Viagem Literária
Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.
About Me
- Name: Silvio Pilau
- Location: Porto Alegre, RS, Brazil
Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.
Friday, September 30, 2005
Tuesday, September 27, 2005
Ao Seu Tempo
Aos 76 anos, Geraldo não era uma figura de chamar a atenção. Apesar de sua imensa confiança e segurança pessoal, possuía estatura pequena e fazia gestos mínimos, costumando passar despercebido em qualquer local com razoável número de pessoas. Apaixonado por cinema, Geraldo aguardava na fila a sua vez de entrar na sala. Junto a ele, que gostava de passar seu tempo observando tudo o que acontecia ao redor, um grupo de jovens barulhentos e dominados por irrequieta vivacidade discutia sobre os mais diversos assuntos.
Geraldo acompanha com voyeurístico interesse as explanações do bando. A certa altura, os jovens chegaram a um impasse a respeito de determinado tema.
- Pergunta pra esse senhor aí na sua frente – disse um deles, apontando para a diminuta figura de Geraldo.
Ao contrário do que o jovem pensava, Geraldo escutou as palavras. Não sentiu-se irado com a falta de respeito. Simplesmente virou-se para trás, calmamente, e fixou brevemente seus olhos nos do rapaz.
Naquele breve e fugaz momento, Geraldo lembrou de toda a sua vida, completa e bem vivida, aproveitada ao máximo por alguém que possuía a certeza de ainda ter muita coisa a oferecer ao mundo. Alguém que chegou a conclusão de que a vida só é curta para aqueles que não sabem aproveitá-la.
Com os olhos ainda fixos nos do rapaz, reviveu em sua mente mais uma vez o insensato comentário:
07/03/05
Saturday, September 24, 2005
Filmes de agosto
Com atraso, os filmes que vi em agosto.
Quero Ficar com Polly (Along Came Polly) – EUA, 2004 **1/2
De John Hamburg. Com Ben Stiller, Jennifer Aniston, Phillip Seymour Hoffman, Debra Messing, Alec Baldwin e Hank Azaria.
O Vôo da Fênix (The Flight of the Phoenix) – EUA, 2004 *
De John Moore. Com Dennis Quaid, Giovanni Ribisi, Tyrese Gibbons, Miranda Otto e Hugh Laurie.
Nada funciona neste filme. O roteiro é uma bagunça, a direção desleixada e as atuações canhestras. Dennis Quaid enterra seus recentes bons papéis com este personagem raso em um filme com situações incompreensíveis e de fazer rir. Salva-se apenas o mistério em torno do personagem de Ribisi.
O Lenhador (The Woodsman) – EUA, 2004 *****
De Nicole Kassel. Com Kevin Bacon, Kyra Sedgwick, David Alan Grier, Eve, Benjamin Bratt e Mos Def.
A maior surpresa em O Lenhador é a extraordinária performance de Kevin Bacon, que assume o complexo personagem de forma sensacional e brilha em diversos momentos. Mas o filme tem outras qualidades. A diretora trata o difícil tema com cuidado, construindo uma obra séria que foca sempre no conflito interior do personagem principal. O resultado final é um belíssimo retrato de uma mente perturbada.
A Fantástica Fábrica de Chocolates (Charlie and the Chocolate Factory) – EUA, 2005 *****
De Tim Burton. Com Johnny Depp, Freddie Highmore, David Kelly e Helena Bonhan Carter.
Um espetáculo com o toque único de Tim Burton, A Fantástica Fábrica de Chocolates é um magnífico exercício de criatividade. Com um visual de encher os olhos, Burton conta uma fábula para adultos, recheada de humor negro e situações estranhas. Johnny Depp, como sempre, está perfeito no papel de Wonka, e é centro deste filme diferente, surreal e absolutamente maravilhoso.
Sin City – A Cidade do Pecado (Sin City) – EUA, 2005 *****
De Robert Rodriguez e Frank Miller. Com Mickey Rourke, Bruce Willis, Clive Owen, Benicio Del Toro, Jessica Alba, Rosario Dawson, Elijah Wood, Nick Stahl, Rutger Hauer, Michael Madsen, Brittany Murphy, Michael Clarke Duncan e Josh Hartnett.
A transposição da obra-prima dos quadrinhos de Frank Miller para os cinemas encontrou o diretor ideal em Robert Rodriguez. O cineasta recriou de forma brilhante o mundo de Miller, com uma técnica inovadora e muito talento. O resultado é um filme deslumbrante em termos visuais, que narra três histórias sem perder o nível. Grandes personagens, atuações e diálogos inesquecíveis fecham o pacote, construindo um dos melhores filmes do ano.
Kung Fu Futebol Clube (Siu lam juk kau) – Hong Kong/China, 2001 ***
De Stephen Chow. Com Stephen Chow, Vicki Zhao, Man Tag Ng e Yin Tse.
Quem ainda não tinha visto este filme pela internet agora tem a chance. Mais conhecido como Shaolin Soccer, a obra tem seus bons momentos, mas não é tudo o que foi propagado. Os efeitos especiais são ótimos e algumas sacadas denotam brilhantismo, mas as situações cômicas parecem forçadas em várias ocasiões. Ainda sim, é uma boa pedida.
Vozes Inocentes (Voces Inocentes) – México, 2004 *****
De Luis Mandoki. Com Carlos Padilla, Leonor Varela, Xuna Primus e Gustavo Muñoz.
Mais um daqueles filmes sensacionais que quase ninguém vai ver. Uma pena, pois Vozes Inocentes consegue aliar forte conteúdo social com uma narrativa agradável e fácil de se assistir. Méritos do diretor Mandoki, que jamais deixa o ritmo cair e encontra um protagonista perfeito no jovem Carlos Padilla. Emocionante, engraçado e relevante.
A Ilha (The Island) – EUA, 2005 ***1/2
De Michael Bay. Com Ewan McGregor, Scarlett Johansson, Sean Bean, Steve Buscemi, Djimon Honsou e Michael Clarke Duncan.
Para resumir em uma frase, A Ilha é um filme que caiu nas mãos do diretor errado. A excelente premissa foi transformada em cenas de ação dispensáveis por Michael Bay, prejudicando o resultado final de uma obra que poderia ser uma grande ficção-científica. O resultado final é positivo, mas fica a sensação de que poderia ter sido muito mais, também pelo fato de desperdiçar o imenso potencial artístico dos protagonistas.
As Neves do Kilimanjaro (The Snows of Kilimanjaro) – EUA, 1952 *
De Henry King. Com Gregory Peck, Ava Gardner, Susan Hayward e Leo G. Carroll.
Terrível adaptação da obra de Ernest Hemingway. Sem ritmo algum, o filme parece ter sido feito em casa, com efeitos especiais toscos (mesmo para a época) e uma edição que deixa a desejar. A trama não anda e os personagens são ralos. Nem a beleza de Ava Gardner salva As Neves do Kilimanjaro do desastre.
Penetras Bons de Bico (Wedding Crashers) – EUA, 2005 ***1/2
De David Dobkin. Com Owen Wilson, Vince Vaughn, Rachel McAdams, Christopher Walken e Isla Fisher.
Com ótima química entre os protagonistas, Penetras Bons de Bico é uma bela surpresa. Uma comédia que consegue fazer o espectador rir em diversos momentos, tanto pelo roteiro quanto pelas atuações (especialmente o enérgico Vaughn). A obra perde um pouco do vigor quando troca o lado engraçado pelo romance, mas é, indiscutivelmente, uma das melhores comédias dos últimos anos.
P.S.: apaixonei-me por Rachel McAdams.
Violação de Privacidade (The Final Cut) – Canadá, 2004 ***
De Omar Naim. Com Robin Williams, Mira Sorvino, James Caviezel e Mimi Kuzyk.
Outra boa idéia que poderia ter rendido bem mais. O tema central é original e com muitas possibilidades, mas o roteiro se perde em subtramas desnecessárias e pouco atraentes. Robin Williams, porém, destaca-se mais uma vez, construindo um personagem convincente e pouco comum em sua filmografia.
Jogos Mortais (Saw) – EUA, 2004 **1/2
De James Wan. Com Cary Elwes, Leigh Wannell, Danny Glover, Monica Potter e Dina Meyer.
Um dos filmes mais superestimados do ano. Jogos Mortais tem vinte minutos iniciais de pura tensão e mistério, que poderiam ter resultado em uma grande obra de suspense. Pena que o diretor tenha optado por jogar tudo fora em troca de uma caçada sem graça a um serial killer, em um roteiro cheio de furos e que apenas desce ladeira abaixo. O final traz uma surpresa interessante – ainda que pouco verossímil.
Adorável Julia (Being Julia) – Canadá/EUA/Inglaterra, 2004 ****
De István Szabó. Com Annette Bening, Michael Gambon, Jeremy Irons e Shaun Evans.
Annette Bening brilha do início ao fim nesta história contada com segurança por István Szabó. Ainda que o filme pareça se arrastar por alguns momentos, Bening carrega a obra até o grandioso final, onde ela tem aquele que é, provavelmente, o melhor momento de sua carreira. Uma verdadeira aula de interpretação de uma atriz madura em pleno domínio de sua personagem.
Tuesday, September 13, 2005
Também Morre Quem Atira
Ando a pensar se existe algo errado comigo. Tenho recebido dezenas de e-mails a respeito do tal referendo sobre as armas, enviados a mim pelas mais diversas pessoas do meu círculo de relacionamento e todos – sem exceção – defendem a liberação do porte de armas. Textos com estatísticas, cartazes, até charges estão circulando pela Internet com o objetivo único de convencer as pessoas de que a solução para a violência é colocar mais armas de fogo nas ruas.
Sinto dizer, mas não vejo dessa forma. E pareço estar sozinho nessa história. É inconcebível para mim que todos apóiem o fato de colocar uma arma na mão de cada cidadão, ou, ao menos, conceber esta atitude como correta, e vejam isso como resposta para os problemas que enfrentamos diariamente.
Sim, vou cair aqui no velho papo de que violência gera mais violência. Pode ser clichê, mas um clichê se torna clichê por ser verdade, não é? Como reagir a algum assalto sacando uma arma pode ser interpretado como o caminho correto a ser seguido? Nunca, jamais aceitarei essa como a solução ideal. Reagir, como todos já sabem, não é nem um pouco recomendável. E reagir com uma arma de fogo menos ainda.
Lamento que a humanidade, terreno fértil para o surgimento de mentes brilhantes e com idéias fabulosas, tenha inventado objeto como a arma de fogo. Algo cujo único objetivo, sua razão de ser, é causar sofrimento em outro ser humano. O surgimento das armas de fogo é uma mancha na existência humana e não compactuo com os defensores da idéia da liberação de seu uso, especialmente para o cidadão comum.
Alguém pode vir com o argumento de que eu pensaria diferente se alguém invadisse minha casa e ameaçasse minha família. Talvez sim, mas provavelmente não. Certamente ficaria indignado e afloraria em mim algum desejo de reagir, mas creio piamente que não é essa a atitude certa. E com certeza não a tomaria.
Colocar mais armas na rua não é e nunca vai ser a solução para a violência. Ou para qualquer problema. Esse é uma situação muito mais ampla, um problema estrutural de toda a sociedade. A decisão tomada por um ser humano de cometer um ato criminoso tem início, com pouquíssimas exceções, em uma necessidade, na falta de algo que a sociedade não soube suprir. A violência é uma conseqüência, não a causa.
Por isso me surpreendo ao receber tais e-mails, defendendo a liberação das armas, de pessoas letradas, inteligentes e com experiência de vida. Essas pessoas, mais do que ninguém, deveriam saber que é absolutamente inútil combater a conseqüência, o resultado de algo. Pode funcionar como um paliativo, mas não vai solucionar nada. Nada mesmo. E, no caso específico da violência, muito menos. “Olho por olho, o mundo vai ficando cego”, disse Gandhi.
OK, mas e todas aquelas estatísticas que a gente recebe, sobre como o índice de criminalidade aumentou em países que proibiram a posse de armas? Respondo a isso com um assomo de espanto, ao verificar como as pessoas são manipuláveis. Recebem informações tendenciosas, que apenas enxergam um lado da moeda, e tomam aquilo como verdade absoluta.
Algumas experiências de países favoráveis ao desarmamento foram ruins, sem dúvida. Mas outras deram excelentes resultados. O problema é que essas, por alguma razão, ninguém enxerga, ninguém divulga. A SUPERINTERESSANTE trouxe dados interessantíssimos sobre o assunto em uma edição (cujo número infelizmente não me recordo) e recomendo que todos leiam, esclarecendo bem os dois lados da situação. Recomendo também que entrem neste link: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112645.shtml. É apenas uma notícia, mas pode iluminar alguém em dúvida.
Seja como for, reafirmo a minha posição e não vou mudá-la. Não compreendo como liberar para o uso das pessoas um instrumento que serve apenas para machucar e tirar a vida de outro ser humano possa ser a solução para qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo. É uma irracionalidade quem pensa que esse problema vai ser resolvido dessa forma. Irracionalidade e, até certo ponto, egoísmo, uma vez que quem vota NÃO pensa apenas em si mesmo, em defender a sua própria pele, sem pensar que o problema, na verdade, é muito mais abrangente e atinge toda a sociedade.
Não sei porquê, mas ainda tenho um pouco de fé na raça humana. São resquícios, cada vez menores, mas creio que a bondade do ser humano pode ser restaurada quando se dá ensejo a isso. E tenho apenas uma certeza absoluta, nessa minha natureza pacifista: este encontro do que ainda temos de bom não será feito colocando uma arma na mão de cada um. Não mesmo.
Talvez eu esteja errado. Talvez eu seja um cara idiota, um ingênuo com opiniões equivocadas. Ou talvez eu seja apenas um grande sonhador, um romântico que acredita em algo que já não existe mais. Mas, nesse caso, nessa polêmica, tudo não passa de um imenso talvez. E, na dúvida, eu vou preferir sempre, indiscutivelmente, ser esse sonhador e esse romântico. Nem que seja o último.
You may say I`m a dreamer, but I`m not the only one.
John Lennon
04/08/05
Saturday, September 10, 2005
Pecado Capital
Muitas pessoas já me chamaram de preguiçoso ao longo dos meus quase 22 anos de existência. Até com certa razão, eu diria. Pela interpretação comum da palavra, eu me encaixaria perfeitamente na definição de uma pessoa preguiçosa. Não é tão fácil fazer eu me deslocar longas distâncias ou levantar do sofá para buscar o controle remoto. Meu cérebro manda as ordens para o corpo, que parece responder: “Não, agora não, sempre tudo eu. Já que tu és tão inteligente, vai lá e me deixa quieto aqui”. Não por acaso, ganhei do meu pai o apelido de Baiano. Então, analisando por essa ótica, sim, sou preguiçoso. Mas, como comprovou certa vez um alemão meio maluco, tudo é relativo.
Felizmente, minha preguiça limita-se a questões puramente físicas, como coçar a cabeça e respirar. Por outro lado, posso dizer, até com um certo orgulho, que tenho uma mente inquieta, sempre querendo saber e aprender mais. Não é raro sentir-me decepcionado ao perceber a imensurável quantidade de conhecimento que ainda não mora dentro da minha cabeça e a outra quantidade que, com certeza, jamais vai morar. Mas não me resigno por isso. É apenas um motivo para eu me informar mais, ler mais, assistir mais filmes, ouvir mais músicas, observar mais. Se existe algo de que não sofro é preguiça mental.
E aí surge a derradeira questão: é melhor ter preguiça física ou mental? Obviamente, o melhor é não sofrer de nenhuma, mas em um mundo criado em apenas seis dias (na concepção de alguns, é claro), nem tudo é perfeito. A maior parte das pessoas, salvo raras exceções, é preguiçosa de alguma forma. O problema é que, ao meu ver, a grande maioria faz a escolha errada.
Chamem-me do que quiserem, mas se eu tivesse apenas duas horas livres ao dia, passaria-as lendo um bom livro ao invés de ficar suando em uma academia. Sem hesitar. Prefiro muito mais manter uma mente ativa e bem informada do que me preocupar com o tamanho do meu bíceps ou em quantos quilos consigo levantar no supino. Se para a maioria das pessoas isso é ser preguiçoso, para mim é exatamente o contrário.
Ao meu ver, preguiçoso é quem chega em casa à noite e, ao invés de ler o jornal que não teve tempo de ler antes, deita-se no sofá para assistir à imperdível novela das oito. Preguiçoso é quem vai a uma sala de espera e, ao escolher entre uma revista de fofocas ou uma de economia, prefere a primeira opção. Preguiçoso é quem tem TV a cabo em casa e, em oposição a assistir algum dos diversos programas interessantes que ela oferece, prefere saber quem é o novo anjo daquele programinha do Pedro Bial. Não pensar, não refletir, não discutir, não contestar é um problema muito mais grave do que deixar de fazer exercícios físicos todos os dias. Isso, para mim, é a verdadeira preguiça.
É claro que o mais saudável seria fazer ambas as coisas. Eu tento e, às vezes, até consigo. Não sou um sedentário completo, jogo bola e vou na academia de vez em quando, quando minha preguiça física dá uma trégua. Mas nem por isso deixo a preguiça mental ganhar espaço. Se não foi possível eliminar as duas do meu corpo, tenho certeza de que fiz escolha certa. Entre a minha preguiça e a das pessoas que desistiram de ler esse texto lá nas primeiras linhas, sou muito mais a minha.
23/03/05
Tuesday, September 06, 2005
Uma Tarde com Erico
A temperatura amena de uma tarde de maio percorre todas as rachaduras das paredes e objetos do local, dando o tom adequado a uma agradável sessão de trabalho. Folhas de papel colocadas ao lado da máquina esboçam desenhos e anotações que fazem sentido apenas àquele homem ali sentado. Se fosse possível, a máquina estaria sorrindo. Iria começar tudo de novo, como nos dias anteriores.
O rosto benevolente do escritor contrasta com a imagem típica de um literato. Nada de longas barbas e aspecto austero, rígido. Na cabeça, já parcialmente calva, cabelos brancos oferecem um ar de experiência. Seus grandes olhos, encimados pelas grossas sobrancelhas, traduzem o que há de mais íntimo naquela inusitada figura: sua incessante curiosidade e a extremada bondade. Curvado sobre a máquina, ele espera. Aguarda a inspiração, que logo chega.
Gentil e delicadamente, a porta do porão se abre. O escritor não muda sua posição. Fato corriqueiro, aguardado. Uma mulher, procurando fazer o menor ruído possível, entra e fecha a porta. Posiciona-se com sutileza em uma poltrona próxima ao local onde o escritor se localiza. Não diz palavra. Retira seu material de tricô e entretém-se no ir e vir das agulhas e dos fios.
O único som é o da máquina que, incessantemente, passa a despejar letras, palavras e sensações na folha outrora branca. Sozinho no porão, o escritor deixa-se ser enlevado por outras pessoas, criações de sua própria mente. A cada toque, convence-se mais de que ele não cria nada. São os personagens que o carregam. Sabe que não passa de um instrumento, um intermediário para contar uma história que já existe em algum lugar, apenas esperando alguém para repassá-la.
Ocasionalmente, a mulher desvia o olhar para o escritor. O que a faz ficar sentada ali durante esse tempo, sem emitir nenhum som? Seria cumplicidade? Companheirismo? Uma necessidade íntima de simplesmente estar perto dele, mesmo nesse momento? Seria ciúme daquela máquina, recipiente de tanta atenção e amor por parte dele? Ou, quem sabe, tudo isso junto?
O fato é que continuam assim por algumas horas. Em silêncio, com exceção do ritmo constante e compassado das batidas na máquina. Ele, no momento, pertencente a um local e a uma época distantes. Ela, pertencente a ele. Ou o contrário? Será que conseguiria escrever sem a presença da mulher ao seu lado? Sem o apoio, o lastro que ela representa?
As perguntas e dúvidas aparecem para qualquer um que tome consciência da cena. Para quem vê de fora, é algo inusitado. Mas, para eles, o momento prescinde de palavras, de reflexões. Faz parte do cotidiano, de uma rotina, mas não por isso é menos especial. É único e particular. Um momento próprio daquele casal.
Ao final da tarde, a mulher guarda novamente seu material. Levanta-se e percorre o caminho em direção à porta. Ainda silente, sai do porão, voltando à casa. O escritor, novamente solitário, permanece mais alguns minutos. A máquina cessou os ruídos. Ele organiza as folhas e os objetos à sua volta. Por último, fecha novamente seu instrumento de trabalho. Antes, detém-se diante das cinco letras de seu nome, incrustado na capa da máquina de escrever.
Thursday, September 01, 2005
A Busca
Ainda não estava completamente acordado quando cheguei na agência e vi o sonho de todo publicitário diante de meus olhos. Ali, na minha mesa, como um presente caído dos céus, estava o briefing perfeito. O desejo de todo criativo. Um pedido de trabalho intocável – bem escrito, com as informações fundamentais e, o principal, liberdade total de criação. O ponto de partida para o Grand Prix de Cannes.
Ansioso, li umas sete vezes, no mínimo. Fui conversar com o atendimento, troquei algumas idéias com o diretor de arte e comecei a criar. Mal podia conter o sorriso no rosto. Enquanto começava a jogar as idéias na tela do computador, já ia ensaiando o meu discurso de agradecimento nos maiores festivais de publicidade do mundo.
Perto do meio-dia, todos os meus sonhos estavam se desfazendo. A minha vontade era de rasgar em trezentos e doce pedacinhos aquele papel na minha frente. O mesmo papel que, em alguma época daquela manhã, havia me trazido tanta esperança e alento.
Tudo porque após três horas de criação incessante (leia-se sem pausa para banheiro ou café, até porque não tomo café), tudo o que eu tinha eram alguns títulos interessantes. Nada mais. Nada de idéia genial. Nada de Grand Prix de Cannes. Nada de discursos. No máximo, um OK do cliente. E eu estava ficando desesperado.
Não fui almoçar. Não tinha condições de encarar meus colegas de agência em uma mesa cheia de comida sabendo que estava decepcionando eles. Que eu não conseguia fazer meu trabalho. Preferi ficar na empresa, pensando um pouco mais. Quando eles voltassem, eu apresentaria a idéia. A Idéia. Com “A” e “I” maiúsculos mesmo. Aquela que faria Bill Bernach ter vergonha de suas criações.
Três horas da tarde. A agência a pleno vapor, na correria comum da propaganda. Outros trabalhos acumulados na minha mesa e eu ali, na mesma. Preso por maldita sacada transcedental que teimava em se esconder de mim. A caneta em minha mão já estava destruída por mordidas. As páginas de rascunho em minha mesa mais rabiscadas que desenho de criança. E nada ainda. Neca.
Fui ao banheiro pela primeira vez ao dia. E ali, parado diante da privada, dentro daquele pequeno cômodo, expelindo algumas das impurezas do meu corpo, ela veio. Como um belo anjo prestes a fazer uma anunciação. Simplesmente apareceu na minha mente. A idéia. A sacada. Os prêmios. O reconhecimento. O sucesso.
Naquela hora, eu teria trocado a Gisele Bündchen nua e me chamando com o dedinho por aquela idéia brilhante. Era tudo o que eu queria. Nada me faria mais feliz do que aquela iluminação que tive no banheiro. Parei o trabalho urinário no meio. Saí correndo do banheiro em direção à minha mesa, derrubando dois colegas que estavam no caminho. Sentei diante do computador, em um estado de êxtase, com todo o corpo exultante de satisfação, e, na hora de digitar, nada saiu.
Sim, esqueci a idéia. Ficou perdida em algum lugar daquele exíguo trajeto de alguns metros entre o toalete e minha mesa. Não me contive. O grito que estava preso em minha garganta desde a metade da manhã saiu. Ruidoso, colérico, mas revigorante.
- POOOOOOOOOOOOORRRRRRAAAAAAAAAA!
A agência parou. Os olhares se voltaram para mim. Não dei bola. Baixei a cabeça e recomecei a pensar, tentando recobrar aquela idéia. Mas não adiantou. Nem uma pista. Ela havia sumido mesmo. Voltei ao banheiro, para ver se o local servia como fonte de inspiração, mais uma vez. De nada adiantou. Fui à copa, tomei quatro copos d’água. Meia hora depois, estava novamente urinando no banheiro. Mas, da mesma forma, o resultado foi zero.
O desespero começava a tomar conta do meu corpo. Sentia o suor grudando a roupa em minha pele. Não conseguia pensar com clareza. A idéia estava ali por perto, eu sabia. Já havia entrado em contato com ela. Mas, por alguma razão, a vadia hesitava em aparecer. O prazo do trabalho se esgotava. A contagem regressiva estava em andamento. Não me restava outra alternativa a não ser utilizar algumas das idéias fracas que eu tinha até então. Adeus, Cannes.
Ninguém na agência percebeu, mas uma lágrima escorria pelo canto do meu olho esquerdo enquanto ajeitava aquele texto comum, corriqueiro, sem a maldita idéia que simplesmente não deu mais as caras. Deveria ser uma bela imagem: um redator experiente chorando diante da tela do computador por algo que ele nunca escreveu.
Enquanto limpava a lágrima, ela voltou. Radiante, incandescente, cheia de vida. Original, criativa, bem-humorada. Pertinente, mercadológica. A idéia perfeita para o briefing perfeito. Ela voltara para mim. Antes de qualquer coisa, anotei-a no único espaço em branco restante no papel à minha frente.
Em quinze minutos, digitei furiosamente, sem prestar atenção em mais nada. Criei a melhor peça da minha vida e passei-a ao diretor de arte. Ele adorou. O diretor de criação também. Todo o pessoal da agência me cumprimentou pela sacada. A felicidade não se continha em meu corpo.
Pena que o cliente não aprovou. Fazer o quê?