WATCHMEN – O FILME (WATCHMEN)
De Zack Snyder. Com Patrick Wilson, Malin Akerman, Billy Crudup, Jackie Earle Haley, Carla Gugino e Matthew Goode.
Antes de qualquer coisa, já aviso que nunca li a graphic novel de Alan Moore e Dave Gibbons. Conheço, claro, a sua influência não somente nos quadrinhos, mas em toda a cultura pop, e sei da importância da obra. Porém, nunca a tive em minhas mãos e somente comecei a realmente descobrir quem eram o Dr. Manhattan, Rorschach e o grupo dos Vigilantes há pouco tempo, quando começaram a sair as primeiras notícias sobre Watchmen – O Filme. Assim, essa minha análise baseia-se única e exclusivamente no filme dirigido por Zack Snyder – o que não deixa de ser uma vantagem, por permite uma análise mais distanciada, fundamentada unicamente nas qualidades cinematográficas da produção.
Então, vamos em frente. Watchmen, para quem não sabe, é baseado em uma graphic novel revolucionária publicada em meados dos anos oitenta, considerada até hoje uma das maiores – se não a maior – obra do gênero. A história se passa em uma espécie de realidade alternativa, na qual os EUA venceram a Guerra do Vietnã e Richard Nixon continua presidente. Nesse cenário, os super-heróis uma vez fizeram parte do dia-a-dia da sociedade americana através dos Vigilantes, um grupo de homens e mulheres fantasiados que combatia o crime. É quando, diante da iminente guerra nuclear entre EUA e União Soviética, os antigos Vigilantes começam a ser eliminados, o que os leva a novamente se unirem para descobrir a verdade.
Dirigida por Zack Snyder, responsável pelos ótimos Madrugada dos Mortos e 300, e escrita por David Hayter e Alex Tse, a versão cinematográfica de Watchmen está longe de ser considerada um filme ruim, mas é, indiscutivelmente, uma produção terrivelmente irregular. A obra oscila de maneira ininterrupta em diversos elementos, seja no ritmo, na indecisão pelos gêneros e até no nível de qualidade das atuações. A maior impressão é a de que o trabalho de Snyder sofre do “Mal de Harry Potter” (ainda que, repito, eu não tenha lido a HQ de Moore e Gibbons): parece haver uma reverência extrema e uma necessidade absurda de ser fiel ao material original, esquecendo o fato de que se tratam de duas mídias diferentes e, portanto, nem sempre o que dá certo em uma vai dar certo em outra.
Assim, é extremamente incômodo o caráter episódico adotado pelo diretor e pelos roteiristas. Se a estrutura em flashbacks utilizada para realizar uma longa apresentação de cada personagem funcionava no original, no filme ela apenas causa sérios problemas de ritmo à narrativa. A trama em si permanece completamente parada à medida que, primeiro, o espectador conhece a história do Comediante, depois é apresentado ao passado de Manhattan, depois ao de Júpiter, e assim por diante. Parece que Watchmen é um filme dividido em capítulos dedicados a cada um dos personagens, enquanto o verdadeiro enredo a ser contado é esquecido. Com isso, o ritmo é quebrado diversas vezes, prejudicando a fluidez narrativa e, conseqüentemente, tornando Watchmen até cansativo em determinados momentos.
O enredo principal igualmente é prejudicado por essa estrutura. Como o tempo dedicado ao passado dos personagens é desnecessariamente longo, a trama envolvendo a investigação de Rorschach sobre a morte do Comediante parece realizada de maneira veloz e abrupta. O clima noir pode ser eficiente e garantir a atenção da platéia, mas os fatos descobertos e o quebra-cabeças montado pelo personagem jamais fazem muito sentido. Por exemplo, a tal da empresa da Pirâmide é citada, mas seu envolvimento nunca é detalhado – e o mesmo acontece com as outras pistas. Na realidade, o tempo oferecido à busca de Rorschach é tão pequeno que fica a impressão de ele ter descoberto duas ou três pistas e resolvido todo o caso.
E os problemas do texto de Hayter e Tse não param por aí. Provavelmente boa parte das falhas resulte da dificuldade de transformar uma obra de doze capítulos em um filme de pouco mais de duas horas e meia, mas ainda assim são pontos que prejudicam a apreciação de Watchmen. Um destes casos concerne a indignação da população com os Vigilantes, o que acaba levando à ilegalidade de suas ações. O roteiro não deixa claro ao espectador as razões que despertaram o ódio do povo, deixando o assunto solto em meio à obra. Além disso, diversas outras questões permanecem sem resposta ao público não-familiarizado com a obra de Moore e Gibbons: por que e como a máscara de Rorschach fica mudando a figura? Que estrutura é aquela que Manhattan construiu em Marte? E por que razão? Que diabos era aquele “tigre” de Ozymandias e qual a função dele para a trama? Aliás, que diferença faz o Comediante à história? Sua morte dá partida à trama e não havia a necessidade de tanto tempo dedicado ao personagem (e o papel desempenhado por ele na revelação em Marte é previsível e tratado de maneira melodramática).
Estas são indagações que Snyder e os roteiristas colocam à platéia, mas jamais apresentam respostas. Novamente, talvez elas estejam na graphic novel, mas permanecem no ar na versão cinematográfica. O mesmo vale, por exemplo, para o final, no qual o vilão encontra disposição para contar todo o seu plano aos heróis. Tudo bem que há um toque de originalidade no fato de ele explicar tudo sem que os mocinhos possam fazer mais alguma coisa, mas não deixa de ser um dos lugares-comuns mais irritantes do cinema – ainda que o momento renda um dos melhores diálogos do filme: “Está achando que eu sou um vilão de histórias em quadrinhos?”. Os diálogos, aliás, são mais um exemplo da irregularidade de Watchmen. Eles variam entre o ótimo, como quando Manhattan fale sobre um planeta não necessitar de vida para seguir em frente, e o pavoroso: “Jon vê tudo, menos a mim”.
Por outro lado, o roteiro também acerta em diversos pontos, principalmente na visão desiludida em relação ao mundo e à natureza humana. Essas reflexões, vindas em grande parte das divagações de Manhattan e do ódio de Rorschach, são inseridas de forma orgânica à trama, e completam de maneira perfeita o visual sujo adotado por Snyder. Ao mesmo tempo, o final abraça um toque de esperança, ainda que esta venha de uma bem-vinda reflexão que leva à derradeira questão: os fins justificam os meios? Mas talvez o grande acerto de Watchmen é sua brilhante desconstrução da mitologia dos super-heróis, apresentando-os não necessariamente como protetores da paz e do bem-estar da humanidade, mas como seres até certo ponto egoístas, com seus próprios motivos e razões para desempenharem tal papel.
Se acerta nesses pontos, Snyder ainda realiza outras diversas opções questionáveis. Uma delas diz respeito à utilização de músicas bastante reconhecidas do público em momentos-chave de Watchmen. Novamente, o resultado é irregular, com tantos acertos quanto erros. Por exemplo, a escolha em colocar The Sound of Silence no funeral do Comediante dá certo pelo simples fato de ser uma música belíssima e a utilização de The Times Are A-changin’, de Bob Dylan, na maravilhosa sequência dos créditos iniciais se justifica, por retratar a mudança pela qual os personagens passam. Em contrapartida, o aproveitamento de All Along the Watchtower, de Jimi Hendrix, apenas desvia a atenção da platéia, enquanto Hallelujah de Leonard Cohen é tocada somente para a realização de uma piadinha sem graça – e que termina ainda mais apelativa com uma metáfora visual relacionada ao fogo.
Snyder também realiza uma escolha duvidosa ao insistir em exibir o pênis de Dr. Manhattan. Sim, o pênis daquele ser azulado é quase um personagem do filme (sorte que não aparece quando Manhattan vira gigante), o que me leva a crer que acontecia também na obra original. Ainda assim, por surgir também em momentos cruciais da trama, o órgão azulado acaba distraindo a platéia de forma desnecessária (na sessão em que assisti ao filme, muita gente riu disso em momentos importantes). Ao mesmo tempo, a utilização da violência e do sexo soam gratuitas e fora de propósito diante de um filme de super-heróis, mesmo tratando-se de um filme de super-heróis adulto. Tais cenas não parecem fazer parte da obra, posicionando-se novamente como meras distrações para o público.
Essa mescla de gêneros contribui de forma exponencial para a irregularidade de Watchmen. Snyder parece jamais encontra a abordagem adequado para seu filme, combinando momentos de comédia típica do trio ZAZ (a já comentada cena do fogo na nave), reflexões existencialistas, cenas que apelam unicamente para crianças (como a patética salvação das crianças no incêndio), violência extrema, fantasia (com o Manhattan “gigante”) e até instantes de semi-pornô. O resultado é uma verdadeira miscelânea que jamais encontra o tom correto, transmitindo a impressão ao espectador de que ele está assistindo a vários filmes dentro de um só – ou, ao menos, um filme que tenta amarrar gêneros diversos.
Tal questão fica muito clara no conflito entre o realismo e o lado mais fantasioso da trama. Estes dois valores antagonistas estão sempre presentes em Watchmen, como se o filme tivesse dificuldade em se definir. Snyder parece querer exagerar, mas, ao mesmo tempo, sabe que a história pede um clima mais realista, das ruas. Assim, ele mantém os pés no chão quando mostra a investigação de Rorschach ou o dia-a-dia comum dos antigos heróis, mas foge completamente desse tom quando dá aos Vigilantes força e poderes quase sobre-humanos e apresenta Richard Nixon como uma verdadeira caricatura (e com uma maquiagem horrível). A oposição entre esses dois pontos é uma constante que incomoda e jamais parece resolvida para a platéia.
Snyder, no entanto, demonstra novamente toda a sua capacidade técnica na composição dos quadros e, principalmente, na construção das cenas de ação. O cineasta tem a capacidade de utilizar a câmera lenta de forma a realçar a dramaticidade do momento, e não apenas de maneira gratuita. Assim, Watchmen conta com algumas boas – ainda que altamente estilizadas – cenas de ação, cujo impacto é realçado pelos impecáveis efeitos especiais. É o caso, por exemplo, da sequência de abertura com a morte do Comediante ou a visualmente fantástica explosão nuclear que devasta toda a cidade de Nova York. Snyder pode não ter encontrado a coesão em sua narrativa, mas o filme enche os olhos a cada momento.
Mas os altos e baixos continuam no campo das atuações. O sempre inexpressivo e nada carismático Patrick Wilson continua sem merecer qualquer atenção com Daniel, enquanto Matthew Goode e Malin Akerman seguem pela mesma escola de interpretação: o primeiro não demonstra apelo mesmo no clímax, onde poderia se esbaldar; e a segunda nada faz além de aparecer linda. Por outro lado, Billy Crudup acerta no tom de voz calmo e reflexivo de Manhatann e Jeffrey Dean Morgan aparece bem como o Comediante. Mas o maior destaque no terreno das interpretações fica mesmo por conta de Jackie Earle Haley, que brilha especialmente nos momentos em que Rorschach tira a máscara, realmente fazendo o espectador acreditar na alma atormentada do personagem.
Watchmen é, em resumo, um filme problemático, que parece cometer um erro para cada acerto. A história apresenta, sim, diversas idéias que geram reflexão, mas a obra peca pela fidelidade cega ao original, oscilando perigosamente entre os gêneros e adotando uma estrutura repleta de falhas, que não permite a narrativa fluir com naturalidade. Os fãs do trabalho de Moore e Gibbons provavelmente vão adorar a adaptação. Aos demais, como eu, resta um filme que merece aplausos pela ousadia e pelos objetivos que tenta alcançar, ainda que fique longe de atingir a maioria deles.
Nota: 5.0