Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Monday, April 24, 2006

Primeira Vez

Não fosse pelos dois pequenos abajures com lâmpadas amarelas e fracas, o quarto estaria engolido pela escuridão. Miguel estava parado atrás da filmadora, ajustando o foco e os últimos detalhes.

- Tire a roupa, Márcia.

Ela pareceu um pouco relutante, mas, com um olhar dele, acabou cedendo. Lentamente, colocou para trás os longos cabelos loiros e deslocou as alças de seu vestido, deixando-o escorrer pelo corpo até o chão.

- Ótimo – disse Miguel.

Saiu de trás de sua posição de cineasta e entrou no enquadramento da câmera. Passou ao lado de Márcia, que parecia nervosa e com medo. Miguel percebeu isso. Sentou-se no sofá.

- É a primeira vez que você faz isso, não?

Ela anuiu com a cabeça.

- Não tem problema, nós vamos devagar. Venha pra cá.

Márcia caminhou até o lugar onde Miguel estava sentado. Ficou parada em pé ao lado. Ele esticou a mão e pegou a dela. Puxou-a até o sofá, sentando-a ao lado.

Com calma e delicadeza, começou a analisar as coxas de Márcia com a ponta dos dedos. Em seguida, passou a mão pelos cabelos dela e deu-lhe um beijo.

- Tudo bem?

Ela não disse nada, apenas balançou afirmativamente a cabeça, mais uma vez.

- A que horas seu pai chega? – perguntou Miguel.

- Daqui a umas duas horas.

Ele sorriu. Em seguida, começou a abrir suas próprias calças. Ficou pé e arriou a vestimenta até o chão. Parou, nu, em frente a Márcia, que continuava sentada, hesitante.

- Não precisa ter medo, meu amor. Dê aqui sua mão.

Márcia estendeu a mão trêmula. Miguel segurou-a e colocou-a em seu pênis. Em um ato reflexivo, ela retirou o braço rapidamente. Ele repetiu que ela não precisava ter medo e pôs a mão de Márcia no mesmo lugar. Desta vez, segurou a mão por um tempo, para que ela não soltasse.

- Isso, querida. Mexa nele um pouco.

Ela não olhava. Fazia tudo de olhos fechados. Miguel deixou a cena desenrolar por um tempo e sentou novamente no sofá, com a face dominada pelo prazer.

- Agora é sua vez.

- Eu não quero – Márcia sacudiu a cabeça em negativa.

- Calma, querida. Não há com o que se preocupar.

Ditas estas palavras, pediu para ela ficar em pé. Deu-lhe a mão para que se levantasse. Márcia se ergueu e ficou diante dele. Com as duas mãos, baixou a calcinha dela.

- Lindo – disse Miguel. – Venha pra cá.

Puxou-a para o seu colo, fazendo a sentar na sua perna esquerda. Convidou-a novamente a tocar em seu membro, enquanto acariciava o corpo de Márcia e beijava-lhe a face.

Ficaram assim por alguns instantes, até que a filmadora fez um barulho. A fita parecia ter acabado. Miguel tirou Márcia de seu colo e foi até a câmera, para verificar o que havia acontecido.

Márcia aproveitou para perguntar:

- Não quero mais fazer isso.

Miguel não respondeu. Rebobinou a fita e assistiu uma parte na própria filmadora. Falou para si mesmo:

- Ótimo.

Márcia já havia se vestido. Aproximou-se de Miguel, com medo. Perguntou, com voz nervosa:

- Tio Miguel, cadê minha boneca? Quero brincar lá fora.

Ele buscou o brinquedo junto a suas coisas e entregou na mão de Márcia. Passou a mão pelos cabelos lisos e loiros dela e beijou-lhe.

Enquanto a garota de treze anos saia em passos rápidos, arrumando a saia da boneca para que a calcinha não aparecesse, Miguel falou.

- Vai, meu anjo. Vai, minha criança.

Friday, April 21, 2006

O SENHOR DAS ARMAS

Tem crítica minha sobre "O Senhor das Armas" em www.cineplayers.com.

Thursday, April 20, 2006

ARMAÇÕES DO AMOR

A minha crítica de Armações do Amor já foi publicada em www.cineplayers.com. Dêem uma olhada lá.

Monday, April 17, 2006

As Intermitências da Morte


José Saramago talvez seja o maior escritor em língua portuguesa da atualidade. Ok, talvez eu esteja generalizando ao afirmar isso, até porque não li todos os livros de todos os autores que escrevem em nossa língua-mãe. Mas, de qualquer forma, Saramago é meu favorito. As Intermitências da Morte, sua última obra, é mais um delicioso exercício do estilo do grande mestre português. Partindo de um ponto de partida interessantíssimo – a morte simplesmente decide parar de matar, chateada por ser tão mal vista por todos – Saramago usa seu incrível poder de imaginação para construir uma história que toma caminhos surpreendentes, sempre pontuada por um humor incrivelmente sagaz. A linguagem do autor continua peculiar. Saramago é um escritor que conseguiu encontrar um estilo só seu de escrever e, assim que o leitor supera a estranheza inicial, descobre que é fascinante ser carregado pelas frases do vencedor do Nobel, repletas de criatividade, erudição e um olhar arguto sobre a vida. O fato de o autor ter proibido a “tradução” do português de Portugal para o português do Brasil também acrescenta um toque de originalidade ao trabalho, já que o leitor sabe estar lendo as frases exatamente como elas foram concebidas por Saramago. As Intermitências da Morte é um grande livro. Talvez não seja o melhor de Saramago, mas é uma belíssima obra, que acredito ser a mais acessível das que eu li dele. Quem ainda não o conhece, é uma ótima opção para entrar no mundo de um mais completos escritores da atualidade.

Sunday, April 16, 2006

Grenal de Idéias


A vida de Sérgio girava em torno de duas paixões. Uma delas era a propaganda, atividade que ele exercia diariamente há quase dez anos e ainda mantinha o mesmo entusiasmo. Criar anúncios, peças e campanhas completas não era apenas uma profissão, mas algo que fazia parte de sua essência, chegando ao ponto de Sérgio sentir-se mal quando não estava criando.

A única coisa que o acalmava era o futebol. E aí morava a segunda paixão da vida de Sérgio: o Grêmio. Tendo passado toda a sua existência em Porto Alegre, só poderia ter escolhido entre o Grêmio e o Inter. Optou pelo primeiro e a dedicação ao tricolor gaúcho ocupava boa parte do seu dia.

Sempre que sobrava um tempo, visitava a sala de troféus do Olímpico. Não lembrava da última vez em que comprara um presente em outra loja senão a Grêmio Mania. Sua paixão pelo azul era tanta que chegava a ter medo de sair na rua quando estava nublado e o céu não estava com a cor de seu time.

Desde que começara na propaganda, Sérgio tinha o desejo de realizar algum trabalho sobre futebol. De preferência, relacionado ao Grêmio. E foi logo no primeiro dia de trabalho na nova agência que teve seu sonho realizado. Ao menos parte dele. Perto das três da tarde, ficou sabendo que teria que elaborar uma campanha relacionada ao futebol. Mas ela era para o Inter.

Sérgio teve que ler o pedido de trabalho umas três vezes antes de acreditar. Precisava criar uma campanha para o Inter que convocasse o torcedor colorado a lotar o estádio durante o Campeonato Brasileiro. Ele simplesmente não acreditava.
Falou com o diretor de arte ao seu lado.

- Não sabia que o Inter era nosso cliente.

- É. Conquistamos a conta semana passada.

Por uns três segundos, Sérgio ficou encarando seu colega, sem saber o que pensar.

- Sérgio, você está bem?

- Ah, sim. Estou, pode deixar.

- Algum problema?

- Nada, nada. Só vou no banheiro rapidinho.

Quase correndo, Sérgio foi até o banheiro mais próximo. Ali, sentou na privada com a tampa abaixada, pôs as mãos na cabeça e começou a se lamentar.

Não conseguia acreditar em seu azar. Fazer campanha para o Inter? Isso ia contra todos os seus princípios. Não poderia fazer isso. Seria uma traição contra o Grêmio. Como escapar?

Respirou fundo, molhou o rosto na pia e voltou para a sua mesa, sereno. Olhando para ele, ninguém desconfiaria o dilema no qual Sérgio se encontrava. Até porque era seu primeiro dia ali e ninguém o conhecia direito.

- É Renato, não é? – falou no ouvido de outro redator. Sérgio sabia o nome dele, até porque era igual ao maior ídolo da história do seu time.

- Sim, Renato. Por quê?

- Queria conversar com você. Tem um minuto?

- Na verdade, não. Tenho que entregar este anúncio até às...

- É rapidinho.

Meio desconfiado, Renato aceitou. Sérgio o levou até à copa, onde disse:

- Tenho um pedido pra te fazer.

Renato deu um passo atrás e olhou Sérgio de forma desconfiada.

- Olha, cara. Não sei da onde você tirou isso, mas eu não sou gay – falou Renato.

- Não é nada disso. É que caiu um trabalho pra mim que eu queria que você fizesse.

Renato estava pasmo com o pedido.

- Você não quer fazer seu trabalho?

- Quero, mas é que... – precisava pensar em uma desculpa. Disse a primeira coisa que veio em sua mente: - Você está há mais tempo aqui. Acho que seria melhor alguém que já conhece o cliente pegar uma campanha grande assim.

- Qual o cliente?

- Inter.

- Mas o Inter é cliente novo! Eu sou tão ignorante quanto você no assunto.

Sérgio ficou um instante sem saber o que dizer. Instintivamente, falou:

- Mas você deve gostar de futebol.

- Gosto – respondeu Renato.

- E torce pra qual time?

- Inter.

- Então, é perfeito.

- Você não gosta de futebol, Sérgio?

Mais um cinco segundos sem falar nada. Neste breve espaço de tempo, uma série de pensamentos encadeados ocupou o cérebro de Sérgio. Se ele dissesse que gostava, não teria desculpa para não fazer a campanha. Se dissesse que gostava, não poderia discutir e provocar colorados no futuro, uma das coisas que ele mais gostava de fazer como gremista. O que fazer?

- N... n... não – arriscou.

Agora não tinha mais volta. Teria que encarar as conseqüências e interpretar o personagem que criara. Um personagem que não gostava de futebol.
- Sério? Você tem cara de boleiro. Achei que gostava.

- Pois é.

- E aquela mochila do Grêmio com a qual você chegou hoje?

- Ah... aquilo foi um presente.

- E a discussão sobre o título contra o Náutico ano passado que você estava tendo no almoço?

- Aquilo... quem não se emocionou com aquilo? Até quem odeia futebol foi tocado por aquela experiência.

Sérgio julgara ter escapado bem. Doía profundamente em seu coração ter que agir dessa forma. Mas não tinha outra escolha. Era isso ou fazer uma campanha sobre o valor do Inter. E ele estava decidido a não fazer.

- Que esporte você gosta, então?

Essa veio de surpresa. O correto seria pensar um pouco, para tentar lembrar tudo o que já falara aos novos colegas e não se contradizer, mas Sérgio não tinha esse tempo.

- Cricket.

“Cricket?”, pensou o próprio Sérgio.

- Cricket? – perguntou Renato.

- É, cricket. Meu pai é inglês.

Mais uma mentira que teria que sustentar. A bola de neve estava se formando.

- Verdade? Não sabia disso. Ele não foi amigo de infância do Alves?

Sérgio compreendeu que tinha dado uma bola fora. Na pressão do momento, esqueceu que estava ali porque o diretor havia sido amigo de longa data de seu pai.

- Sim. Meu pai veio pra cá quando criança. Mas a tradição do cricket permaneceu na família.

- Ah, certo.

Escapara. Mas estava na hora de voltar ao assunto principal, antes que a situação piorasse. Perguntou para Renato:

- Não vai poder me ajudar, então?

- Acho que não. Além do mais, ainda tenho que terminar várias coisas. Mas deixa eu te dar uma dica – pôs a mão no ombro de Sérgio. – Qual o seu time de cricket favorito?

“Putz”. Sérgio pensou. O que dizer? Logo veio à sua mente que Renato provavelmente não conhecia times de cricket. Qualquer coisa que falasse seria aceita.

- É o... Oxford... Push... Pushing Sticks. Oxford Pushing Sticks!

Renato pareceu surpreso, mas engoliu.

- Que nome, hein? Mas faça assim. Imagine que é uma campanha pro Cocks Bulls and Picles.

- Oxford Pushing Sticks.

- Isso. Coloque-se como torcedor que vai dar certo. Ok?

Renato saiu. Sérgio continuava com o problema. Pelo desenrolar da carruagem, teria que fazer mesmo a campanha.

E se fizesse uma campanha de péssima qualidade? Uma idéia fraca, que certamente seria rejeitada. Na próxima vez que o briefing voltasse, certamente iria para outra pessoa. Se a campanha fosse aceita, em alguma sempre possível loucura por parte do cliente, as peças nas ruas seriam tão ruins que jamais funcionariam. Se Sérgio tivesse um pouco de sorte, até prejudicariam o Inter.

Era isso!

Voltou correndo para a sua mesa. O diretor de arte perguntou:

- E a campanha do Inter, Sérgio? Temos que entregar amanhã.

- Estou trabalhando nela agora mesmo.

O desespero e a angústia de ter que fazer algo para ajudar o time rival desaparecera. Sérgio estava trabalhando com prazer, tentando criar uma peça ruim que passasse por boa, para ser aprovada. O prazer vinha exatamente do fato de saber que ele poderia estar auxiliando o Grêmio com seu trabalho.

Três horas depois, Sérgio tinha uma idéia pronta. Havia feito um soneto como carro chefe da campanha. Um soneto, porém, com versos bregas disfarçados de inteligentes, uma conversa vazia que parecia com conteúdo. Palavras que soavam excitantes, mas enjoativas e que jamais cairiam no gosto do público.

Não havia como funcionar e tinha todas as possibilidades de ser aceito. Exultante com sua eficácia, Sérgio mostrou a idéia ao diretor de arte. Ele gostou e começou a trabalhar imediatamente.

No dia seguinte, a campanha foi apresentada e aprovada. Em menos de uma semana estaria na rua. Sérgio não se continha de felicidade. Acabara de fazer o Inter gastar uma grana preta em mídia para comunicar uma bobagem. Fizera uma boa ação. Uma ação de gremista.

- Viu como eu estava certo sobre o McDonald’s Bobs and Chips? – comentou Renato, assim que a campanha foi para a rua.

- Quê? – Sérgio indagou.

- Seu time. De cricket. Eu disse que era só fazer de conta que o Inter era o seu time favorito que ia dar certo.

- Claro. E deu. Muito certo.

Na verdade, não deu. Não do jeito que Sérgio planejava. A campanha foi um tremendo sucesso. Comentada em todos os bares da cidade. Na mídia. E, o mais importante, fez com que os colorados lotassem o Beira-Rio em quase todos os jogos do Brasileiro.

Isso arruinou a vida de Sérgio. A culpa começou a corroer seus órgãos e oprimir seu pulmão. Tinha crises nas quais não conseguia respirar direito. E isso só de lembrar do que havia feito. Sempre que enxergava alguma peça da campanha que produzira, Sérgio desmaiava.

O peso na sua consciência era tanto que não conseguia mais nem visitar o Olímpico. Sabia que tinha traído seu time e não se sentia digno de colocar os pés naquela terra sagrada para ele. Ajudara o Inter e isso era imperdoável.

Parou de ir ao trabalho para não ver outdoors nas ruas. Não comprava mais jornais para não ler os anúncios. Vendeu sua televisão para não ver o comercial e quebrou o rádio para não escutar o jingle. Virou um recluso, preso dentro de sua própria casa. A vergonha o consumia.

Sérgio não fazia idéia de há quantos dias estava assim quando um grupo de amigos invadiu seu apartamento. Encontraram-no em posição fetal, deitado no canto da sala, enrolado em uma bandeira do Grêmio. Ele resmungava palavras ininteligíveis. Pelas paredes antes brancas, incontáveis rabiscos com a palavra “Desculpe” em cores azul, preto e branco.

Os amigos levaram Sérgio a um hospital. Ele passou quase um mês se recuperando, sendo alimentado e conversando com um psicólogo. Quando recebeu alta, uma coincidência. Foi no mesmo dia do maior evento da cidade de Porto Alegre. Um Grenal.

Achando que seria bom para sua recuperação ver uma vitória do seu time do coração contra o maior rival, os amigos de Sérgio o carregaram até o Olímpico. Ele voltaria a ser o mesmo.

O jogo começou bem. No intervalo, o placar apontava 1 a 0 para o tricolor.

- Falei que seria bom ter vindo, Sérgio – disse Alfredo, um dos amigos. – Como está se sentindo?

- Muito bem, na verdade. É bom demais estar de volta aqui. Obrigado por tudo.

- De nada.

Foi então que, a um minuto do segundo tempo, a torcida colorada começou a fazer barulho. Entoaram uma canção que Sérgio jamais ouvira-os cantar. Seja por causa da sua recuperação ou por ter bloqueado suas ações, ele não reconheceu a canção. Foi um senhor que estava sentado perto deles que comentou com alguém do lado:

- Eles estão cantando o poema daquela campanha. Já virou até música! Ah, se eu pego o colorado que fez aquilo eu encho de porrada!

Como uma avalanche da Alma Castelhana, todo o sofrimento retornou. Suas pernas enfraqueceram, os olhos pararam de enxergar e o estômago fê-lo regurgitar o almoço. Apagou.

Desta vez, acordou em sua cama. Abriu os olhos e reconheceu o seu quarto pelos pôsteres e fotos do Grêmio. Assim que seus olhos recuperaram o foco, enxergou dois amigos ao lado da cama.

- Quanto foi o jogo? – perguntou Sérgio.

- Calma, Sérgio. Não é bom falar sobre isso agora.

- Quanto foi o jogou? – indagou novamente, agora de forma mais incisiva.

Os dois amigos se olharam rapidamente e soltaram um longo suspiro. Com a cabeça baixa, um deles disse:

- 2 a 1.

- Pra quem?

Permaneceram em silêncio.

- Édson, pra quem?

- Pro Inter.

Sérgio ficou em silêncio. Tinha uma última pergunta, mas estava com medo da resposta. Engoliu em seco, respirou fundo e questionou:

- A música que a torcida cantava... ela teve alguma coisa a ver com a reação do Inter? Ajudou?

Édson, um dos amigos, saiu do quarto sem responder. O outro estava seguindo o mesmo caminho quando Sérgio gritou.

- Roberto! Não saia por essa porta!

O outro parou.

- A música. Teve algo a ver com a reação e com a virada do Inter?

Roberto olhou Sérgio diretamente no olho.

- Sim. O time deles não parou de correr enquanto a torcida cantava a música.

Difícil descrever em palavras a sensação que Sérgio teve naquele momento. Primeiro, pareceu que seu corpo não possuía órgão algum. Um vazio desconfortável tomou conta dele, como em uma longa queda.

Em seguida, não enxergou mais nada, embora estivesse com os olhos abertos. Parou de sentir os membros de seu corpo e não teve mais controle de nada. Mas desta vez não desmaiou. Assim que o ataque de choque passou, virou a cabeça no travesseiro para o lado contrário de onde estava Roberto.

Em seu raio de visão, existia uma toalha azul, preta e branca, com um distintivo grande do Grêmio no centro. Deixou escorrer uma lágrima enquanto observava o símbolo de seu time.

Voltou-se novamente para Roberto, que continuava parado diante da porta. Perguntou:

- Roberto?

- Sim, Sérgio?

- Você já jogou cricket?

Wednesday, April 12, 2006

Filmes de março

O VIRGEM DE 40 ANOS (40 YEAR OLD VIRGIN) – EUA, 2005 ***1/2
De Judd Apatow. Com Steve Carrell, Catherine Keener, Paul Rudd e Romany Malco.

Steve Carrell é um gênio da comédia. Anotem esse nome, porque vai dar muito o que falar. Sua representação de um homem de quarenta anos que nunca fez sexo é irrepreensível. Além de um timing cômico fulminante, o ator ainda consegue fugir da caricatura, criando um personagem incrivelmente real. Claro que o roteiro do filme ajuda, com diálogos inspirados e situações hilariantes. A única ressalva de O Virgem de 40 Anos fica por conta da longa duração, que acaba fazendo o filme perder o ritmo.
Obs.: assisti a versão sem cortes do filme, com dezessete minutos a mais do que a que foi aos cinemas. Talvez a versão original tenha um ritmo melhor.

CAPOTE – EUA, 2005 ****
De Bennett Miller. Com Phillip Seymour Hoffman, Catherine Keener, Chris Cooper, Bruce Greenwood e Clifton Collins Jr.

Belo estudo sobre a mente de um personagem fascinante, Capote se sustenta sobre os ombros da brilhante interpretação de Hoffman. Aproveitando um roteiro que lhe dá oportunidades para brilhar, o ator captura não apenas os trejeitos e o modo de falar de Truman Capote, mas o revive na tela como um ser humano completo, com todas as suas contradições e fraquezas. Um ótimo filme.

VÔO NOTURNO (RED EYE) – EUA, 2005 ***1/2
De Wes Craven. Com Rachel McAdams, Cillian Murphy e Brian Cox.

Vôo Noturno foi uma agradável surpresa do gênero suspense. Wes Craven demonstrou criatividade e talento mais uma vez ao criar um jogo interessante entre a mocinha e o vilão dentro do avião. Limitados pelo espaço, os dois personagens usam a inteligência para levar vantagem sobre o outro. Enquanto se passa dentro do avião, a obra mantém o alto nível. Pena que o terceiro ato caia no lugar-comum. Mas Rachel McAdams continua linda e talentosa, criando uma personagem crível que consegue manter o interesse em meio aos clichês.

CROSSROADS – A ENCRUZILHADA (CROSSROADS) – EUA, 1986 ***
De Walter Hill. Com Ralph Macchio, Joe Seneca, Jami Gertz, Joe Morton e Steve Vai.

Inegável que a grande qualidade de Crossroads seja a sua música. Ainda que tenha um ponto de partida interessante e o roteiro se aproveite da lendária história das encruzilhadas, aqueles que não gostam de blues certamente não irão apreciar o filme. A trama é mal desenvolvida e os personagens são rasos, resultando em relações artificiais. Mas os momentos musicais são geniais e empolgantes, como o estarrecedor duelo final entre Macchio e um Steve Vai ensandecido.

PASSAPORTE PARA A CONFUSÃO (EUROTRIP) – EUA, 2004 ***1/2
De Jeff Schaffer. Com Scott Mechlovicz, Jacob Pitts, Kristin Kreuk e Cathy Meils.

Comédia hilária e pouco conhecida, ao melhor estilo American Pie. As piadas são completamente nonsense e idiotas, mas resultam em momentos hilários, como a do italiano no trem e a do novo papa. Ainda que, no elenco, destaque-se apenas Jacob Pitts como o sensacional Cooper, o filme mantém o nível de risadas até o final, revelando um filme que é uma boa surpresa. Reparem nas participações especiais, como a de Matt Damon cantando o hino Scotty Doesn’t Know.

SHREK 2 – EUA, 2004 ****
De Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon. Com as vozes de Mike Myers, Eddie Murphy, Cameron Diaz, Antonio Banderas, John Cleese e Julie Andrews.

Ainda que não tenha um roteiro tão inspirado quanto o do filme original, Shrek 2 é uma continuação de alta qualidade. Os personagens continuam adoráveis, com destaque para o sempre hilário Burro e o novo Gato de Botas. Há cenas muito engraçadas e outras nem tanto, sempre mantendo o sarcasmo o tom politicamente incorreto, o que o difere dos outros desenhos animados. O resultado final é positivo, ainda que inferior ao primeiro.

MATCH POINT – PONTO FINAL (MATCH POINT) – EUA/Inglaterra, 2005 ****1/2
De Woody Allen. Com Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Paul Kaye, Matthew Goode, Brian Cox e Emily Mortimer.

A volta de Woody Allen ao Olimpo dos cineastas se deu com um filme que tem pouco a ver com a filmografia do diretor. A verve cômica de Allen é deixada completamente de lado nesse conto de amor, obsessão e assassinato. Como é comum em seus filmes, os personagens são construídos de forma exemplar e complexa, beneficiando-se imensamente do ótimo elenco (Scarlett é uma diva). Se as duas primeiras partes da obra já são excelentes, o terceiro ato é praticamente irrepreensível, trazendo tensão, surpresas e momentos de pura genialidade. Um grande filme.

HOOLIGANS (GREEN STREET HOOLIGANS) – EUA/Inglaterra, 2005 ***
De Lexi Alexander. Com Elijah Wood, Charlie Hunnam, Claire Forlani e Leo Gregory.

Filme com diversas qualidades, mas que falha em um ponto crucial. Ainda que seja eficiente ao apresentar o dia-a-dia dos hooligans, a obra de Lexi Alexander parece aplaudir as ações deles, como se fosse algo necessário para estes jovens se tornarem homens. Além disso, os personagens parecem todos iguais, com a mesma personalidade. Hooligans conta com cenas bem filmadas e intensas e, se não fosse moralmente discutível, poderia ser recomendado com facilidade.

O PLANO PERFEITO (INSIDE MAN) – EUA, 2006 **1/2
De Spike Lee. Com Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster, Willem Dafoe e Christopher Plummer.

O diretor e o elenco fazem o possível para tirar este filme do lugar-comum das obras do gênero, mas não conseguem. O roteiro, ainda que reserve algumas surpresas em relação ao assalto, perde-se em meio aos furos e situações imperdoáveis, como a burrice de todos os policiais. A obra ganha pontos com os contornos de crítica social ensaiados por Spike Lee, mas é muito pouco para uma produção da qual se esperava mais.

O Imperador - Os Portões de Roma


Eu sempre gostei de História, mas existem dois assuntos que me fascinam mais do que qualquer outro em todos os já ocorridos neste planeta: Roma e Egito. Estas duas civilizações sempre me atraíram por toda a sua grandeza, esplendor e, claro, mistérios. Já li diversos livros a respeito, ficção e não-ficção, e as formas de se explorar o assunto parecem não se esgotar. A mais recente obra a chamar a atenção a esse respeito é a série O Imperador, escrita pelo britânico Conn Iggulden. A princípio, seria uma trilogia, mas pelo que ouvi acabou se transformando em quatro livros. Acabei de ler o primeiro, Os Portões de Roma, que conta a história dos primeiros anos de Júlio César. Muito da história é suposição e imaginação do autor, como ele próprio se apressa em justificar ao final do livro. Mas, ainda que a obra perca um pouco por essa falta de acuidade histórica, existem diversas outras qualidades para justificar o sucesso da série de Iggulden. Além da óbvia fascinação popular pelo tema, o autor consegue recriar com qualidade o mundo de Roma, revelando detalhes do dia-a-dia dos habitantes da cidade, desde os mais humildes (como era Júlio César quando criança) aos grandes nomes (como o tio do futuro imperador quando ele vai morar em Roma). Os personagens são bem desenvolvidos e conseguem transmitir ao leitor aquele sentimento de honra e grandiosidade que são características das tramas da época. Dentre eles, o meu favorito é Rênio, o ex-gladiador que se torna tutor de Júlio e Marco, que o autor revela ter sido completamente inventado. Mas há outras figuras interessantes e Iggulden acerta também na construção da personalidade de Júlio, revelando o surgimento do caráter daquele que seria um dos homens mais importantes de todos os tempos. Apesar destas qualidades, a trama de O Imperador – Os Portões de Roma acaba se tornando meio enrolada em certos momentos, com acontecimentos que poderiam facilmente ter sido limados sem maiores prejuízos, como a relação de Júlio com a escrava Alexandria. Mesmo assim, o livro é um bom início para uma série cuja história realmente vai engrenar nos próximos volumes. Uma boa pedida pra quem gosta de romances históricos.

Wednesday, April 05, 2006

O Dom da Cozinha

Comer é um dos grandes prazeres da vida. Tudo bem, uma afirmação dessas não é nada surpreendente vinda de um semi-gordo (ênfase no semi) como eu, mas o fato é que pessoas sem quilinhos a mais também concordam. Tirando aquelas crianças chatas e outros poucos seres humanos incompreensíveis para os quais se alimentar nada mais é do que uma obrigação, a imensa maioria sente prazer ao saber que vai comer algo saboroso.

Só que estes pratos não surgem em passe de mágica. Existe uma ciência por trás de todos os víveres deliciosos que ansiamos por fazer a digestão. Cozinhar é, sim, uma arte. Na verdade, é mais do que uma arte, posto que ninguém consegue sobreviver por muito tempo sem comida. Por tudo isso, os cozinheiros são mais que artistas; são deuses, que merecem a nossa reverência e adoração.

Estou exagerando? Talvez. Mas vejam o meu caso. Como afirmei no início desse texto, acho comer um dos grandes prazeres da vida. Só que quem definiu as minhas habilidades e dons como ser humano (seja minha mãe, meu pai, Deus, Papai Noel ou quem quer que seja) simplesmente esqueceu de colocar “dotes culinários” na lista. Como resultado, minha habilidade na cozinha resume-se a abrir a geladeira com a velocidade necessária para criar aquela expectativa sobre o que este eletrodoméstico esconde. Nada mais.

Então, o que seria de mim sem estas pessoas fabulosas que transformam pedaços de comida grotescos em objetos de desejo? Empregadas, mães, chefs de restaurante, amigos, parentes, seja o que for. Entrou na cozinha e saiu com um prato saboroso na mão, pode ter a certeza de que acaba de ganhar o meu respeito por muitos anos. E, claro, se o destino do prato for o meu estômago, já tem o meu respeito por toda a eternidade.

Ainda tem outra coisa. Todo e qualquer cozinheiro, além de um ser iluminado por colocar o prazer em paladares alheios, é uma pessoa de paciência admirável. Isso porque o tempo despendido em produzir uma refeição é, no mínimo, três vezes maior do que o tempo levado para devorá-la de forma completa.

Imaginem a cena. Um jantar em família. Irmãos, primos e sei lá mais quem vem à sua casa num domingo. Animado com aquilo, você decide cozinhar um daqueles pratos que a sua mãe lhe ensinou o segredo e que ninguém jamais conseguiu fazer igual. Vamos dizer que você passe pelo menos duas horas na cozinha, sujando a si mesmo, sujando o chão, sujando quem passa ao seu lado. Suando com o calor, desejando estar rindo e conversando junto com os outros, amaldiçoando sua mãe por ter lhe ensinado o segredo desse prato.

Até que a refeição fica pronta. E toda a animação volta quando se enxerga aquele prato esteticamente lindo e – provavelmente – saboroso. Desejoso em agradar o bando, você coloca o prato na mesa, esperando que eles saibam apreciar o esforço e a dedicação colocados ali. Só que, em menos de quinze minutos, o mesmo prato que havia sido o recipiente de tanto amor e carinho é devorado como se aquelas pessoas fossem uma horda de bárbaros que jamais comeram algo além de lebres no meio da floresta. Uma lágrima corre pelo canto do seu olho ao ver que ninguém lembrou de quem fez tudo aquilo. Em seguida, todos voltam ao que estavam fazendo antes, deixando de lado a refeição que agora parece ter sido atropelada por um tornado.

Digam-me: como não deificar uma pessoa dessas? Como não tratar um ser que se sacrifica tanto por nosso paladar como uma encarnação divina, digna da mais alta adoração? Sim, este texto é exatamente isso. Uma homenagem, uma ode aos seres superiores que são os cozinheiros. Jamais, em toda a minha existência, ousarei me comparar a uma destas criaturas. Perto deles, sou um nada.

Se você é um destes anjos sobre a Terra, este texto é para você. Se você consegue fazer algo mais do que um sanduíche de presunto, um miojo ou um cachorro-quente (cachorro-quente como eu faço, que fique bem claro, só pão e salsicha), este texto é para você. Até mais do que uma homenagem, é um agradecimento. Um muito obrigado por tornar a vida mais agradável.

Na próxima vez que alguém cozinhar para você, vá até esta pessoa e aperte a sua mão. De preferência, abrace-a entusiasticamente. Lembre-se que, se não fosse por ela, você poderia estar comendo rúcula.

O Herói Caído

Luciano não pensou duas vezes. Quando viu aquele cara com a arma apontada para o peito de Rick, ele agiu. Sempre quis salvar uma pessoa se jogando na frente da arma no momento do tiro, como os grandes heróis do cinema. Ainda melhor se fosse um amigo como Rick, pelo qual Luciano faria qualquer coisa.

Correu em direção aos dois, cuidando o homem que empunhava a arma. Foi só quando estava a uns dois metros do local que eles perceberam Luciano. Nesse exato instante, Luciano saltou entre seu amigo e o outro, gritando:

- Rick!

O homem não disparou. Na verdade, nem se mexeu enquanto Luciano pulava e caía no chão. Em seguida, apenas apontou a arma para baixo. Diretamente para a cabeça de Luciano. Apertou o gatilho duas vezes.

Voltou-se a Rick. Mirou no peito dele. Três tiros. Olhou para os dois corpos e disse:

- Heroísmo idiota.

Guardou a arma e saiu correndo pela noite.

Tuesday, April 04, 2006

HAIKAI 7

E há os que descobrem, quando a boemia vem
Que a noite pode, sim, ser uma criança

Mas que de ingênua nada tem

Saturday, April 01, 2006

Menos Um

Nunca tinham orado antes das refeições, mas a troca de olhares foi o sinal de que aquilo precisava ser feito. Deram-se as mãos e rezaram Pai Nosso e Ave Maria, duas vezes cada um, sobre a mesa já posta. Longe estava de poder ser chamada de farta, embora estivesse bem provida. Pena que a fome não chegara aos quatro integrantes da família que, ali reunida, não ocupava todos os lugares da mesa. Uma das cadeiras estava vaga e inevitável era voltar o olhar em direção a ela. Involuntariamente, enquanto as mãos lentamente levavam a refeição às bocas e o mastigar do alimento era o único inimigo do silêncio, a cadeira vazia tornava-se o destino de olhares furtivos. Fato é que nenhum dos quatro comensais, que, como já foi dito, constituíam uma família, queria mostrar ao outro que a cadeira atraía seus olhares. Por isso o olhar furtivo que já comentei. Rápido, como se fosse proibido. Mas como poderia ser de outro jeito? Quando a gente troca um móvel de lugar, já é difícil não observar o espaço vago por ele deixado. Imaginem, então, como é uma mesa de refeições ocupada em sua totalidade durante treze anos subitamente encontrando-se incompleta. Menos um prato, menos um copo, menos dois talheres. Menos uma pessoa. A mesa de jantar, que durante anos era o único lugar em que os cinco conseguiam se reunir como uma verdadeira família, sentia a falta do garoto que ocupava aquele lugar. Nenhum imaginava que seria tão difícil este momento. Não era a primeira vez que se alimentavam desde o acidente que tirou a vida do filho e irmão. Era, porém, a primeira vez que sentavam à mesa novamente. As mãos realizavam gestos autômatos, como se comer e passar aquele curto período de tempo ao lado de quem se ama fosse uma obrigação. Verdade que cada um reagiu ao acidente de forma diferente, mas todos sofreram o impacto e sabiam que o vazio da cadeira, de certa forma, representava o vazio sentido dentro de todos. O corpo humano age de maneiras estranhas, isso se sabe com certeza. No caso de nossos quatro personagens, a forma que o interior deles encontrou para superar o vazio foi preenchê-lo com outras coisas. Preenchê-lo com angústia, com dor, com sofrimento. Preenchê-lo com lágrimas. Especialmente com lágrimas. Lágrimas que a família já exibira em grandes quantidades nos últimos dias, mas que pareciam intermináveis. No entanto, os quatro seguravam elas, sabendo que a hora do almoço não era o melhor momento para chorar. Eram os quatro, em silêncio, comendo lentamente, sem olhar uns para os outros. Mas o olhar ia para a cadeira vazia com mais freqüência que eles pretendiam e, a cada vez que isto acontecia, a energia do corpo inteiro corria diretamente para os olhos, enchendo-os daquele líquido mágico e purificador conhecido como lágrima. O espaço vazio da cadeira parecia oprimir o peito de cada, impedindo-os de respirar e, como se pode imaginar, engolir o restante da refeição. Uma atitude precisava ser tomada e, como era de se esperar de um verdadeiro chefe de família, o pai levantou-se, segurou firmemente a cadeira vazia e levou-a até o jardim. Retornou à mesa. Ninguém comentou nada, mas dirigiram a ele olhares de aprovação. Baixaram a cabeça novamente e voltaram às tentativas de se alimentar. Pouco depois, perceberam que a cadeira não passava de um objeto. As lágrimas voltaram a verter.