não sabia disso. Ele não foi amigo de infância do Alves?
Sérgio compreendeu que tinha dado uma bola fora. Na pressão do momento, esqueceu que estava ali porque o diretor havia sido amigo de longa data de seu pai.
- Sim. Meu pai veio pra cá quando criança. Mas a tradição do cricket permaneceu na família.
- Ah, certo.
Escapara. Mas estava na hora de voltar ao assunto principal, antes que a situação piorasse. Perguntou para Renato:
- Não vai poder me ajudar, então?
- Acho que não. Além do mais, ainda tenho que terminar várias coisas. Mas deixa eu te dar uma dica – pôs a mão no ombro de Sérgio. – Qual o seu time de cricket favorito?
“Putz”. Sérgio pensou. O que dizer? Logo veio à sua mente que Renato provavelmente não conhecia times de cricket. Qualquer coisa que falasse seria aceita.
- É o... Oxford... Push... Pushing Sticks. Oxford Pushing Sticks!
Renato pareceu surpreso, mas engoliu.
- Que nome, hein? Mas faça assim. Imagine que é uma campanha pro Cocks Bulls and Picles.
- Oxford Pushing Sticks.
- Isso. Coloque-se como torcedor que vai dar certo. Ok?
Renato saiu. Sérgio continuava com o problema. Pelo desenrolar da carruagem, teria que fazer mesmo a campanha.
E se fizesse uma campanha de péssima qualidade? Uma idéia fraca, que certamente seria rejeitada. Na próxima vez que o briefing voltasse, certamente iria para outra pessoa. Se a campanha fosse aceita, em alguma sempre possível loucura por parte do cliente, as peças nas ruas seriam tão ruins que jamais funcionariam. Se Sérgio tivesse um pouco de sorte, até prejudicariam o Inter.
Era isso!
Voltou correndo para a sua mesa. O diretor de arte perguntou:
- E a campanha do Inter, Sérgio? Temos que entregar amanhã.
- Estou trabalhando nela agora mesmo.
O desespero e a angústia de ter que fazer algo para ajudar o time rival desaparecera. Sérgio estava trabalhando com prazer, tentando criar uma peça ruim que passasse por boa, para ser aprovada. O prazer vinha exatamente do fato de saber que ele poderia estar auxiliando o Grêmio com seu trabalho.
Três horas depois, Sérgio tinha uma idéia pronta. Havia feito um soneto como carro chefe da campanha. Um soneto, porém, com versos bregas disfarçados de inteligentes, uma conversa vazia que parecia com conteúdo. Palavras que soavam excitantes, mas enjoativas e que jamais cairiam no gosto do público.
Não havia como funcionar e tinha todas as possibilidades de ser aceito. Exultante com sua eficácia, Sérgio mostrou a idéia ao diretor de arte. Ele gostou e começou a trabalhar imediatamente.
No dia seguinte, a campanha foi apresentada e aprovada. Em menos de uma semana estaria na rua. Sérgio não se continha de felicidade. Acabara de fazer o Inter gastar uma grana preta em mídia para comunicar uma bobagem. Fizera uma boa ação. Uma ação de gremista.
- Viu como eu estava certo sobre o McDonald’s Bobs and Chips? – comentou Renato, assim que a campanha foi para a rua.
- Quê? – Sérgio indagou.
- Seu time. De cricket. Eu disse que era só fazer de conta que o Inter era o seu time favorito que ia dar certo.
- Claro. E deu. Muito certo.
Na verdade, não deu. Não do jeito que Sérgio planejava. A campanha foi um tremendo sucesso. Comentada em todos os bares da cidade. Na mídia. E, o mais importante, fez com que os colorados lotassem o Beira-Rio em quase todos os jogos do Brasileiro.
Isso arruinou a vida de Sérgio. A culpa começou a corroer seus órgãos e oprimir seu pulmão. Tinha crises nas quais não conseguia respirar direito. E isso só de lembrar do que havia feito. Sempre que enxergava alguma peça da campanha que produzira, Sérgio desmaiava.
O peso na sua consciência era tanto que não conseguia mais nem visitar o Olímpico. Sabia que tinha traído seu time e não se sentia digno de colocar os pés naquela terra sagrada para ele. Ajudara o Inter e isso era imperdoável.
Parou de ir ao trabalho para não ver outdoors nas ruas. Não comprava mais jornais para não ler os anúncios. Vendeu sua televisão para não ver o comercial e quebrou o rádio para não escutar o jingle. Virou um recluso, preso dentro de sua própria casa. A vergonha o consumia.
Sérgio não fazia idéia de há quantos dias estava assim quando um grupo de amigos invadiu seu apartamento. Encontraram-no em posição fetal, deitado no canto da sala, enrolado em uma bandeira do Grêmio. Ele resmungava palavras ininteligíveis. Pelas paredes antes brancas, incontáveis rabiscos com a palavra “Desculpe” em cores azul, preto e branco.
Os amigos levaram Sérgio a um hospital. Ele passou quase um mês se recuperando, sendo alimentado e conversando com um psicólogo. Quando recebeu alta, uma coincidência. Foi no mesmo dia do maior evento da cidade de Porto Alegre. Um Grenal.
Achando que seria bom para sua recuperação ver uma vitória do seu time do coração contra o maior rival, os amigos de Sérgio o carregaram até o Olímpico. Ele voltaria a ser o mesmo.
O jogo começou bem. No intervalo, o placar apontava 1 a 0 para o tricolor.
- Falei que seria bom ter vindo, Sérgio – disse Alfredo, um dos amigos. – Como está se sentindo?
- Muito bem, na verdade. É bom demais estar de volta aqui. Obrigado por tudo.
- De nada.
Foi então que, a um minuto do segundo tempo, a torcida colorada começou a fazer barulho. Entoaram uma canção que Sérgio jamais ouvira-os cantar. Seja por causa da sua recuperação ou por ter bloqueado suas ações, ele não reconheceu a canção. Foi um senhor que estava sentado perto deles que comentou com alguém do lado:
- Eles estão cantando o poema daquela campanha. Já virou até música! Ah, se eu pego o colorado que fez aquilo eu encho de porrada!
Como uma avalanche da Alma Castelhana, todo o sofrimento retornou. Suas pernas enfraqueceram, os olhos pararam de enxergar e o estômago fê-lo regurgitar o almoço. Apagou.
Desta vez, acordou em sua cama. Abriu os olhos e reconheceu o seu quarto pelos pôsteres e fotos do Grêmio. Assim que seus olhos recuperaram o foco, enxergou dois amigos ao lado da cama.
- Quanto foi o jogo? – perguntou Sérgio.
- Calma, Sérgio. Não é bom falar sobre isso agora.
- Quanto foi o jogou? – indagou novamente, agora de forma mais incisiva.
Os dois amigos se olharam rapidamente e soltaram um longo suspiro. Com a cabeça baixa, um deles disse:
- 2 a 1.
- Pra quem?
Permaneceram em silêncio.
- Édson, pra quem?
- Pro Inter.
Sérgio ficou em silêncio. Tinha uma última pergunta, mas estava com medo da resposta. Engoliu em seco, respirou fundo e questionou:
- A música que a torcida cantava... ela teve alguma coisa a ver com a reação do Inter? Ajudou?
Édson, um dos amigos, saiu do quarto sem responder. O outro estava seguindo o mesmo caminho quando Sérgio gritou.
- Roberto! Não saia por essa porta!
O outro parou.
- A música. Teve algo a ver com a reação e com a virada do Inter?
Roberto olhou Sérgio diretamente no olho.
- Sim. O time deles não parou de correr enquanto a torcida cantava a música.
Difícil descrever em palavras a sensação que Sérgio teve naquele momento. Primeiro, pareceu que seu corpo não possuía órgão algum. Um vazio desconfortável tomou conta dele, como em uma longa queda.
Em seguida, não enxergou mais nada, embora estivesse com os olhos abertos. Parou de sentir os membros de seu corpo e não teve mais controle de nada. Mas desta vez não desmaiou. Assim que o ataque de choque passou, virou a cabeça no travesseiro para o lado contrário de onde estava Roberto.
Em seu raio de visão, existia uma toalha azul, preta e branca, com um distintivo grande do Grêmio no centro. Deixou escorrer uma lágrima enquanto observava o símbolo de seu time.
Voltou-se novamente para Roberto, que continuava parado diante da porta. Perguntou:
- Roberto?
- Sim, Sérgio?
- Você já jogou cricket?