Viagem Literária
Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.
About Me
- Name: Silvio Pilau
- Location: Porto Alegre, RS, Brazil
Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.
Friday, March 30, 2007
Wednesday, March 28, 2007
A Entrevista
- Sente-se.
- Ok.
- Então, sr. Leão. Posso chamá-lo de Carlos?
- Se quiser, pode. Mas por que você me chamaria de Carlos?
- Não é seu nome?
- Não.
- Mas diz aqui no currículo que você enviou que...
- Eu não enviei currículo nenhum.
- Como não? Você não está aqui pra entrevista de emprego?
- Não. Nem sabia que estavam entrevistando. Na verdade, nem sei o que essa empresa faz.
- Então o que você faz aqui? Por que estava sentado ali na recepção?
- Eu vim esperar o Adriano, a gente combinou de almoçar juntos.
- E por que não disse isso antes?
- E por que não perguntou isso antes?
- Porque eu chamei você, disse pra sentar e você não falou nada. Por que veio comigo até a sala?
- Achei que você queria bater um papo. Já li as revistas da recepção, então topei. Matar o tempo até o Adriano sair.
- Então você não está aqui pelo emprego? É isso?
- Isso depende.
- Depende do quê, criatura do céu? Você veio aqui pra quê?
- Pra comer.
- Quê?
- Já disse, vim pra almoçar com o Adriano, o meu amigo. Mas se você está oferecendo emprego, eu aceito.
- Não estou oferecendo emprego!
- Então por que me chamou aqui?
- Não te chamei! Quer dizer... Chamei, mas porque achei que você estava aqui pela entrevista de emprego.
- Quanto?
- Quanto o quê?
- Quanto vocês me pagam pra eu trabalhar aqui? Nunca vi uma oferta de emprego sem falarem do salário.
- Sr. Leão, Carlos, ou seja lá qual nome a pobre da sua mãe escolheu pra você. Não tem nenhuma oferta. Estou entrevistando pessoas pro cargo de gerente e você não veio pela entrevista. Então, cai fora.
- Já fui gerente.
- Como assim?
- Já fui gerente de banco e de lojas de eletrodomésticos. Posso começar amanhã, se quiser.
- Não vou contratar você.
- Por que não? Sou talentoso e estou desempregado.
- Se é talentoso, por que está desempregado?
- Porque as pessoas dão emprego pra gente que nem sabe com que está falando.
- Isso foi uma indireta?
- O “in” é por sua conta.
- Olha aqui, meu amigo, você está me desrespeitando. Por favor, se retire.
- Não vai me contratar?
- Por que eu iria te contratar?
- Porque sou talentoso e estou desempregado, já disse.
- Eu não faço questão de ter você aqui. Se você quer trabalhar, ligue e marque um horário para entrevista que falamos sobre isso.
- Por que ligar pra marcar um horário se já estou aqui?
- Porque você não veio pelo emprego. Veio pra almoçar com o Adílson e...
- Adriano.
- Adriano, que seja! Quando quiser trabalhar aqui, marque um horário que a gente conversa.
- Já estamos conversando, sem ter marcado horário.
- Isso não é conversa!
- Não? É uma viagem a dois pro Havaí, então?
- Digo... Claro que é uma conversa, mas não sobre emprego.
- É só a gente falar sobre o emprego.
- Agora não dá mais.
- Por que não? Só mudar o assunto. As pessoas fazem isso a toda hora.
- De qualquer forma, por que você iria querer trabalhar aqui?
- Cara, presta atenção: sou talentoso e estou desempregado.
- Talentoso em quê?
- Cara, você é burro. Já disse que fui gerente.
- Burro? Não vou admitir que me chamem assim. A conversa está encerrada.
- Ah, era mesmo uma conversa, então.
- Sim, era uma conversa. Não é mais. Adeus.
- Tá, estou saindo, não precisa empurrar.
- Saia já daqui.
- Pode pelo menos chamar o Adriano pra mim?
- Que Adriano? Aqui não tem Adriano.
- Como? Não é o Escritório Fedrizzi e Silva?
- Não! Claro que não! É Belizzi. Belizzi!
- Putz, errei o lugar. Foi mal, então.
- Adeus.
- Tchau. Até segunda.
- Ok.
- Então, sr. Leão. Posso chamá-lo de Carlos?
- Se quiser, pode. Mas por que você me chamaria de Carlos?
- Não é seu nome?
- Não.
- Mas diz aqui no currículo que você enviou que...
- Eu não enviei currículo nenhum.
- Como não? Você não está aqui pra entrevista de emprego?
- Não. Nem sabia que estavam entrevistando. Na verdade, nem sei o que essa empresa faz.
- Então o que você faz aqui? Por que estava sentado ali na recepção?
- Eu vim esperar o Adriano, a gente combinou de almoçar juntos.
- E por que não disse isso antes?
- E por que não perguntou isso antes?
- Porque eu chamei você, disse pra sentar e você não falou nada. Por que veio comigo até a sala?
- Achei que você queria bater um papo. Já li as revistas da recepção, então topei. Matar o tempo até o Adriano sair.
- Então você não está aqui pelo emprego? É isso?
- Isso depende.
- Depende do quê, criatura do céu? Você veio aqui pra quê?
- Pra comer.
- Quê?
- Já disse, vim pra almoçar com o Adriano, o meu amigo. Mas se você está oferecendo emprego, eu aceito.
- Não estou oferecendo emprego!
- Então por que me chamou aqui?
- Não te chamei! Quer dizer... Chamei, mas porque achei que você estava aqui pela entrevista de emprego.
- Quanto?
- Quanto o quê?
- Quanto vocês me pagam pra eu trabalhar aqui? Nunca vi uma oferta de emprego sem falarem do salário.
- Sr. Leão, Carlos, ou seja lá qual nome a pobre da sua mãe escolheu pra você. Não tem nenhuma oferta. Estou entrevistando pessoas pro cargo de gerente e você não veio pela entrevista. Então, cai fora.
- Já fui gerente.
- Como assim?
- Já fui gerente de banco e de lojas de eletrodomésticos. Posso começar amanhã, se quiser.
- Não vou contratar você.
- Por que não? Sou talentoso e estou desempregado.
- Se é talentoso, por que está desempregado?
- Porque as pessoas dão emprego pra gente que nem sabe com que está falando.
- Isso foi uma indireta?
- O “in” é por sua conta.
- Olha aqui, meu amigo, você está me desrespeitando. Por favor, se retire.
- Não vai me contratar?
- Por que eu iria te contratar?
- Porque sou talentoso e estou desempregado, já disse.
- Eu não faço questão de ter você aqui. Se você quer trabalhar, ligue e marque um horário para entrevista que falamos sobre isso.
- Por que ligar pra marcar um horário se já estou aqui?
- Porque você não veio pelo emprego. Veio pra almoçar com o Adílson e...
- Adriano.
- Adriano, que seja! Quando quiser trabalhar aqui, marque um horário que a gente conversa.
- Já estamos conversando, sem ter marcado horário.
- Isso não é conversa!
- Não? É uma viagem a dois pro Havaí, então?
- Digo... Claro que é uma conversa, mas não sobre emprego.
- É só a gente falar sobre o emprego.
- Agora não dá mais.
- Por que não? Só mudar o assunto. As pessoas fazem isso a toda hora.
- De qualquer forma, por que você iria querer trabalhar aqui?
- Cara, presta atenção: sou talentoso e estou desempregado.
- Talentoso em quê?
- Cara, você é burro. Já disse que fui gerente.
- Burro? Não vou admitir que me chamem assim. A conversa está encerrada.
- Ah, era mesmo uma conversa, então.
- Sim, era uma conversa. Não é mais. Adeus.
- Tá, estou saindo, não precisa empurrar.
- Saia já daqui.
- Pode pelo menos chamar o Adriano pra mim?
- Que Adriano? Aqui não tem Adriano.
- Como? Não é o Escritório Fedrizzi e Silva?
- Não! Claro que não! É Belizzi. Belizzi!
- Putz, errei o lugar. Foi mal, então.
- Adeus.
- Tchau. Até segunda.
Tuesday, March 27, 2007
MUSASHI
Musashi é a obra literária mais vendida em todos os tempos no Japão. Contando a história de Miyamoto Musashi, o maior samurai que já existiu, os dois volumes da obra de Eiji Yoshikawa já venderam mais de 120 milhões de cópias. São dois bons livros, sem dúvida. Com uma estrutura folhetinesca, com capítulos pequenos e repletos de diálogos, Musashi não é difícil de ler. Apesar do tamanho assustador – são mais de 1800 páginas –, não é uma leitura pesada, ainda que se torne cansativa em diversos momentos, devido ao grande número de personagens e subtramas paralelas que pouco acrescentam à história, exceto em número de páginas. Yoshikawa certamente poderia ter condensado seu trabalho em apenas um volume, focando-se na trajetória de Musashi, seu aprendizado e na rivalidade com Sasaki Kojiro, sem dúvida os pontos centrais e mais interessantes da obra. Como ficou, Musashi é uma leitura válida, por trazer diversas reflexões interessantes, alguns personagens memoráveis e um bom retrato do Japão da época, mas acaba cansando, com uma história lenta e repetitiva.
Friday, March 23, 2007
ADRENALINA
Tá, Adrenalina (Crank) é um filme completamente idiota. Os quase noventa minutos de filme se baseiam exclusivamente na idéia do cara que precisa se manter em movimento para não morrer. É um ponto de partida interessante e mais do que apropriado para um filme de ação descerebrada. Por isso, quem vai assistir Adrenalina deve saber o que esperar. O filme começa de maneira caótica, com exageros grotescos por parte dos diretores estreantes Mark Neveldine e Brian Taylor. Todos truques técnicos de câmera e edição estão presentes, mas, depois da ton(r)tura inicial, a produção acaba encontrando seu foco e divertindo. O grande mérito é jamais levar-se a sério. Assim que assume seu tom debochado e brincalhão, torna-se mais tranqüilo e até prazeroso acompanhar as maluquices engembradas pelos cineastas. Há momentos realmente engraçados, como a cena de sexo em Chinatown, e Jason Statham continua com ótima presença em cena, combinando um sarcasmo devastador com o lado brutamontes que já se tornou sua característica. Adrenalina é um filme exagerado, idiota e dispensável. No entanto, mais engraçado que a maioria das comédias por aí.
Nota: 6.0
Tuesday, March 20, 2007
Minha Guerra
Se é guerra que querem
É guerra que lhes darei
Mas sem balas que ferem
Sem sangue, à minha lei
Para cada tiro disparado
Um beijo como resposta
Um abraço bem apertado
Por cada vida em aposta
Às lágrimas, a risada
À cada bomba, a decência
O elogio contra a porrada
A paz frente à violência
Minha guerra tem início
Este é o meu arsenal
E vencer não é difícil:
É só alguém fazer igual.
É guerra que lhes darei
Mas sem balas que ferem
Sem sangue, à minha lei
Para cada tiro disparado
Um beijo como resposta
Um abraço bem apertado
Por cada vida em aposta
Às lágrimas, a risada
À cada bomba, a decência
O elogio contra a porrada
A paz frente à violência
Minha guerra tem início
Este é o meu arsenal
E vencer não é difícil:
É só alguém fazer igual.
O ILUSIONISTA
Ano passado, dois filmes chegaram aos cinemas tratando do mundo da mágica: O Grande Truque e O Ilusionista. Apesar da boa recepção de público e crítica a ambos, o primeiro é muito mais filme do que o segundo, apesar de também contar com sua dose de problemas. O Ilusionista tem, como grande trunfo, a parte técnica. A trilha sonora de Phillip Glass é excelente e completamente de acordo com a obra e a fotografia é um espetáculo à parte, com cenas filmadas como fotos antigas, em tons de sépia e oscuras pelos cantos. Edward Norton, como sempre, também se destaca, com boa presença de cena, apesar do roteiro não lhe dar espaço para desenvolver o personagem. Por outro lado, Paul Giamatti cria o personagem mais real da produção, com seu policial preso entre a ambição pelo poder, o senso de justiça e até traços de invejas. E este é um dos principais problemas de O Ilusionista: o coadjuvante é muito mais interessante que o protagonista. O espectador acaba nem dando bola para o que acontece com Eisenhein, isso também graças a um romance completamente sem graça e clichê com a personagem de Jessica Biel. Além disso, o roteirista e diretor Neil Burger acrescenta de maneira desnecessária toques sobrenaturais à história, uma subtrama que poderia ser bem aproveitada se fosse explorado o obscuro passado de Eisenhein. Da forma que ficou, parece mais que o cineasta não soube como ou teve preguiça de explicar os eventos do filme. O roteiro, aliás, também se perde completamente perto do final, com uma reviravolta forçada demais e até sem lógica, que não se sustenta diante de uma revisão do filme. Uma pena, pois sou fã de Norton e Giamatti.
Nota: 5.5
Monday, March 19, 2007
Tuesday, March 13, 2007
Caravana da Indignação
Há um fenômeno interessante surgindo entre jovens brasileiros. Não se trata de mais um Ronaldo, mas do número cada vez maior de espinhentos que decide largar sua terra e família por um tempo e tentar a vida em países de primeiro mundo. Hoje, é praticamente impossível não conhecer alguém que já passou um tempo fora ou lá se encontra agora.
Alguns podem tomar esse fenômeno como simples inquietação da juventude, a necessidade de conhecer mais, experimentar coisas novas e se divertir. Claro que esta explicação tem sua parcela de verdade, mas é ingenuidade acreditar que é a única justificativa para essa numerosa debandada.
Violência, corrupção, desemprego. Estes parecem ser os verdadeiros artífices por trás dessa escolha. A idéia geral, ainda que não gritada por quem nos deixa, é a de que simplesmente não dá mais para ficar no Brasil. Algo do tipo: “Se o próprio país não se leva mais a sério, então vou atrás de outro que o faça”.
As constantes decepções do povo brasileiro com seus governantes, a impunidade e a cada vez mais iminente derrota na guerra contra a violência têm se tornado uma herança que ninguém quer receber. Nosso nome está na lista do testamento como beneficiário, mas qual o custo? Os atuais donos da fortuna chamada Brasil deturparam-na tanto que a nossa geração não faz a menor questão de possuí-la.
O resultado é a caravana da juventude partindo rumo ao primeiro mundo atrás de algo melhor. Se em décadas anteriores, a geração mais jovem saía às ruas para protestar, pintando a cara e reclamando seus direitos, a gurizada atual simplesmente abana a mão para tudo isso. Mais do que desistência ou desolação, tal atitude é um protesto, mas um protesto silencioso. A mochila nas costas e o até logo são os principais gritos de indignação de nossa juventude.
Lá não tem assalto. Lá dá pra ganhar dinheiro. Lá as coisas realmente funcionam. É isso o que os jovens estão dizendo a quem está ouvindo. O Brasil está perdendo para si mesmo. A falta de esperança em relação ao país é desoladora. É preocupante. O país do futuro está perdendo seu futuro.
Enquanto isso, vamos levando aqui. Levando na bunda enquanto ouvimos as risadas de escárnio dos políticos às nossas – poucas – reclamações, belos sorrisos com dentes de ouro pagos de nossos próprios bolsos. Vamos colocando vidros escuros nos carros, saindo na rua sem qualquer coisa de valiosa para não nos tornarmos mais uma marca de giz no chão.
Alguns podem tomar esse fenômeno como simples inquietação da juventude, a necessidade de conhecer mais, experimentar coisas novas e se divertir. Claro que esta explicação tem sua parcela de verdade, mas é ingenuidade acreditar que é a única justificativa para essa numerosa debandada.
Violência, corrupção, desemprego. Estes parecem ser os verdadeiros artífices por trás dessa escolha. A idéia geral, ainda que não gritada por quem nos deixa, é a de que simplesmente não dá mais para ficar no Brasil. Algo do tipo: “Se o próprio país não se leva mais a sério, então vou atrás de outro que o faça”.
As constantes decepções do povo brasileiro com seus governantes, a impunidade e a cada vez mais iminente derrota na guerra contra a violência têm se tornado uma herança que ninguém quer receber. Nosso nome está na lista do testamento como beneficiário, mas qual o custo? Os atuais donos da fortuna chamada Brasil deturparam-na tanto que a nossa geração não faz a menor questão de possuí-la.
O resultado é a caravana da juventude partindo rumo ao primeiro mundo atrás de algo melhor. Se em décadas anteriores, a geração mais jovem saía às ruas para protestar, pintando a cara e reclamando seus direitos, a gurizada atual simplesmente abana a mão para tudo isso. Mais do que desistência ou desolação, tal atitude é um protesto, mas um protesto silencioso. A mochila nas costas e o até logo são os principais gritos de indignação de nossa juventude.
Lá não tem assalto. Lá dá pra ganhar dinheiro. Lá as coisas realmente funcionam. É isso o que os jovens estão dizendo a quem está ouvindo. O Brasil está perdendo para si mesmo. A falta de esperança em relação ao país é desoladora. É preocupante. O país do futuro está perdendo seu futuro.
Enquanto isso, vamos levando aqui. Levando na bunda enquanto ouvimos as risadas de escárnio dos políticos às nossas – poucas – reclamações, belos sorrisos com dentes de ouro pagos de nossos próprios bolsos. Vamos colocando vidros escuros nos carros, saindo na rua sem qualquer coisa de valiosa para não nos tornarmos mais uma marca de giz no chão.
Vamos levando aqui e eles vão levando nossa grana, nossas esperanças. Nossa juventude. Alguém pode culpar os nossos imberbes aventureiros? Se não dá pra escapar de se tornar uma estatística, que seja a dos jovens em busca de grana lá fora, não das vítimas da violência aqui dentro. Se for pra ouvir mentiras e desculpas, que seja em outra língua. Pelo menos é mais difícil de entender.
Convicções
- Henrique, você realmente não acredita em Deus?
- Não, não acredito.
Henrique já perdera as contas de quantas vezes entrara nessa discussão. Por que era tão difícil para as pessoas respeitarem a sua opinião? Por que, sempre que o assunto era levantado, alguém tentava convencê-lo do contrário, em um colóquio que terminaria no mesmo lugar?
Estava num bar perto da sua casa, tomando cerveja com Marina, uma amiga de longa data, e Carla, amiga de Marina e recém-apresentada a Henrique. Foi Carla quem fez a pergunta a ele, que não estava nem um pouco disposto a entrar mais uma vez nesse assunto.
- Mas por quê? Como? – insistiu Carla. – Você realmente acredita que tudo isso aqui veio do nada?
- Olha, pra falar a verdade, não sei de onde veio. Acho que ninguém sabe e talvez jamais saberemos. Mas acreditar que um cara lá em cima, em um momento de tédio, decidiu criar o mundo, é uma solução simples e fácil demais, não acha?
- Não, não acho. Não posso crer que ainda existem pessoas que pensam dessa forma. Eu olho à minha volta e acho inevitável chegar à conclusão de que tudo foi concebido por alguma inteligência superior.
- E quem concebeu essa inteligência superior? – indagou Henrique, de forma um tanto apática, como se já tivesse seguido esse mesmo roteiro milhares de vezes antes. – Se tudo foi concebido por uma inteligência superior, de onde surgiu essa inteligência superior?
- Desde sempre. Deus é eterno, sempre existiu. Não surgiu em uma explosão de átomos ou sei lá o quê.
- Pois se você consegue aceitar o fato que Deus sempre existiu, deve aceitar o fato de que alguma coisa, talvez um átomo, como você mesmo colocou, possa ter existido desde sempre.
Marina apenas observava a conversa de Marina e Henrique. Ela própria já havia acompanhado o amigo falar sobre isso diversas vezes, inclusive de forma muito mais apaixonada do que defendia agora a sua opinião.
Enquanto isso, Carla continuava tentando convencer Henrique de que seu ponto de vista era o correto.
- E a morte, então? Se você acha que não existe uma força maior, é porque tudo acaba no exato instante em que perdemos a vida.
- Talvez.
- Mas, então, qual o sentido de tudo isso? Por que estamos aqui se este não é apenas um estágio, uma passagem? – perguntava Carla.
- Eu não sei, Carla. Essa é a questão. Nem você sabe. Tudo isto que você está falando se baseia em fé, em crença. Ninguém tem fatos concretos sobre isso. O que eu sei é que não existe Deus lá no céu. Não existe um São Pedro lhe esperando na entrada do Paraíso.
- Isso do São Pedro no portão todo mundo sabe que é brincadeira. Mas e os milagres que acontecem ao redor do mundo? Todos estes acontecimentos que apenas são explicados através da fé?
- Isso não é verdade. Cada vez mais surgem explicações racionais para estes eventos. O poder da mente humana é incomensurável. É tão poderosa que conseguiu criar um personagem que conseguisse tornar a vida de todos mais fácil. No caso, Deus.
Carla balançou a cabeça. Olhava para Marina, como se pedindo ajuda. Esta apenas dava de ombros, como se dizendo que esta briga não era com ela.
- Não estou acreditando nisso – continuou Carla. – Você é cético demais.
Henrique tomou mais um gole de sua cerveja, sem dizer nada.
- E Jesus? Vai dizer que também não existiu?
- Não vou. Acho que ele existiu, sim. E foi um grande homem. Um líder e um ser evoluído. Mas filho de Deus... Nessa eu não caio.
- Mas e tudo o que ele fez? Você que...
Pela primeira vez, Marina se manifestou, interrompendo a conversa.
- Ai, gente. Sei que é um assunto interessante e sempre válido pra discussões. Mas eu te conheço, Henrique. E eu te conheço, Carla. Vocês vão ficar nessa por um bom tempo e nenhum vai mudar de opinião. Então, podemos falar sobre outra coisa?
Henrique e Carla olharam para Marina. Ele, com um olhar, agradecia à amiga pela intromissão. Já Carla gostaria de continuar, mas cedeu aos apelos da amiga.
- Marina está certa. – falou Henrique. – Eu respeito a sua opinião, Carla. Acho que é um direito seu acreditar e eu não tenho nada a ver com isso. Mas eu não acredito em Deus. Para mim, ele não existe e não faz a menor diferença na minha vida.
O trio continuou conversando, em meio às cervejas e petiscos, por um bom tempo e sobre os mais diversos temas.
À noite, já em casa, Henrique voltou a pensar no assunto. Enquanto deitava na cama, tentava lembrar de quantas vezes já tivera aquela discussão. Não poderia dizer com precisão. E, ao contrário do que seus debatedores pretendiam, a cada vez ele saía mais convicto de suas posições.
Apagou a luz do abajur ao lado e virou-se para dormir. Pensou mais um pouco e, com a mão direita, fez o sinal da cruz.
Por via das dúvidas, pensou ele.