Viagem Literária
Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.
About Me
- Name: Silvio Pilau
- Location: Porto Alegre, RS, Brazil
Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.
Wednesday, August 31, 2005
Maria Lúcia adentrou a nave pela primeira vez em sua vida. Deslumbrou-se por breves segundos com a imponência da Igreja antes de encontrar uma vaga em um dos últimos bancos. Apoiou os pés no genuflexório e cruzou os finos braços. Quinze minutos depois, seus grandes olhos verdes estavam fixos naquela imagem erguida sobre o altar. As palavras do padre Diógenes soavam vazias, quando isso. O ponto final da trajetória do olhar de Maria Lúcia era uma bela escultura de Jesus Cristo, onde o Salvador pendia levemente a cabeça para a direita e um filete de sangue, mais vermelho do que o verdadeiro, escorria pelo canto de sua boca feita de gesso. O Nazareno, naquela representação nada mais do que imaginativa de algo que pode ou não pode ter acontecido, estava nu, exceto por uma tanga que tapava seu sexo, e pregado em uma cruz marrom. Aquela visão do Filho de Deus com o corpo despido e, conseqüentemente, músculos enrijecidos à vista, despertou uma lascívia em Maria Lúcia. Insopitável, esse ardor e desejo espalhou-se de sua mente para suas delgadas mãos, que encontraram rapidamente o órgão que a qualificava como mulher. Nesse ponto do tempo, Maria Lúcia percebeu que aquilo que a escultura de Jesus acabara de despertar nela, ela fazia por outro. Ao seu lado, um homem robusto a fitava com concupiscência e as mãos dele faziam movimentos dentro das calças. Pela primeira vez, os olhares nada inocentes, porém silenciosos, de ambos se cruzaram. Padre Diógenes, alheio ao que ocorria nos últimos assentos do campanário, ainda que, junto aos meirinhos, fosse o único de frente às ações de Maria Lúcia e do homem, contava uma história qualquer inventada há mais de mil anos atrás. Maria Lúcia e o outro, em um acordo tácito, levantaram-se praticamente no mesmo momento. Um de cada vez, sem ruídos, adentraram o confessionário, escondendo-se da vista das dezenas de pessoas que, de alguma forma que ela não compreendia, aceitavam aquelas palavras do padre como verdades inabaláveis. O homem, ainda acostumando sua visão à escuridão do interior do confessionário, despiu Maria Lúcia em um movimento ágil, posicionando-a de costas para si. Pôs sua mão sobre a boca dela, impedindo-a de fazer sons, e, com o braço livre, liberou seu membro já ereto. Penetrou-a por trás, em movimentos constantes e nada gentis. Tentavam, dentro do possível, considerando-se as circunstâncias, agir sem barulho. Maria Lúcia o recebia dentro de si com lágrimas nos olhos, enquanto conseguia discernir as palavras do sermão do padre Diógenes, que dizia: “Sede fecundos e multiplicai-vos”. O Padre pedia, Maria Lúcia pensava. Deus pedia. Eles estavam cumprindo Sua ordem. Alguns minutos depois, Maria Lúcia conteve o grito que tentou escapar de sua garganta. O homem, fazendo o mesmo, cravou suas unhas no seio direito de Maria Lúcia, deixando uma marca que iria acompanhá-la por algum tempo. Sem trocar palavra, vestiram-se novamente. Saíram, um após o outro, sob os olhares cravejantes das poucas pessoas ali sentadas. O esforço pela discrição havia sido em vão. O silêncio não havia sido completo. Algumas senhoras mantinham olhos arregalados e mãos levadas à boca, em expressões de puro pavor. Maria Lúcia e o homem dirigiram-se à entrada da Igreja. Primeiro ele, depois ela, aspergiram água benta nas mãos, na concepção de todos ali sentados, marcadas pelo pecado. Ele saiu. Ela ainda voltou, com a igreja em silêncio sepulcral. Olhou para o padre e para a imagem do Cristo seminu exposta acima da cabeça de todos. Indiferente, Maria Lúcia ajoelhou-se. Baixou a cabeça e fez o sinal da cruz, três vezes. Ergueu novamente o olhar, deu uma risada e virou as costas, partindo.
Tuesday, August 30, 2005
Sin City
SIN CITY – A CIDADE DO PECADO (SIN CITY) *****
De Frank Miller e Robert Rodriguez. Com Bruce Willis, Mickey Rourke, Clive Owen, Benicio Del Toro, Nick Stahl, Rutger Hauer, Carla Gugino, Jessica Alba, Brittany Murphy, Rosario Dawson, Michael Clarke Duncan, Powers Boothe, Elijah Wood, Devon Aoki, Michael Madsen, Josh Hartnett e Jaime King.
Silvio Pilau – 15/08/05
Robert Rodriguez é um cara que parece ter duas personalidades. Um dos ícones do cinema independente norte-americano, o diretor divide seus trabalhos em dois temas absolutamente distintos, com pouco – ou quase nada – a ver um com o outro. Por um lado, há o Robert Rodriguez criança, aquele cineasta responsável por aventuras infantis como a série Pequenos Espiões e As Aventuras de Sharkboy e Lavagirl em 3D. Pelo outro lado, encontramos o Robert Rodriguez adulto, criador de obras como Um Drink no Inferno, A Balada do Pistoleiro e Era uma Vez no México, onde a violência é parte fundamental da narrativa. Sin City, o estonteante novo trabalho do diretor, encaixa-se nessa segunda categoria.
Baseado na graphic novel de Frank Miller, o filme conta três histórias passadas em Basin City, uma cidade dominada pelo crime, corrupção e habitada por pessoas de moral, no mínimo, duvidosa (não, não estou falando de Brasília). A primeira trama é sobre um policial que salva uma criança e acaba desenvolvendo uma ligação especial com ela ao longo dos anos, tentando protegê-la a qualquer custo; na segunda história, acompanhamos a vingança de um renegado da sociedade, após o assassinato de uma prostituta em sua própria cama; e, por último, vemos o surgimento de uma sangrenta batalha, desencadeada com a morte de um policial espancador de mulheres.
Sin City é a mais fiel adaptação de uma história em quadrinhos para os cinemas. Na verdade, pode até ser um equívoco chamar o filme de adaptação. Sin City é mais uma mera recriação em outra mídia do universo concebido por Frank Miller, que assina a direção ao lado de Rodriguez. O motivo para Rodriguez e Miller dividirem os créditos é compreensível, uma vez que o filme praticamente utiliza a HQ como storyboard, utilizando as mesmas cores e enquadramentos para criar um filme visualmente estarrecedor e sem precedentes.
Pode ser temerário um crítico (ainda que um mero embrião de um crítico, como é o meu caso) afirmar isso, mas não há como qualificar as imagens de Sin City de outra forma. É uma obra com diversas qualidades, mas não resta dúvida que o grande atrativo desta impressionante realização de Robert Rodriguez, aquilo que fará o filme ser lembrado por muitos anos, é o seu visual.
Assistir a Sin City é como se sentir abençoado por ter o dom da visão. Através da mesma técnica utilizada em Capitão Sky e o Mundo de Amanhã, Rodriguez conseguiu transpor para as telas o desenho de Frank Miller, em uma combinação brilhante de imagens reais, computação gráfica e o traço do desenhista. O resultado é de encher os olhos. Um preto e branco maravilhoso, com sombras e detalhes que realmente parecem ter saído direto das páginas da graphic novel. Não há como descrever aqui o que Rodriguez alcançou em termos visuais. É algo que merece ser visto, aplaudido, admirado e estudado. Destacar uma ou outra cena é impossível. O filme todo é plasticamente impecável.
Mas Sin City não é somente visual. Recriando de forma brilhante o clima dos filmes noir da década de 40, Rodriguez consegue utilizar toda a sua brilhante técnica para contar ótimas histórias, que prendem a atenção do espectador com personagens fortes e diálogos afiados. O roteiro, aliás, é uma das grandes forças de Sin City e apenas ressalta toda a “embalagem” criada pelo diretor.
Os diálogos, por exemplo, são brilhantes. É delicioso (em uma espécie de prazer sádico) acompanhar os personagens “malditos” de Sin City soltando suas pérolas recheadas de humor negro, sarcasmo e completo desprezo pela vida humana. Da mesma forma, a narração em off certamente se configura como uma das mais sensacionais já vistas nas telas, realmente ajudando a compreender os personagens, a história e, é claro, o mundo único de Basin City.
Assim como na questão das imagens, é difícil destacar apenas um momento para ilustrar este ponto de vista. Seja o brutamontes Marv em um pensamento poético (“Ela tem o cheiro que os anjos devem ter.”), em uma análise sobre sua agente de condicional (“Ela é uma sapatão, mas só Deus sabe porquê. Com esse corpo, ela poderia ter o homem que quisesse.”) ou Hartigan justificando seu desejo de proteger Nancy (“Um homem velho morre. Uma jovem garota vive. Uma troca justa.”), praticamente todas as frase ditas pelos personagens de Sin City encaixam-se de forma exemplar ao contexto do filme.
Além disso, deve ser ressaltado também o fato de que, por ser uma transposição quase direta das páginas de quadrinhos para as telas, o próprio estilo de diálogos e narração foi mantido. Ou seja, frases curtas e poderosas, condensadas pelo limite de espaço das revistas, encontram a mídia tipicamente expansiva que é o cinema, resultando em uma combinação curiosa e surpreendentemente eficiente.
Como normalmente acontece com cineastas de certo renome no circuito independente, Robert Rodriguez conseguiu reunir um elenco impressionante e que ajuda a trazer à vida o universo de Frank Miller. O destaque, sem dúvidas, fica por conta de Mickey Rourke, que constrói um personagem interessantíssimo em Marv, um brutamontes de meter medo, completamente desfigurado, mas com princípios. O resto do elenco também parece ter entrado completamente no clima da história, divertindo-se à beça em seus papéis (Bruce Willis está ótimo como o policial Hartigan).
Muita gente tem dito que Sin City é um filme gratuitamente violento e que glorifica a carnificina ao tratar seus personagens sem ética como heróis. Na verdade, isso é mais uma grande bobagem do grupinho adepto ao politicamente correto, simplesmente porque a violência mostrada em Sin City é altamente caricata e estilizada (como nos filmes de Tarantino, que, aliás, dirige uma cena aqui, quando o personagem de Clive Owen conversa com o morto Del Toro no carro), funcionando como uma resposta ao mundo em que vivemos. Robert Rodriguez e Frank Miller não glorificam a violência, mas exageram-na exatamente para revelar seu absurdo.
No final, Sin City não é apenas a mais fiel adaptação de uma HQ já vista nos cinemas, mas uma obra-prima de roteiro, direção e atuações. Sem dúvidas, será lembrado pelo seu aspecto visual, utilizando a linguagem cinematográfica de uma forma nunca antes vista. Mas enxergar o filme apenas dessa forma seria diminuir o alcance do talento de Frank Miller e da visão de Robert Rodriguez. E, diante de uma obra como Sin City, isso seria um sacrilégio.
P.S.: Sin City 2 já está em produção. Que nada aconteça aos meus olhos até a estréia!
De Frank Miller e Robert Rodriguez. Com Bruce Willis, Mickey Rourke, Clive Owen, Benicio Del Toro, Nick Stahl, Rutger Hauer, Carla Gugino, Jessica Alba, Brittany Murphy, Rosario Dawson, Michael Clarke Duncan, Powers Boothe, Elijah Wood, Devon Aoki, Michael Madsen, Josh Hartnett e Jaime King.
Silvio Pilau – 15/08/05
Robert Rodriguez é um cara que parece ter duas personalidades. Um dos ícones do cinema independente norte-americano, o diretor divide seus trabalhos em dois temas absolutamente distintos, com pouco – ou quase nada – a ver um com o outro. Por um lado, há o Robert Rodriguez criança, aquele cineasta responsável por aventuras infantis como a série Pequenos Espiões e As Aventuras de Sharkboy e Lavagirl em 3D. Pelo outro lado, encontramos o Robert Rodriguez adulto, criador de obras como Um Drink no Inferno, A Balada do Pistoleiro e Era uma Vez no México, onde a violência é parte fundamental da narrativa. Sin City, o estonteante novo trabalho do diretor, encaixa-se nessa segunda categoria.
Baseado na graphic novel de Frank Miller, o filme conta três histórias passadas em Basin City, uma cidade dominada pelo crime, corrupção e habitada por pessoas de moral, no mínimo, duvidosa (não, não estou falando de Brasília). A primeira trama é sobre um policial que salva uma criança e acaba desenvolvendo uma ligação especial com ela ao longo dos anos, tentando protegê-la a qualquer custo; na segunda história, acompanhamos a vingança de um renegado da sociedade, após o assassinato de uma prostituta em sua própria cama; e, por último, vemos o surgimento de uma sangrenta batalha, desencadeada com a morte de um policial espancador de mulheres.
Sin City é a mais fiel adaptação de uma história em quadrinhos para os cinemas. Na verdade, pode até ser um equívoco chamar o filme de adaptação. Sin City é mais uma mera recriação em outra mídia do universo concebido por Frank Miller, que assina a direção ao lado de Rodriguez. O motivo para Rodriguez e Miller dividirem os créditos é compreensível, uma vez que o filme praticamente utiliza a HQ como storyboard, utilizando as mesmas cores e enquadramentos para criar um filme visualmente estarrecedor e sem precedentes.
Pode ser temerário um crítico (ainda que um mero embrião de um crítico, como é o meu caso) afirmar isso, mas não há como qualificar as imagens de Sin City de outra forma. É uma obra com diversas qualidades, mas não resta dúvida que o grande atrativo desta impressionante realização de Robert Rodriguez, aquilo que fará o filme ser lembrado por muitos anos, é o seu visual.
Assistir a Sin City é como se sentir abençoado por ter o dom da visão. Através da mesma técnica utilizada em Capitão Sky e o Mundo de Amanhã, Rodriguez conseguiu transpor para as telas o desenho de Frank Miller, em uma combinação brilhante de imagens reais, computação gráfica e o traço do desenhista. O resultado é de encher os olhos. Um preto e branco maravilhoso, com sombras e detalhes que realmente parecem ter saído direto das páginas da graphic novel. Não há como descrever aqui o que Rodriguez alcançou em termos visuais. É algo que merece ser visto, aplaudido, admirado e estudado. Destacar uma ou outra cena é impossível. O filme todo é plasticamente impecável.
Mas Sin City não é somente visual. Recriando de forma brilhante o clima dos filmes noir da década de 40, Rodriguez consegue utilizar toda a sua brilhante técnica para contar ótimas histórias, que prendem a atenção do espectador com personagens fortes e diálogos afiados. O roteiro, aliás, é uma das grandes forças de Sin City e apenas ressalta toda a “embalagem” criada pelo diretor.
Os diálogos, por exemplo, são brilhantes. É delicioso (em uma espécie de prazer sádico) acompanhar os personagens “malditos” de Sin City soltando suas pérolas recheadas de humor negro, sarcasmo e completo desprezo pela vida humana. Da mesma forma, a narração em off certamente se configura como uma das mais sensacionais já vistas nas telas, realmente ajudando a compreender os personagens, a história e, é claro, o mundo único de Basin City.
Assim como na questão das imagens, é difícil destacar apenas um momento para ilustrar este ponto de vista. Seja o brutamontes Marv em um pensamento poético (“Ela tem o cheiro que os anjos devem ter.”), em uma análise sobre sua agente de condicional (“Ela é uma sapatão, mas só Deus sabe porquê. Com esse corpo, ela poderia ter o homem que quisesse.”) ou Hartigan justificando seu desejo de proteger Nancy (“Um homem velho morre. Uma jovem garota vive. Uma troca justa.”), praticamente todas as frase ditas pelos personagens de Sin City encaixam-se de forma exemplar ao contexto do filme.
Além disso, deve ser ressaltado também o fato de que, por ser uma transposição quase direta das páginas de quadrinhos para as telas, o próprio estilo de diálogos e narração foi mantido. Ou seja, frases curtas e poderosas, condensadas pelo limite de espaço das revistas, encontram a mídia tipicamente expansiva que é o cinema, resultando em uma combinação curiosa e surpreendentemente eficiente.
Como normalmente acontece com cineastas de certo renome no circuito independente, Robert Rodriguez conseguiu reunir um elenco impressionante e que ajuda a trazer à vida o universo de Frank Miller. O destaque, sem dúvidas, fica por conta de Mickey Rourke, que constrói um personagem interessantíssimo em Marv, um brutamontes de meter medo, completamente desfigurado, mas com princípios. O resto do elenco também parece ter entrado completamente no clima da história, divertindo-se à beça em seus papéis (Bruce Willis está ótimo como o policial Hartigan).
Muita gente tem dito que Sin City é um filme gratuitamente violento e que glorifica a carnificina ao tratar seus personagens sem ética como heróis. Na verdade, isso é mais uma grande bobagem do grupinho adepto ao politicamente correto, simplesmente porque a violência mostrada em Sin City é altamente caricata e estilizada (como nos filmes de Tarantino, que, aliás, dirige uma cena aqui, quando o personagem de Clive Owen conversa com o morto Del Toro no carro), funcionando como uma resposta ao mundo em que vivemos. Robert Rodriguez e Frank Miller não glorificam a violência, mas exageram-na exatamente para revelar seu absurdo.
No final, Sin City não é apenas a mais fiel adaptação de uma HQ já vista nos cinemas, mas uma obra-prima de roteiro, direção e atuações. Sem dúvidas, será lembrado pelo seu aspecto visual, utilizando a linguagem cinematográfica de uma forma nunca antes vista. Mas enxergar o filme apenas dessa forma seria diminuir o alcance do talento de Frank Miller e da visão de Robert Rodriguez. E, diante de uma obra como Sin City, isso seria um sacrilégio.
P.S.: Sin City 2 já está em produção. Que nada aconteça aos meus olhos até a estréia!
Wednesday, August 24, 2005
Gotas de Chuva
O som expelido pelos alto-falantes do carro reverberava por todo o veículo, mas ele não o escutava. Guiava em velocidade média, em sintonia com o ritmo do tráfego, alheio às nuvens, relâmpagos e trovões ao redor. A chuva ameaçava dar suas caras desde manhã, mas preguiçosamente, arrastara a sua apresentação por toda a tarde quente de verão. Parecia ter esperado o pior momento para cair.
Não se poderia dizer que ele, ao volante, estava cansado. Mesmo sendo o final do expediente, seu corpo estava tranqüilo. Mesmo assim, continuava dirigindo sem animação e em sua mente não havia nada mais do que o desejo de uma dose, com gelo, do companheiro Jack. Sentado na sua poltrona ainda não paga e com um cigarro pendendo na outra mão. Claro, com a televisão ligada.
Estes eram seus planos para o final do dia. Para o restante daquela quarta-feira. Depois, dormir e acordar às seis e meia do dia seguinte, para a mesma rotina do trabalho. Desempenhar as mesmas funções enquanto ansiaria, mais uma vez, pelo companheiro Jack, a poltrona e o cigarro.
Nem percebeu quando a chuva apaziguadora do calor começou, da mesma forma que não percebeu o momento em que ligou o limpador de pára-brisa. Acompanhava hipnotizado o movimento do limpador, aquele vai-e-vem sem mudanças, preso, cíclico, quando ouviu um estampido. Fraco e abafado pelo som do rádio, mas claro. O automóvel começou a puxar para um lado. Não teve alternativa a não ser encostar e parar.
Por três minutos, continuou sentado dentro do carro, costas encurvadas e as duas mãos no volante. A chuva caía lá fora e o rádio continuava emitindo sons sem destino. Como a água não diminuísse, tirou a gravata e a dobrou, colocando-a sobre o encosto do banco do passageiro. Fez o mesmo com o paletó. Abriu a porta e saiu do carro.
A chuva atingiu-o com força. Instintivamente, ele tentou se proteger levando o próprio braço à altura da testa. Falando consigo mesmo, praguejava contra o infortúnio de um pneu furado em meio a um temporal. Caminhou até a porta e, no exato instante em que abriu o bagageiro, foi assomado por uma torrente de lembranças.
Subitamente, viu-se como uma criança, em frente à sua própria casa. Seu pai lavava o humilde carro da família com esmero, enxaguando-o com água saída de uma mangueira, como se aquele fosse o bem mais valioso que possuíam. O sol quente daquela tarde de janeiro castigava a pele ainda inexperiente do garoto. Nesta lembrança, aproximou-se de seu pai, que percebeu o sofrimento do filho no cálido clima daquela tarde.
O pai da criança esboçou um sorriso e virou o jato da mangueira na direção do garoto. A princípio, ele fugiu. Em seguida, parou e aceitou receber aquele refrescante jato de água em seu corpo. O menino ficou parado na calçada em frente a casa, sorrindo, enquanto o pai sentia prazer ao ver o prazer estampado no rosto do filho.
Foi como um flash que ele se lembrou disso, enquanto abria o porta-malas do carro. Neste breve instante, teve a consciência de como, uma única vez, há mais de trinta anos, viveu a vida em todo o seu êxtase, mesmo por poucos segundos.
Agora, aquela sensação começava a dominar novamente seu corpo. Em movimentos lentos, deu alguns passos para trás e deixou as gotas escorrerem por seus cabelos e seu rosto. A chuva, que até então era alvo de injúrias, começou a assumir ares refrescantes e aprazíveis. Mas não era o sabor ou poder da água que estavam mudando. Era ele.
Uma espécie de nervosismo o arrebatou, provavelmente por ser uma sensação há tempos escondida em seu peito, acompanhado por um frêmito de satisfação que, se um dia conheceu, nem lembrava que existia. Inclinou levemente a cabeça para trás, deixando as pesadas e agradáveis gotas virem diretamente ao encontro de seu rosto. Abriu os braços, da mesma forma que fizera aquela vez na companhia de seu pai e, pela primeira vez em muitos anos, sorriu verdadeiramente.
Sorriu não como uma conseqüência de uma piada ou por um fato engraçado. Também não foi um sorriso forçado, cínico, do tipo que estava acostumado a presenciar todos os dias. Não sorria para os outros. Aquele sorriso era para si mesmo. Era um sorriso íntimo, que nem ele conseguia compreender a razão. Um sorriso de plenitude, de encontro consigo mesmo. Era um sorriso de pura beleza, com vida e destinado à vida.
Naquele momento, soube que compreendeu algo. Algo que ainda não estava bem claro, mas que, com certeza, teria grande importância em todos os dias seguintes de sua vida. Quando abriu os olhos, era uma pessoa diferente. Liberou-se da anestesia que tinha dominado sua existência por langorosos anos e, enquanto voltava para o carro, pôs-se a admirar cada pequeno detalhe do mundo que o cercava. Uma nova percepção sobre todas as coisas o dominava.
Novamente, ficou alguns instantes parado dentro do carro. Mesma posição de antes, mãos no volante e costas encurvada. Mas havia duas diferenças. A roupa, agora encharcada, e ele próprio. Deu a partida no carro e dirigiu para casa com o rádio ligado.
Desta vez, porém, cantava.
Tuesday, August 23, 2005
Filmes de Julho
Aí vai a lista de todos os filmes que eu assisti em julho, com suas respectivas cotações e comentários.
O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring) – EUA, 2001 *****
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian Holm, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Sean Bean, Hugo Weaving, Liv Tyler, Cate Blanchett, Billy Boyd e Dominic Monaghan.
A complexa história criada por J.R.R. Tolkien tornou-se uma maravilhosa peça de cinema nas mãos do visionário Peter Jackson. Com quase três horas de duração, Jackson criou um mundo único, com diversos povos e lugares inesquecíveis. O brilhante roteiro consegue trazer dimensão à trama sem esquecer dos personagens. Um filme onde tudo funciona (atuações, direção, roteiro, aspectos técnicos), com cenas que vão ficar na memória, e um brilhante início para a grandiosa saga da Terra-Média.
O Senhor dos Anéis: As Duas Torres (The Lord of the Rings: The Two Towers) – EUA, 2002 *****
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Hugo Weaving, Liv Tyler, Cate Blanchett, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Bernard Hill, Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Andy Serkis e Karl Urban.
Continuação que mantém a qualidade do filme anterior e realça ainda mais o clima épico. A batalha final no Abismo de Helm, que dura uns 40 minutos, é espetacular. Novos personagens surgem e são tratados com respeito pelo roteiro, que jamais relega-os a segundo plano. Destaque para Gollum, uma brilhante criação tanto técnica quanto conceitualmente, e o maior espaço dado ao verdadeiro herói da trilogia, Aragorn.
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (The Lord of the Rings: The Return of the King) – EUA, 2003 *****
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Hugo Weaving, Liv Tyler, Ian Holm, John Noble, Cate Blanchett, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Bernard Hill, Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Andy Serkis e Karl Urban.
O melhor filme da série completa com chave de ouro a monumental realização de Peter Jackson. São mais de três horas de um clímax arrebatador, onde tudo é superlativo. Personagens que pouco haviam feito nas obras anteriores aqui têm mais destaque e o conflito entre o Bem e o Mal assume proporções gigantescas na maravilhosa batalha nos Campos de Pellenor. Os 11 Oscars da Academia não foram justos. O Retorno do Rei merecia mais.
Desventuras em Série (Lemony Snicket`s A Sereis of Unfortunate Events) – EUA, 2004 ***1/2
De Brad Silberling. Com Jim Carrey, Liam Aiken, Emily Browning, Jude Law, Thimothy Spall, Meryl Streep, Catherine O`Hara e Billy Connoly.
Produção interessante que parece beber diretamente em uma fonte chamada Tim Burton. Com um visual caprichado, o filme traz uma história sem grandes surpresas, mas com bons personagens. Jim Carrey se deleita com as possibilidades do papel principal, mas o grande atrativo são mesmo os cenários e os aspectos técnicos dessa obra cheia de humor negro.
Zatoichi – Japão, 2003 ***
De Takeshi Kitano. Com Takeshi Kitano, Tadanobu Asano, Michiyo Ookuso e Gadarukanaru Taka.
Uma história que poderia ter rendido muito mais. O diretor abusa da paciência do espectador em seqüências longas completamente desnecessárias e perde tempo que deveria ser dedicado ao interessante personagem-título, um samurai cego. Além disso, a violência cartunesca não encaixa bem no contexto da obra e soa apenas exagerada. Ainda assim, tem bons momentos e Zatoichi garante o interesse.
Elektra – EUA, 2005 *
De Rob Bowman. Com Jennifer Garner, Goran Visnjic, Kirsten Prout e Terence Stamp.
Uma imensa besteira. O roteiro é uma bagunça total que tenta dar complexidade à personagem principal, mas se perde ao não saber que caminho seguir. A trama em si não faz sentido e as cenas de ação não possuem a menor graça. Nem a visão de Jennifer Garner nas roupas da heroína consegue atrair a atenção do espectador por mais de alguns minutos.
Guerra dos Mundos (War of the Worlds) – EUA, 2005 ***
De Steven Spielberg. Com Tom Cruise, Dakota Fanning, Justin Chatwin, Tim Robbins e Miranda Otto.
Como exercício de tensão e técnica, Guerra dos Mundos é exemplar. Spielberg cria belos momentos capazes de enervar os espectadores, como a primeira aparição dos Tripods e a seqüência da busca na casa de Tim Robbins, claramente inspirada em Jurassic Park. Pena que a história da família seja bem comum e que a conclusão decepcione, tanto pela solução do conflito quanto pelo inverossímil final feliz.
Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y las Visitadoras) – Peru/Espanha, 2000 ***1/2
De Francisco J. Lombardi. Com Salvador Del Solar, Angie Cepeda, Mônica Sanchez, Pilar Bardem e Tatiana Astengo.
Boa adaptação da obra de Mario Vargas Llosa. O filme mostra-se uma comédia inteligente, que, se não faz o espectador gargalhar, diverte através de um roteiro inteligente e com bons personagens. Há ainda uma sutil crítica às engrenagens do Exército e a presença da estonteante Angie Cepeda no papel da Colombiana.
Reencarnação (Birth) – EUA, 2004 *
De Jonathan Glazer. Com Nicole Kidman, Cameron Bright, Danny Huston, Lauren Bacall, Anne Heche e Peter Stormare.
A única coisa que presta nessa porcaria pretensiosa é a atuação de Nicole Kidman, ainda que seja inferior aos seus mais recentes trabalhos. A culpa é do diretor Jonathan Glazer, que acredita ter um material de obra-prima em suas mãos e tenta dar um significado inexistente às cenas. No começo, até engana, mas é difícil agüentar tanta pretensão até o final. Intragável.
Crimes em Wonderland (Wonderland) – EUA, 2003 ***1/2
De James Cox. Com Val Kilmer, Kate Bosworth, Josh Lucas, Lisa Kudrow, Tim Blake Nelson, Christina Applegate, Carrie Fisher, Dylan McDermott, Jeneane Garofalo e Ted Levine.
Boa adaptação de uma história real, mas que poderia ser ainda mais poderosa com um pouco de cuidado. A idéia de mostrar duas versões do mesmo acontecimento é interessante, porém o diretor perde a mão em alguns momentos, tornando a trama confusa. Ainda assim, há bons personagens e atuações, especialmente Val Kilmer no papel principal.
Ray – EUA, 2004 ***
De Taylor Hackford. Com Jamie Foxx, Kerry Washington, Regina King, Clifton Powell, Sharon Warren e C. J. Sanders.
Sem Jamie Foxx, Ray seria um filme mais do que comum. A cinebiografia de um dos maiores artistas americanos peca pela correção exagerada e jamais oferece alguma profundidade psicológica ao personagem. A trama limita-se a alguns fatos da vida do cantor e nada mais. Mas Jamie Foxx assume o papel com uma interpretação possuída, encarnado os trejeitos e o modo de falar de Ray Charles. Como atrativo, há ainda as ótimas músicas de Charles, que, junto com Foxx, conseguem segurar a obra até o final.
8 Mile – Rua das Ilusões (8 Mile) – EUA, 2002 ****
De Curtis Hanson. Com Eminem, Brittany Murphy, Kim Basinger, Mekhi Phifer e Evan Jones.
Impressionante estréia de Eminem no cinema, interpretando um personagem com trajetória de vida semelhante a sua. Essa bagagem pessoal talvez tenha facilitado seu trabalho, o que não tira os méritos de sua atuação, construindo um Rabbit convincente e bem desenvolvido. O diretor Curtis Hanson confere energia às batalhas de rap e consegue fazer com que o público compreenda o personagem principal. Um ótimo filme, prejudicado apenas pela estrutura narrativa, nada original.
Papai Noel às Avessas (Bad Santa) – EUA, 2003 ****
De Terry Zwigoff. Com Billy Bob Thornton, Tony Cox, Brett Kelly, Bernie Mac e John Ritter.
Hilária comédia que ignora o politicamente correto e faz piada sem a menor preocupação em agradar. O conceito inicial, que poderia fazer de Papai Noel às Avessas um filme de uma piada só, é muito bem explorado, graças a ótimos diálogos e a divertida interpretação de Billy Bob Thornton. O final pode decepcionar um pouco, mas é impossível não dar risadas com um Papai Noel bêbado e que odeia crianças.
Batman Begins – EUA, 2005 ****
De Christopher Nolan. Com Christian Bale, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Katie Holmes, Rutger Hauer, Cillian Murphy, Liam Neeson, Tom Wilkinson e Ken Watanabe.
O primeiro filme do Homem-Morcego com uma abordagem realista e realmente centrada no potencial psicológico do personagem. É a opção mais correta para contar a história, uma vez que Bruce Wayne ainda não havia sido bem explorado no cinema. Mas o tiro acaba saindo pela culatra, já que o desenvolvimento do personagem parece rápido demais e inacabado. Além disso, as cenas de ação jamais empolgam. Ainda assim, é o melhor filme do Batman, com bom elenco (Christian Bale está ótimo no papel principal) e um roteiro inteligente, que busca oferecer uma explicação para tudo o que aparece na tela.
Em Boa Companhia (In Good Company) – EUA, 2005 ***1/2
De Chris Weitz. Com Dennis Quaid, Topher Grace, Scarlett Johansson, David Paymer, Marg Helgenberger e Malcolm McDowell.
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian Holm, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Sean Bean, Hugo Weaving, Liv Tyler, Cate Blanchett, Billy Boyd e Dominic Monaghan.
A complexa história criada por J.R.R. Tolkien tornou-se uma maravilhosa peça de cinema nas mãos do visionário Peter Jackson. Com quase três horas de duração, Jackson criou um mundo único, com diversos povos e lugares inesquecíveis. O brilhante roteiro consegue trazer dimensão à trama sem esquecer dos personagens. Um filme onde tudo funciona (atuações, direção, roteiro, aspectos técnicos), com cenas que vão ficar na memória, e um brilhante início para a grandiosa saga da Terra-Média.
O Senhor dos Anéis: As Duas Torres (The Lord of the Rings: The Two Towers) – EUA, 2002 *****
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Hugo Weaving, Liv Tyler, Cate Blanchett, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Bernard Hill, Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Andy Serkis e Karl Urban.
Continuação que mantém a qualidade do filme anterior e realça ainda mais o clima épico. A batalha final no Abismo de Helm, que dura uns 40 minutos, é espetacular. Novos personagens surgem e são tratados com respeito pelo roteiro, que jamais relega-os a segundo plano. Destaque para Gollum, uma brilhante criação tanto técnica quanto conceitualmente, e o maior espaço dado ao verdadeiro herói da trilogia, Aragorn.
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (The Lord of the Rings: The Return of the King) – EUA, 2003 *****
De Peter Jackson. Com Elijah Wood, Viggo Mortensen, Ian McKellen, Sean Astin, Christopher Lee, Orlando Bloom, John Rhys-Davies, Hugo Weaving, Liv Tyler, Ian Holm, John Noble, Cate Blanchett, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Bernard Hill, Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Andy Serkis e Karl Urban.
O melhor filme da série completa com chave de ouro a monumental realização de Peter Jackson. São mais de três horas de um clímax arrebatador, onde tudo é superlativo. Personagens que pouco haviam feito nas obras anteriores aqui têm mais destaque e o conflito entre o Bem e o Mal assume proporções gigantescas na maravilhosa batalha nos Campos de Pellenor. Os 11 Oscars da Academia não foram justos. O Retorno do Rei merecia mais.
Desventuras em Série (Lemony Snicket`s A Sereis of Unfortunate Events) – EUA, 2004 ***1/2
De Brad Silberling. Com Jim Carrey, Liam Aiken, Emily Browning, Jude Law, Thimothy Spall, Meryl Streep, Catherine O`Hara e Billy Connoly.
Produção interessante que parece beber diretamente em uma fonte chamada Tim Burton. Com um visual caprichado, o filme traz uma história sem grandes surpresas, mas com bons personagens. Jim Carrey se deleita com as possibilidades do papel principal, mas o grande atrativo são mesmo os cenários e os aspectos técnicos dessa obra cheia de humor negro.
Zatoichi – Japão, 2003 ***
De Takeshi Kitano. Com Takeshi Kitano, Tadanobu Asano, Michiyo Ookuso e Gadarukanaru Taka.
Uma história que poderia ter rendido muito mais. O diretor abusa da paciência do espectador em seqüências longas completamente desnecessárias e perde tempo que deveria ser dedicado ao interessante personagem-título, um samurai cego. Além disso, a violência cartunesca não encaixa bem no contexto da obra e soa apenas exagerada. Ainda assim, tem bons momentos e Zatoichi garante o interesse.
Elektra – EUA, 2005 *
De Rob Bowman. Com Jennifer Garner, Goran Visnjic, Kirsten Prout e Terence Stamp.
Uma imensa besteira. O roteiro é uma bagunça total que tenta dar complexidade à personagem principal, mas se perde ao não saber que caminho seguir. A trama em si não faz sentido e as cenas de ação não possuem a menor graça. Nem a visão de Jennifer Garner nas roupas da heroína consegue atrair a atenção do espectador por mais de alguns minutos.
Guerra dos Mundos (War of the Worlds) – EUA, 2005 ***
De Steven Spielberg. Com Tom Cruise, Dakota Fanning, Justin Chatwin, Tim Robbins e Miranda Otto.
Como exercício de tensão e técnica, Guerra dos Mundos é exemplar. Spielberg cria belos momentos capazes de enervar os espectadores, como a primeira aparição dos Tripods e a seqüência da busca na casa de Tim Robbins, claramente inspirada em Jurassic Park. Pena que a história da família seja bem comum e que a conclusão decepcione, tanto pela solução do conflito quanto pelo inverossímil final feliz.
Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y las Visitadoras) – Peru/Espanha, 2000 ***1/2
De Francisco J. Lombardi. Com Salvador Del Solar, Angie Cepeda, Mônica Sanchez, Pilar Bardem e Tatiana Astengo.
Boa adaptação da obra de Mario Vargas Llosa. O filme mostra-se uma comédia inteligente, que, se não faz o espectador gargalhar, diverte através de um roteiro inteligente e com bons personagens. Há ainda uma sutil crítica às engrenagens do Exército e a presença da estonteante Angie Cepeda no papel da Colombiana.
Reencarnação (Birth) – EUA, 2004 *
De Jonathan Glazer. Com Nicole Kidman, Cameron Bright, Danny Huston, Lauren Bacall, Anne Heche e Peter Stormare.
A única coisa que presta nessa porcaria pretensiosa é a atuação de Nicole Kidman, ainda que seja inferior aos seus mais recentes trabalhos. A culpa é do diretor Jonathan Glazer, que acredita ter um material de obra-prima em suas mãos e tenta dar um significado inexistente às cenas. No começo, até engana, mas é difícil agüentar tanta pretensão até o final. Intragável.
Crimes em Wonderland (Wonderland) – EUA, 2003 ***1/2
De James Cox. Com Val Kilmer, Kate Bosworth, Josh Lucas, Lisa Kudrow, Tim Blake Nelson, Christina Applegate, Carrie Fisher, Dylan McDermott, Jeneane Garofalo e Ted Levine.
Boa adaptação de uma história real, mas que poderia ser ainda mais poderosa com um pouco de cuidado. A idéia de mostrar duas versões do mesmo acontecimento é interessante, porém o diretor perde a mão em alguns momentos, tornando a trama confusa. Ainda assim, há bons personagens e atuações, especialmente Val Kilmer no papel principal.
Ray – EUA, 2004 ***
De Taylor Hackford. Com Jamie Foxx, Kerry Washington, Regina King, Clifton Powell, Sharon Warren e C. J. Sanders.
Sem Jamie Foxx, Ray seria um filme mais do que comum. A cinebiografia de um dos maiores artistas americanos peca pela correção exagerada e jamais oferece alguma profundidade psicológica ao personagem. A trama limita-se a alguns fatos da vida do cantor e nada mais. Mas Jamie Foxx assume o papel com uma interpretação possuída, encarnado os trejeitos e o modo de falar de Ray Charles. Como atrativo, há ainda as ótimas músicas de Charles, que, junto com Foxx, conseguem segurar a obra até o final.
8 Mile – Rua das Ilusões (8 Mile) – EUA, 2002 ****
De Curtis Hanson. Com Eminem, Brittany Murphy, Kim Basinger, Mekhi Phifer e Evan Jones.
Impressionante estréia de Eminem no cinema, interpretando um personagem com trajetória de vida semelhante a sua. Essa bagagem pessoal talvez tenha facilitado seu trabalho, o que não tira os méritos de sua atuação, construindo um Rabbit convincente e bem desenvolvido. O diretor Curtis Hanson confere energia às batalhas de rap e consegue fazer com que o público compreenda o personagem principal. Um ótimo filme, prejudicado apenas pela estrutura narrativa, nada original.
Papai Noel às Avessas (Bad Santa) – EUA, 2003 ****
De Terry Zwigoff. Com Billy Bob Thornton, Tony Cox, Brett Kelly, Bernie Mac e John Ritter.
Hilária comédia que ignora o politicamente correto e faz piada sem a menor preocupação em agradar. O conceito inicial, que poderia fazer de Papai Noel às Avessas um filme de uma piada só, é muito bem explorado, graças a ótimos diálogos e a divertida interpretação de Billy Bob Thornton. O final pode decepcionar um pouco, mas é impossível não dar risadas com um Papai Noel bêbado e que odeia crianças.
Batman Begins – EUA, 2005 ****
De Christopher Nolan. Com Christian Bale, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Katie Holmes, Rutger Hauer, Cillian Murphy, Liam Neeson, Tom Wilkinson e Ken Watanabe.
O primeiro filme do Homem-Morcego com uma abordagem realista e realmente centrada no potencial psicológico do personagem. É a opção mais correta para contar a história, uma vez que Bruce Wayne ainda não havia sido bem explorado no cinema. Mas o tiro acaba saindo pela culatra, já que o desenvolvimento do personagem parece rápido demais e inacabado. Além disso, as cenas de ação jamais empolgam. Ainda assim, é o melhor filme do Batman, com bom elenco (Christian Bale está ótimo no papel principal) e um roteiro inteligente, que busca oferecer uma explicação para tudo o que aparece na tela.
Em Boa Companhia (In Good Company) – EUA, 2005 ***1/2
De Chris Weitz. Com Dennis Quaid, Topher Grace, Scarlett Johansson, David Paymer, Marg Helgenberger e Malcolm McDowell.
Nos moldes dos outros trabalhos do diretor, esta comédia dramática apresenta bons personagens e momentos divertidos para fazer um interessante estudo sobre as relações humanas. O elenco carrega bem o filme, com destaque para o veterano Dennis Quaid, e o final acerta ao respeitar mais a história do que as expectativas do público. Em Boa Companhia tem problemas de ritmo perto do final e desperdiça o talento de Scarlett Johansson, mas é mais uma competente realização de Weitz.
Friday, August 19, 2005
A Fantástica Fábrica de Chocolates
A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATES (CHARLIE AND THE CHOCOLATE FACTORY) *****
De Tim Burton. Com Johnny Depp, Freddie Highmore, David Kelly, Helena Bonham Carter, Noah Taylor, Deep Roy, James Fox, Christopher Lee e Missi Pyle.
08/08/05 – Silvio Pilau
Antes de mais nada, acredito ser pertinente salientar que jamais assisti a versão anterior de A Fantástica Fábrica de Chocolates, com Gene Wilder no papel de Willy Wonka. Portanto, essa análise será baseada exclusivamente na fabulosa reinvenção oferecida por Tim Burton à história criada por Roald Dahl. Mesmo assim, é difícil acreditar que a versão antiga, ainda que tenha o status de cult e clássico, consiga ser superior a esta produção atual.
A trama conta a história do pequeno Charlie Bucket, um garoto pobre que sonha em conhecer a fábrica dos chocolates de sua cidade, cujo dono é o misterioso Willy Wonka. A oportunidade surge quando cinco bilhetes dourados são colocados nas barras de chocolate e espalhados por todo o mundo, dando a quem encontrá-los a chance de visitar o local e conhecer seu administrador. Charlie consegue um desses bilhetes e, na companhia de seu avô, tem a chance de realizar seu sonho.
A Fantástica Fábrica de Chocolates é uma fábula inspiradora e de encher os olhos, concretizando mais uma parceria bem-sucedida entre Tim Burton e Johnny Depp. Com sua visão única, Burton transformou uma história infantil em um espetáculo grandioso e uma pérola de narrativa cinematográfica, carregada com a coragem e o talento de sempre pelo sensacional Depp.
Tim Burton é, provavelmente, um dos cineastas mais criativos em atividade. Todas as características presentes em seus melhores trabalhos podem ser encontradas em A Fantástica Fábrica de Chocolates, como o tom fantasioso, os personagens fortes, o humor sempre inteligente e, é claro, o visual arrebatador. Mais do que isso, a obra traz muitas semelhanças com um dos melhores trabalhos de Burton, Edward Mãos de Tesoura, pois, assim como a primeira colaboração entre o diretor e Johnny Depp, A Fantástica Fábrica de Chocolates também é um “conto de fadas para adultos” capaz de emocionar, trazendo lições de moral nada forçadas e um final feliz que deixa o espectador com um sorriso no rosto.
Isso tudo porque Tim Burton, mais do que apenas um diretor visualmente criativo, é um excepcional contador de histórias. A trama de A Fantástica Fábrica de Chocolates flui com uma naturalidade impressionante e cativa o público desde os ótimos créditos iniciais. Os primeiros 45 minutos do filme, antes da aparição de Depp/Wonka, são extraordinários, com o diretor construindo o personagem de Charlie e sua relação com a família. Assim, quando o garoto descobre o bilhete dourado, é impossível não se emocionar junto com ele, já que sabemos o quanto a visita à fábrica significa para Charlie.
É claro que as qualidades de A Fantástica Fábrica de Chocolates não se limitam ao primeiro ato. Assim que os visitantes entram na fábrica, o público é envolvido por um universo absurdamente, com o perdão do redundância, fantástico. Não há como classificar de outra forma. A concepção visual do interior da fábrica, e de tudo o que acontece lá dentro, é de uma imaginação assustadora, tanto em relação aos cenários quanto às cenas construídas.
Assim, temos seqüências que beiram o surreal, como as hilariantes apresentações dos Oompa Loompas, mas que funcionam com brilhantismo sob a batuta de Burton, sem jamais parecerem deslocadas na trama. Os, digamos, “testes” com as crianças também merecem destaque, especialmente aquele com as referências à 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Burton também tem a coragem de inserir, por baixo de toda a fantasia e espetáculo visual, um constante tom bizarro, um incômodo que parece dizer ao espectador que este não é um filme para crianças (muito disse se deve ao personagem de Wonka, como comentarei adiante).
Como se não bastasse, todos esses momentos são complementados por uma direção de arte e uma fotografia extraordinárias. Seja o rio de chocolates, a sala dos esquilos, o corredor de entrada da fábrica, a sala de TV ou até o “elevador transporte” de Wonka, tudo é único e sem precedentes, contribuindo para a construção de uma obra extremamente original, como é característica de Burton. Merece destaque também a criação da casa dos Buckets, claramente inspirada no expressionismo alemão.
Outro atrativo marcante de A Fantástica Fábrica de Chocolates é o humor, presente em toda a obra e das mais diversas formas. Há situações divertidas para todos os gostos: tiradas inteligentes, humor negro e até situações de puro pastelão. E, por incrível que pareça, quase todas funcionam, como a hilária seqüência que traz um jovem Willy Wonka caminhando com as bandeiras ao fundo. Os diálogos também são afiadíssimos, sempre recheados de sarcasmo e ironia, característicos do personagem principal da nova versão. Em certo momento, uma criança pergunta a Wonka se pode comer o que há no local. Sua resposta é impagável: “Tudo nesta sala é comestível. Até eu sou comestível. Mas isso é chamado canibalismo e é condenável na maioria das sociedades”.
E esta talvez seja a grande ousadia desta nova versão de A Fantástica Fábrica de Chocolates: o próprio Wonka. Aqui, ele é um homem estranho, excêntrico e que não suporta crianças. Interpretado de forma magistral por Johnny Depp, que enche o personagem de tiques e expressões sem torná-lo caricato, Wonka inclusive recebe de Burton e do roteirista John August alguns flashbacks de sua infância, mostrando as razões para ele ter se transformado no homem que é.
Contrapondo-se à personalidade perturbada de Wonka, Charlie é retratado como um garoto puro e sonhador, extremamente apegado à família. Freddie Highmore (repetindo a parceria que fez jorrar lágrimas de quem assistiu Em Busca da Terra do Nunca) encarna o papel, oferecendo uma performance simples, honesta e extremamente verdadeira. O resto do elenco, apesar do pouco tempo em tela, também merece destaque, especialmente David Kelly, adorável no papel do avô Joe.
Não me arrisco a afirmar que A Fantástica Fábrica de Chocolates é o melhor filme de Tim Burton, porque sou fã de outros trabalhos do diretor. Mas esta versão da história de Willy Wonka e Charlie Buckett é, sem dúvida, uma obra que merece ser vista. Uma fábula criativa e grandiosa, tanto para adultos quanto para crianças, que traz em cada segundo de projeção o toque único de um dos mais geniais cineastas americanos.
Tuesday, August 16, 2005
Siga Tyler
No último mês, tivemos atentados em Londres, o maior escândalo de corrupção da história do Brasil, meu time tropeçando na segunda divisão do campeonato brasileiro e muitas outras notícias, digamos, catastróficas. Mesmo com tudo isso acontecendo, acho que nada me despertou mais raiva do que um termo que passo a odiar com todo o meu ser: o intragável “politicamente correto”.
Pois vejamos três exemplos. Número um: recentemente, um dos maiores nomes da literatura mundial, o colombiano Gabriel García Márquez, teve seu último livro traduzido para o português. O título: Memórias de Minhas Putas Tristes. Em uma atitude incompreensível, algumas livrarias se recusaram a vender a mais recente obra do vencedor do Prêmio Nobel, apenas porque trazia aquela tenebrosa palavra no título.
Número dois: o seguidor de Hitler que atualmente comanda a Igreja Católica, Papa Bento XVI, condenou publicamente os livros da série fenômeno de vendas Harry Potter, sob a acusação de que a trama desperta nas crianças o lado da feitiçaria, do ocultismo e seja lá quais forem as outras frescuras que ele tenha citado.
Número três: a banda gaúcha Bidê ou Balde está enfrentando problemas com sua música E Por Que Não?. Segundo os ociosos detratores, a letra da canção é um elogio à pedofilia, falando sobre um pai que abusa sexualmente de sua filha. Os músicos foram proibidos de cantar a letra, sob risco de punição.
Ok, vou parar os exemplos por aqui. Poderia prosseguir citando outras situações por muitas páginas, mas é desnecessário. Estes três patéticos ocorridos já ilustram com perfeição o ponto atingido pela paranóia da nossa sociedade. A liberdade cada vez mais se torna uma ilusão, escondida sob um véu de puritanismo exacerbado que nada, e enfatizo esse nada, traz de útil às nossas existências.
Sem entrar, pelo menos por enquanto, na questão da liberdade artística e da censura, que benefícios podem gerar a retirada de um livro como o de García Márquez das prateleiras, apenas porque traz a palavra “puta” no título? Será que alguma criança que enxergar essa assustadora expressão terá seus valores corrompidos? Por que toda essa polêmica? Compensa banir a obra de um gênio como Márquez por um motivo tão esdrúxulo?
Quanto ao caso Harry Potter, vou tentar me conter ainda mais. Caso contrário, poderia me estender ao despejar todo o ódio que tenho pela instituição Igreja Católica, uma dominadora de mentes e ceifadora de tudo o que é liberdade no ser humano. Hitler XVI, ops, Bento XVI condena Harry Potter. Ele tenta proibir o único livro que, em muito tempo, conseguiu atrair a atenção das crianças e que pode despertar em milhões delas o mais do saudável hábito da leitura. Harry Potter, aquela obra que fala sobre amizade, integridade e sobre a luta do Bem contra o Mal (onde, por sinal, o Bem sempre vence) é tida como má influência pela Igreja. Vá entender.
Se um desses casos possui algum fundamento, é o da Bidê ou Balde. A letra pode ser interpretada da forma que os acusadores dizem? Pode. Pode ser proibida? Nunca. É o cúmulo privar a liberdade de expressão de um artista por uma interpretação que pode assumir uma conotação estranha. Não há nada explícito na letra da canção e, mais do que isso, o grupo tem todo o direito de cantá-la. Quem não quiser, que não a escute.
Estamos, talvez até sem perceber, pouco a pouco colocando, nos jovens, principalmente, aquelas viseiras utilizadas por cavalos, onde não se pode enxergar para os lados, limitando o alcance da visão. Essa besteira do “politicamente correto”, do não falar e não fazer nada fora de padrões estúpidos de candura, está privando uma nova geração inteira de bens necessários como a criatividade e a imaginação.
É óbvio, e não precisa de muita inteligência para chegar a essa conclusão, que isso não traz nada mais do que revolta e fúria. Podar a liberdade de pensamento sob um título aparentemente benévolo como o de “politicamente correto” é um mal disfarçado. É, na verdade, uma máscara, que cada vez mais adquire dimensões maiores. Uma máscara que tem que cair, e cair rápido.
Por isso, pegue um valor de nossa sociedade e destrua-o. Simples assim. Faça como Tyler Durden (ou foi o narrador?), de Clube da Luta, que simplesmente sentiu o desejo de destruir algo bonito. Chute a bunda do conservadorismo e cuspa na cara do correto. Mostre a todas aquelas pessoas que acham que tudo corrompe mentes e almas que agir com liberdade não significa tornar-se um criminoso, com maldade no coração. Quer fazer, quer dizer algo, vá lá e faça e diga. Dentro de certos limites, é claro, mas limites maiores do que os do "politicamente correto". E que se foda o resto.
Wednesday, August 10, 2005
Rock n` Road
Três semanas. Em apenas vinte e um dias, um escritor até então fracassado transformou a sua vida e a de milhares de outras pessoas de sua época. Claro que todas as idéias e palavras que foram parar no papel durante este escasso período de tempo, e que viriam a formar o cultuado, reverenciado e consagrado livro On the Road, já estavam fervilhando há tempos na mente do autor Jack Kerouac, apenas esperando uma oportunidade para encontrarem a liberdade.
Liberdade mesmo, na verdadeira acepção da palavra. On the Road, publicado em 1957, tornou-se o libelo de uma geração, a fagulha que deu início a uma explosão cultural e comportamental em todo Estados Unidos da América, e até no mundo, germinando o movimento hippie e influenciando incontáveis números de artistas nas décadas seguintes. Tudo isso por causa daquelas três semanas.
Mas, você deve estar se perguntando, o que uma resenha de um livro está fazendo em uma revista sobre rock`n`roll? Ainda por cima, um livro que não é biografia de cantor, não conta a trajetória de uma banda e, à primeira vista, nada tem a ver com o mundo do rock? Pois bem, olhe uma segunda vez.
On the Road é, provavelmente, o livro mais rock`n`roll já escrito em toda a história da humanidade, mesmo sem conter uma única menção ao gênero. O relato das viagens ensandecidas de Sal Paradise e Dean Moriarty pelas estradas norte-americanas, conhecendo pessoas, experimentando drogas, visitando cidades, dando e pegando carona, apenas para citar algumas de suas experiências, contém a verdadeira essência do rock.
É interessante analisar este paradoxo. Os personagens do livro, que viriam a ser conhecidos como beats, são apaixonados por música, capazes de entrar em um estado de catarse diante de um bom som e considerarem músicos verdadeiros deuses. Entretanto, essa paixão é pelo jazz, e não pelo rock, até porque os acordes de Buddy Holly, Chuck Berry, Elvis Presley e sua turma ainda não haviam conquistado a América.
Porém, o espírito do rock está contido em cada frase de On the Road. Sal e Dean, junto aos seus ocasionais parceiros e parceiras, são pessoas que fogem completamente dos padrões e normas da sociedade. Certamente, aos olhos da maioria, seriam chamados de rebeldes, desordeiros e outros adjetivos desta natureza. Por outro lado, consideram a si mesmos como conhecedores do verdadeiro significado da vida e não compreendem aquelas pessoas que se amarram a rotinas e que se sujeitam às regras impostas pela civilização. Em outras palavras, não entendem como alguém troca o viver pelo apenas existir.
O rock, como todo bom roqueiro sabe, é muito mais do que música. Para definir em apenas uma palavra, é atitude. E atitude é o que não falta a Sal e Dean. Para os personagens de Kerouac, aquilo que a maioria das pessoas considera como liberdade não passa de ilusão. A real sensação de ser livre ocorre apenas quando se joga todas as preocupações para o alto e faz-se aquilo que se gosta e tem vontade. Quando se nada na maré contrária à da vida repetitiva e enfadonha de nosso mundo, encontrando seu próprio caminho. Está começando a compreender porquê On the Road é o livro mais rock`n`roll já escrito?
Jack Kerouac provocou uma completa revolução. Seu livro influenciou milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo nomes como Bob Dylan e Jim Morrison. Dylan, aliás, foi um dos muitos que, após ler a obra, colocou uma mochila nas costas e partiu para a estrada, em uma atitude que certamente contribuiu muito para sua formação como compositor, músico e, claro, ser humano.
Tudo começou com On the Road. A nós, só resta imitar as palavras do tradutor Eduardo Bueno, no encerramento da recente edição da L&PM, e agradecer a Jack por tudo o que ele fez.
P.S.: Parece que, finalmente, On the Road vai ganhar uma versão cinematográfica. Produzida por Francis Ford Coppola, a direção vai ficar a cargo de ninguém menos que o brasileiro Walter Salles. Uma ótima escolha, considerando o excelente resultado de Diários de Motocicleta, uma filme que tem muito a ver com a obra de Kerouac.
Tuesday, August 09, 2005
As Tripas de Chuck
Chuck Palahniuk é um daqueles escritores considerados "malditos". Politicamente incorretíssimo, ele cutuca sem medo na ferida e, não satisfeito, a retorce de todas as formas possíveis para revelar aquio que a forma. Em menos de 10 anos de carreira, ele é adorado por uma legião de fãs e tornou-se cult. Seu trabalho mais conhecido é o livro Clube da Luta, aquele mesmo que se transformou naquela obra-prima de David Fincher nos cinemas. Pois o transgressor Palahniuk tem causado polêmica ultimamente, talvez até mais do que antes. Um de seus mais recentes trabalhos é um livro de contos, onde pode ser encontrado um com o nome de Guts. E por que toda a polêmica? Porque o autor tem lido esse conto em diversos locais e para diversas platéias e as reações mais comuns às palavras de Palahniuk são desmaios e vômitos. Palahniuk choca, com sua linguagem crua e as situações que expõe, revelando facetas da sociedade que poucas pessoas têm coragem de falar. Infelizmente, Guts ainda não foi traduzido para o português. Pesquisei na Internet e encontrei o conto em inglês. E que tal? É nojento mesmo. Dizer que é um soco no estômago é pegar leve com o que Palahniuk escreveu. Não cheguei a desmaiar ou a vomitar, mas é impossível não se sentir incomodado com a força do texto. Agora, a grande questão: é gratuito? Acredito que não. Acho que Palahniuk é um autor extraordinário que compreendeu a decadência de seu tempo como poucos. Suas histórias chocam, mas talvez não seja pelo situação em si colocada, apesar de esta ser, também, absurda (no caso de Guts, o jovem se masturbando na piscina de sua própria casa, com uma mangueira de sucção colocada no ânus). Acredito que o grande talento de Palahniuk está em dizer aquilo que sabemos que acontece, mas temos medo de falar. Sabemos que a ferida está lá e o que a forma, mas temos medo ou nojo de enxergar mais de perto. Palahniuk não tem esse medo e, mais do que isso, ele nos obriga a enxergar essa ferida com um microscópio. E é óbvio que nãp vamos gostar do que vemos. Chuck Palahniuk é um escritor diferenciado e, se tiver coragem e estômago, recomendo que o leia. Como ele próprio nos ensinou em Clube da Luta, às vezes é bom sentir uma porrada para acordarmos.
Friday, August 05, 2005
Lost Encontrado
Até anos atrás, nunca havia acompanhado algum seriado com freqüência, com exceção de Chaves. Talvez pela minha “formação cinematográfica”, que me ensinou a não assistir apenas trechos ou partes de filmes, nunca entendi aquelas pessoas que assistem apenas a uma parte de alguma produção cinematográfica e ficam satisfeitas com isso. Este, provavelmente, é o motivo pelo qual jamais havia acompanhado um seriado. Isso começou a mudar quando assisti Friends pela primeira vez.
Quem me conhece, sabe que sou fanático pela série, indiscutivelmente a melhor comédia que a TV já criou. Com a barreira já derrubada, passei a acompanhar outros seriados, todos de comédia. Isso porque é possível dar algumas risadas com apenas algum episódio aleatório, mesmo sem conhecer os personagens e a trama, ainda que seja recomendável. Mas continuava rejeitando as séries dramáticas (ou, digamos, as séries que não têm aquelas risadinhas ao fundo), pelo simples fato de que nessas é imperativo conhecer o enredo e os personagens, de preferência desde o início. Foi então que surgiu Lost.
Por alguma razão obscura até para mim, sempre tive um fascínio por histórias de pessoas perdidas em ilhas desertas. Acredito que seja um ponto de partida riquíssimo para um trama, pois dá oportunidade para explorar o comportamento humano em situações adversas. Bom, talvez, seja isso, talvez não, o que não vem ao caso agora. O fato é que, desde que fiquei sabendo da estréia de Lost no Brasil, decidi dar uma chance e acompanhar a série.
E não me arrependi. Acredito não ter perdido nenhum episódio, o que acho essencial para uma apreciação completa (motivo pelo qual ainda não assisti o adorado 24h), e posso dizer aqui que Lost é sensacional. O primeiro grande destaque da série pode ser creditado ao seu formato, algo que eu ainda não havia visto. Cada capítulo intercala o dia-a-dia dos sobreviventes na ilha com flahsbacks a respeito de um personagem em especial, aquele com mais destaque na trama “atual”, mostrando o que ele fazia antes do acidente de avião. É uma ótima idéia, que permite o público conhecer melhor os personagens e se identificar com eles, ou, ao menos, entendê-los. Hoje, por exemplo, já me sinto familiarizado com praticamente todos os personagens e compreendo suas motivações para cada ação desempenhada, o que dá credibilidade e verossimilhança à história.
Os próprios personagens são uma atração à parte. Com personalidades diferentes e bem delineadas, cada um surge na tela como uma pessoa completa e interessante, tridimensional. Meu favorito é, sem dúvida, John Locke, uma espécie de “protetor” de todo o grupo. Mesmo aqueles que poderiam virar uma caricatura, como o “vilão” Sawyer ou o “herói” Jack são desenvolvidos de forma consciente e jamais limitam-se a estes rótulos.
Além disso, Lost se sobressai por não ser uma típica história de um grupo de pessoas tentando sobreviver na ilha. Não satisfeitos, os criadores da série inseriram uma pilha de mistérios e questões que apenas atiçam a mente do telespectador, como os estranhos animais que atacam ocasionalmente, a escotilha descoberta por Locke, os ursos polares e a francesa Danielle. Quando surge a resposta para um mistério, duas ou mais novas questões são levantadas. Chega a dar até raiva, mas uma raiva saudável. Aquele gostinho de quero mais.
Por enquanto, Lost continua mantendo o alto nível. Não me arrisco a dizer que é a melhor coisa da TV porque não assisto com regularidade outros seriados, mas é uma produção extremamente bem-feita, escrita e interpretada, que surpreende e envolve o espectador a cada episódio. O meu medo é que os roteiristas não saibam responder a todas as questões levantadas e a série perca a qualidade com o passar do tempo. Mas preocupar-se com isso fica pra depois.
Thursday, August 04, 2005
Diários de Táxi
Em algum dia de ociosidade transformado em navegações cibernéticas, acabei descobrindo isso um site sensacional. O Taxitramas (tem o link ali na minha parte de links), pelo que compreendi, é administrado por um taxista que conta, semanalmente, as histórias que ocorrem em seu táxi ou em táxis de conhecidos. A primeira vez que pus os olhos no blog dele, li quase todos os textos de uma única vez, tão abismado que fiquei com o que ele conta. Sempre com um estilo bem-humorado e descontraído, o taxista versa sobre os mais diversos assuntos. Tem atropelamento de gnomo, perseguição policial, ameaças de bomba e, claro, análises sobre o ser humano. Quem tiver um tempinho, visite e leia. Duvido muito que não se torne fã do cara.
Tuesday, August 02, 2005
Três considerações:
1) O peruano Mario Vargas Llosa é um dos meus autores favoritos, ainda que tenha lido apenas dois livros dele. O primeiro foi o sensacional Batismo de Fogo (conhecido também como A Cidade e os Cachorros) e o segundo foi o divertidíssimo e irônico Pantaleão e as Visitadoras. Li este último há uns três meses e a obra me surpreendeu tanto pela sua estrutura, uma vez que se constitui praticamente em torno das missivas do Capitão Pantoja e de outros personagens, quanto pela sua trama propriamente dita, uma perspicaz análise da vida no Exército. Mesmo antes de ler o livro, sabia da existência de um filme baseado na obra, vencedor, inclusive, de alguns prêmios no nosso Festival de Gramado. No último fim-de-semana tive a oportunidade de assisti-lo e, embora não mantenha o mesmo vigor da narrativa literária, é uma adaptação fiel, dentro do possível, e ótima opção para se divertir com uma trama inteligente e que cria boas situações. E, para os homens, há ainda a possibilidade de contemplar o corpo perfeito da tal de Colombiana (que no livro, por alguma razão, era chamada de Brasileira), interpretada por Angie Cepeda. Assista ao filme ou, de preferência, leia o livro de Vargas Llosa. A história de Pantaleão Pantoja e seu Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins merece ser conhecida.
2) Outro livro que li recentemente (na verdade, o último) foi A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz. É a obra que deu origem àquela minissérie da Globo que foi ao ar há alguns anos e que não assisti. Apesar de não gostar das produções da poderosa rede, senti vontade, após a leitura do livro, de ver como foi a transposição para a telinha. A Muralha é uma obra imponente, rica, escrita em uma linguagem belíssima e com tons poéticos, que resgata com sabedoria uma época do Brasil e apresenta personagens fortes e muito bem construídos. Merece ser lida, sem dúvida alguma. Nem que seja para contrapor com a adaptação da Globo.
3) Hoje o bicho vai pegar em Brasília. Vamos ver como o Dirceu vai tentar se safar e como vai reagir com a presença de Roberto Jefferson.
Monday, August 01, 2005
Aventuras de um Jovem Carnívoro na Terra dos Sushis 2
Há algum tempo, escrevi um conto baseado em fatos reais sobre a minha visita a um restaurante de comida japonesa. Intitulado "As Aventuras de um Jovem Carnívoro na Terra dos Sushis", expressei naquelas poucas linhas toda a desagradável experiência que tive no local e o meu ódio por aquela comida. Havia prometido a mim mesmo que jamais pisaria novamente em um restaurante onde os garçons usassem aquelas faixas Karate Kid na cabeça. Pois, ontem, após uma aprazível tarde no Parcão e sem nada o que fazer em casa durante o final de tarde, fui carregado a outro daqueles restaurantes. Cheguei lá disposto a passar fome, apenas fazendo companhia às pessoinhas que estavam junto comigo. Pois qual não foi a minha surpresa ao descobrir que aquele restaurante, cuja especialidaade é peixe cru misturado com arroz, servia carne! Sim, carne. E, o que é ainda mais surpreendente, carne de qualidade. Claro que nem tudo é perfeito e veio ao lado do pedaço de vaca que me deliciava alguns legumes e vegetais estranhos. Mas eu estava feliz. Via as três pessoas que estavam junto comigo comendo aquelas coisas horríveis e ria por dentro. Cada vez que dava uma dentada em meu bife cheio de molho sentia pena de quem sente prazer em apreciar um sushi. Não saí odiando o Japão como da outra vez que fui a um restaurante do tipo. Tudo por causa de um bife. Restaurei minha fá nos japoneses. É bem capaz de eles realmente serem inteligentes.