Viagem Literária

Apenas uma maneira de despejar em algum lugar todas aquelas palavras que teimam em continuar saindo de mim diariamente.

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Location: Porto Alegre, RS, Brazil

Um gaúcho pacato, bem-humorado e que curte escrever algumas bobagens e algumas coisas sérias de vez em quando. Devorador voraz de livros e cinéfilo assumido. O resto não interessa, ao menos por enquanto.

Thursday, February 19, 2009

O LUTADOR


O LUTADOR (THE WRESTLER)
De Darren Aronofsky. Com Mickey Rourke, Marisa Tomei e Evan Rachel Wood.


Pela carreira que construiu para si nos anos noventa, Mickey Rourke acabou sendo considerado, por muitos, nada mais do que um galã que teve um breve período de sucesso na década anterior. A verdade, porém, é que, antes de praticamente abandonar a vida de ator para se dedicar ao boxe, Rourke demonstrou muito talento e potencial dramático em filmes como O Selvagem da Motocicleta e, principalmente, Coração Satânico. Portanto, ainda que seja uma surpresa ver o ator retornar ao primeiro time da indústria cinematográfica com O Lutador após tantos anos, não seria justo considerar a sua magnífica interpretação como uma tacada de sorte.

No filme, Rourke interpreta o lutador de luta-livre Randy “O Carneiro” Robinson. Famoso nos anos oitenta, quando multidões assistiam suas lutas, Randy ainda atua no ramo vinte anos depois, ainda que somente em apresentações amadoras para um público reduzido. Ao mesmo tempo, trabalha em um supermercado para completar sua renda, que nem sempre é suficiente para pagar o aluguel de seu trailer. Vivendo os resquícios da glória que um dia teve, Randy sofre um ataque cardíaco, o que o leva a buscar uma reaproximação com a filha e tentar dar início a um relacionamento com uma stripper, de modo a colocar sua vida de volta aos eixos.

O Lutador, de certa forma, também é o retorno de Darren Aronosfky ao estilo independente de filmar que primeiramente o destacou em Pi. Deixando de lado os delírios de Fonte da Vida e, principalmente, os artifícios visuais que ajudaram a tornar Réquiem por um Sonho uma experiência tão poderosa, o cineasta adota uma abordagem praticamente documental, naturalista, com a câmera na mão e utilização de atores não-profissionais em diversos momentos. Dessa forma, Aronofsky imerge o espectador no desolador cotidiano do protagonista, apresentando um homem alquebrado e preso uma vida dura e sem grandes perspectivas de um dia retomar o destaque que outrora teve.

Nesse sentido, a opção do diretor em constantemente posicionar sua câmera às costas do personagem enquanto este caminha funciona de maneira a reforçar o tom documental e tornar o público uma testemunha dessa jornada. Aronofsky ainda abre possíveis interpretações para os motivos pelo qual emprega o recurso: pode ser para representar o quanto Randy carrega em suas costas (o passado), pode ser uma metáfora para a vergonha sentida pelo personagem por ter jogador fora a sua vida, ou pode ser, simplesmente, uma escolha estética sem qualquer significado mais profundo. Seja lá o que o cineasta quis dizer, a escolha é eficiente por criar o tom certo para que a platéia “siga” o protagonista na trajetória.

Além disso, Aronofsky e o roteirista Robert Siegel demonstram maturidade narrativa ao entregarem exatamente o necessário para o espectador. Tanto em relação ao passado quanto no que tange os sentimentos dos personagens, O Lutador jamais torna-se excessivamente expositivo ou mastigado para o público, que acaba tendo que preencher as lacunas por si só (o que também fica claro na última e subjetiva cena). Por exemplo, o filme não explica como ou de que forma Randy acabou levando sua vida para a condição que se encontra, e o espectador percebe que isso não faz falta: O Lutador não é sobre como ele foi parar ali, mas de que maneira o protagonista começa a compreender seus limites e o seu lugar no mundo.

E a economia narrativa de Aronofsky e Siegel revela-se um acerto quando a platéia entende e conhece o personagem mesmo sem as tais explicações típicas do cinema americano. Seja quais foram elas, as escolhas erradas de Randy tornaram-no um homem solitário, que somente sente-se feliz quando revive as glórias do passado. Nesse sentido, são simbólicas e representativas duas cenas de O Lutador: a partida de videogame com um garoto, na qual Randy empolga-se ao “entrar no ringue” ainda no auge da carreira; e o seu sorriso ao chegar em casa após uma noitada, o que deve significar lembranças do tempo no qual era uma estrela e deveria ter mulheres aos seus pés – interessante também perceber como Aronosfky segue essa cena com um momento difícil entre Randy e sua filha, como se dissesse que somente quando se livrar de vez do passado o personagem poderá seguir com a vida.

No entanto, o aspecto mais tocante de O Lutador talvez seja o fato de que o próprio protagonista reconheça ser o responsável pela sua vida se encontrar de tal forma. Randy sabe que errou e, provavelmente pela primeira vez em sua existência, tenta reparar esses erros. Pela primeira vez, torna-se um lutador também fora dos ringues, disposto a revidar os golpes da vida, ainda que estes sejam cada vez mais duros e constantes – e, nesse raciocínio, o título do filme revela insuspeitada beleza e poesia. O Lutador é, em essência, a jornada de auto-conhecimento de um homem descobrindo realmente quem ele é. E talvez a dura lição aprendida por Randy é a de a redenção nem sempre é fácil, principalmente porque o papel a ser desempenhado por cada um é simplesmente aquele que se pode, e não o que se deseja (e a belíssima cena na qual o protagonista “escuta” a torcida enquanto caminha pelos corredores do supermercado é de cortar o coração).

Essa impecável construção de personagem realizada por Aronofsky e Siegel jamais funcionaria caso não fosse representada com talento e sensibilidade. Por isso, o tão propagado retorno de Mickey Rourke é mais do que justo. A caminhada de Randy “O Carneiro” é o papel da vida do ator. Com uma trajetória de vida semelhante a do protagonista (Rourke também viveu o estrelato nos anos oitenta para depois sumir no ostracismo), Rourke traz incrível verdade e sinceridade ao personagem. A impressão que fica é a de que ele deixa a técnica de lado para atuar com o coração; uma impressão, claro, que não condiz com a realidade, uma vez que a composição do personagem é detalhada e rica, como fica claro em pequenos detalhes, como o modo de mexer o cabelo. Além disso, Aronofsky, não tem pudores em explorar a face machucada e as cicatrizes do ator, mantendo a câmera sempre próxima do seu rosto, como forma de realçar os sofrimentos de Randy – e criando um forte paralelo com a vida real do astro.

No entanto, seria injusto afirmar que Mickey Rourke carrega o filme nas costas. Marisa Tomei está igualmente brilhante em O Lutador, construindo uma personagem com muitas semelhanças com Randy: tal qual o protagonista, sua Pam/Cassidy vive uma espécie de vida dupla, incorporando um personagem na boate e tentando tocar a sua vida da maneira que pode, enquanto percebe o avanço do tempo e os sacrifícios que ele pede. E Tomei, em incrível forma para sua idade, ilumina a tela, entregando uma interpretação repleta de carisma e sutileza, compondo Pam como uma mulher igualmente sofrida, com receio de se entregar a aventuras. Enquanto isso, a talentosa Evan Rachel Wood consegue, em seu pouco tempo em tela, uma atuação densa e, acima de tudo, importante por ser parte fundamental da jornada de descobrimento de Randy.

Como se não bastassem todas essas qualidades, O Lutador ainda funciona como uma interessante e, ao menos para a maioria dos brasileiros, inédita visão sobre os bastidores da indústria de luta-livre, fenômeno nos Estados Unidos, mas pouco popular no Brasil. Darren Aronofsky não deixa de lado o fato de se tratar de uma armação, mas apresenta o esporte como uma armação capaz de machucar e que exige muito dos atletas. Alguns dos melhores momentos de O Lutador saem dos momentos passados no ringue (a luta sanguinária contra o barbudo é o ponto alto) e no universo que o cerca, até por ajudarem a compreender melhor o personagem (reparem como Aronofsky insiste em mostrar Randy cumprimentando as pessoas, como para reforçar a reverência que elas têm pelo protagonista).

Talvez o único porém que pode ser dito sobre O Lutador é o fato de não oferecer grandes surpresas. No entanto, o filme não se propõe a isso. É, por outro lado, um retrato honesto e triste de uma pessoa comum que busca ser mais do que pode ser. Aronosfky e Siegel entregam, provavelmente, a mais complexa construção de um personagem desde que Paul Thomas Anderson apresentou seu Daniel Plainview de Sangue Negro. O cineasta jamais julga seu protagonista, e o olhar repleto de ternura que surge em relação a ele vem unicamente da sintonia entre Mickey Rourke e a platéia. Um sinal de que seu retorno, muito mais que sorte, tem uma razão primordial: talento.

Nota: 9.0

Tuesday, February 17, 2009

Visitas

Eram sete e doze da manhã quando Beto e Juliana entraram na casa dele.

- Pai? Mãe? O que estão fazendo aqui? – exclamou Beto, ao ver seus pais na mesa tomando café da manhã.

- Viemos visitá-lo, Rô – a mãe respondeu, já analisando Juliana dos pés à cabeça.

- Porra, mãe, já disse que não gosto que vocês apareçam sem me avisar!

- Rô, olha o nome! Não fale assim na frente da sua mãe! – disse ela.

- Foi idéia da sua mãe vir pra cá – falou o pai, lendo o jornal.

- Minha idéia uma ova, Darci. Você que precisou vir pra capital pra examinar esse coração aí.

O pai apenas resmungou.

- Além disso, Rô, se você não quisesse a gente aqui não teria nos dado a chave do apartamento.

- Mãe, nunca dei a chave pra você. Pensando nisso, a minha cópia desapareceu...

- Isso não vem ao caso, Rô. Sente-se na mesa e vamos tomar um café.

- Não quero café, mãe. Acabei de chegar de uma noitada e quero ir pro meu quarto.

- Com ela? Quem é? – perguntou a mãe.

- Uma amiga – respondeu Beto.

- Amiga? – a mãe repetiu.

- Sim, amiga.

Dirigindo-se a Juliana, a mãe perguntou:

- Quando é o aniversário do Roberto?

Juliana ficou em dúvida se respondia ou não. Beto intercedeu:

- Que é isso, mãe? Vai interrogar ela agora?

- Não é interrogatório, mas amigos sabem os aniversários dos amigos.

- Bom, a Juliana tem problema em lembrar datas.

- Juliana, é? – disse, novamente analisando a garota. Virou-se para Darci e disse: - Olha, Darci. Mesmo nome da filha do Ernesto, aquela guriazinha que já se deitou com todo mundo na em Tarandé.

- Mãe, por favor... Ju, desculpa.

A moça nada disse. O pai de Roberto não tirava os olhos dela.

- Bem, meu filho. Muito bem – disse Darci, com um sorriso e piscando o olho para o filho.

A mãe deu um tapa na careca do pai.

- Te controla, Darci. Vai ficar espichando o olho pra qualquer rabo-de-saia que seu filho traz pra casa?

- Ela não é qualquer rabo-de-saia, mãe.

- Ah, não? Desde quando você conhece ela?

- Isso não vem ao caso.

- Claro que vem – disse a mãe. Em seguida, caminhou na direção de Juliana e, com um dedo em riste, vociferou – Escute aqui, mocinha. O Rô é um guri de família, sério e dedicado. Você não pode ficar pensando que vai...

- Mãe! – gritou Beto. – Chega! O que é isso? Você acha que pode chegar aqui e fazer minha amiga passar vergonha?

- Amiga? – perguntou a mãe.

- Sim, amiga!

- Bem, filho. Muito bem – exclamou o pai, novamente, aprovando.

- Chega dessa confusão! Quero os dois fora daqui agora mesmo!

A mãe pareceu tomar um susto.

- Isso é jeito de falar com a sua mãe, Roberto? – berrou a mãe.

- Não me interessa, mãe. Isso é falta de respeito. Quero que vocês dois vão pra um hotel e depois eu ligo pra vocês.

- Vamos, Marli – falou o pai, já se levantando. –Vamos deixar os dois sozinhos.

- Não! – esbravejou a mãe. – Se eles são só amigos, não vão ter problemas com a nossa companhia.

- Mãe, nós não somos só amigos! Eu conheci a Ju hoje em uma festa. Eu estava bêbado e ela também. Nós nos beijamos, nos apalpamos e estávamos indo transar quando encontrei vocês. Entendeu? Tran-sar! Sexo! Nós dois, nus, suados, gozando! Entendeu agora porque quero vocês dois fora daqui!?

Nesse momento, Beto recebeu um tapa. Ao contrário do que imaginava, não de sua mãe, mas de Juliana.

- Quem você pensa que eu sou? Você só me queria para isso, né? Grosso! – falou a moça, antes de sair do apartamento batendo a porta.

- Feliz agora, mãe? – perguntou Beto, indignado.

A mãe deu de ombros e voltou a arrumar a mesa do café. Disse, com voz suave:

- Parecia uma boa moça, filho. Pena que não deu certo.

Monday, February 16, 2009

A sentença.

- Srta. Vadeus, como a senhorita se declara? – perguntou o juiz Edgar Fanhoto, diante da sala lotada.

- Inocente, meritíssimo – respondeu a acusada, Marlou Vadeus, sem qualquer demonstração de culpa.

O julgamento da srta. Vadeus praticamente parara o jardim. Lagartas, cigarras, formigas, grilos, todas as criaturas daquela pequena sociedade deixaram suas diferenças de lado para acompanhar de perto o desenrolar do caso. Um caso monstruoso, com requintes de crueldade e sadismo. Até agora, tentavam compreender de que forma alguém, mesmo a agressiva srta. Vadeus, poderia cometer crime tão hediondo.

A srta. Vadeus era acusada do assassinato de diversos amantes. Não apenas assassinato, mas decapitação. Segundo os relatos do chefe de polícia João B. Zouro, a srta. Vadeus utilizava seu corpo delgado e verdejante para seduzir as vítimas ao motel Deu Galho e, após acasalarem, cortava com as próprias mãos a cabeça do companheiro. O macho, ainda inebriado pelo êxtase da performance sexual de sua algoz, nada podia fazer. O chefe B. Zouro afirmou ainda que existiam vestígios de canibalismo por parte da fêmea

A popular Gazeta do Jardim deliciou-se com o caso, transformando-o em um furor sensacionalista que despertou a atenção inclusive das minhocas, normalmente avessas a contatos sociais, constantemente enfurnadas em suas residências subterrâneas. A Gazeta nunca vendeu tantos exemplares. Foi a publicação a responsável pela alcunha “Serial Killer do Acasalamento”, como a srta. Vadeus era conhecida agora. Por isso, graças a tal comoção, todos os olhos estavam naquele julgamento, inclusive as centenas de olhos o sr. Amos K.

- A srta. sabe as acusações que recaem sobre a sua pessoa, ou melhor, seu inseto? – continuou o juiz Fanhoto, ciente da responsabilidade do caso.

- Sim, sr. E continuo afirmando que sou inocente de tal crime – disse uma impassível srta. Vadeus.

- Muito bem. Assim, somente nos resta dar início ao julgamento.

O circo, então, começou. Por três dias e três noites, o caso da Serial Killer do Acasalamento tornou-se o centro das atenções de todos. Legistas expuseram suas análises dos corpos sem cabeça dos amantes da sra. Vadeus, amigos testemunharam a idoneidade da acusada, borboletas foram ouvidas como se tivessem desempenhado o papel de veículos de fuga. Todas as possibilidades foram analisadas pelo promotor e pelo advogado de defesa e, até o momento, ninguém poderia afirmar qual seria o veredito.

- Peço, então, para que o júri se retire e retorne somente com um veredito final – afirmou o juiz Fanhoto, com toda a sua imponência, ao final das atividades.

Foram momentos de pura ansiedade. Os pés da dona Dirce Entopéia, que não conseguira achar lugar para sentar, doíam. Ela, porém, não queria sair da sala para tirar os sapatos, com medo de que, quando chegasse ao vigésimo-quarto, o júri retornasse. A jovem Manuela Garta refreava o desejo de virar uma borboleta, pelo motivo de que não queria ir ao casulo e perder o resultado final. Enquanto isso, a srta. Marlou Vadeus permanecia em seu lugar, confiante, como se tudo aquilo não fosse por sua causa. Parecia, no entanto, reza.

Então, o tribunal foi calado por ruídos de passos, que ganharam força e alcance dentro daquele tronco oco onde tudo ocorria. O júri foi se posicionando em seu lugar. Lentamente, os doze insetos que tinham em suas mãos o destino da srta. Vadeus sentaram-se, com o olhar para baixo, temerosos por carregar tamanha responsabilidade. Cabia a eles o destino de uma vida alheia. Quem quebrou o silêncio perturbador foi o juiz Edgar Fanhoto.

- Então, chegaram a um veredito?

- Sim, meritíssimo – disse, levantando-se, a pequena dona Joana, conhecida como Joaninha entre os amigos. – Nós, do júri, declaramos a acusada, srta. Marlou Vadeus...

Dona Joana falou o veredito, mas ninguém ouviu. Um som alto, quase ensurdecedor, tomou conta do tribunal. Todos, sem exceção, levaram as mãos aos ouvidos, inclusive a acusada. Era um ruído cortante e constante, que parecia cada vez mais próximo. Em meio ao pandemônio, o juiz Edgar Fanhoto, no alto de sua sabedoria e sapiência, gritou.

- É uma serra elétrica! Corram todos!

Poucos o ouviram. Em alguns segundos, tudo estava acabado. O tronco oco de árvore onde ocorria o julgamento ficou em pedaços. Corpos de insetos eram encontrados pela metade ou com membros decepados. Uma verdadeira chacina. Aqueles que conseguiram escapar, tamanho o terror de tal cena, jamais quiseram falar sobre o ocorrido. Era um trauma que carregariam para o fim de suas vidas, como o sr. Amos K., que pensou naquilo até o dia acabar.

A alguns centímetros de onde, alguns segundos antes, estava sentada aguardando sua sentença, a srta. Marlou Vadeus, a Serial Killer do Acasalamento, a fêmea que decapitava seus companheiro, a amante letal, jazia sobre uma pequena pedra tomada pelo limo. Tal qual no julgamento, continuava sem qualquer expressão no rosto, como se estivesse alheia a tudo. A única diferença era que, ironicamente, sua cabeça estava separada do corpo.

Culpada ou não, a srta. Vadeus teve a sua sentença.

Sunday, February 15, 2009

OPERAÇÃO VALQUÍRIA


OPERAÇÃO VALQUÍRIA (VALKYRIE)
De Bryan Singer. Com Tom Cruise, Bill Nighy, Tom Wilkinson, Kenneth Brannagh, Eddie Izzard, Tomas Kretschamnn e Carice Van Houten.


Desde o final da Segunda Guerra Mundial – e, de certa forma, durante –, o cinema retratou os nazistas como meros assassinos sanguinários. Sem exceção, Hitler e seus seguidores foram transpostos para as telas como monstros cruéis e sem sentimentos, longe de qualquer representação humana. É curioso, portanto, perceber como, nos últimos meses, diversos filmes apresentaram nazistas não como tais caricaturas da morte, mas como seres humanos, inclusive contrários às políticas do 3º Reich. É o caso de obras como Um Homem Bom, O Leitor e este Operação Valquíria.

Baseado em uma história real, o filme tem como cerne narrativo a mais famosa tentativa de assassinato de Adolf Hitler, perpetrada pelos seus próprios comandantes. O plano foi armado pelo Coronel Claus Von Staffenberg, um homem desiludido com as ações de seu líder, por acreditar que estas levariam a Alemanha às ruínas. Staffenberg uniu-se a uma série de representantes do alto escalão para pôr em prática um golpe de estado, apoiado em uma política criada pelo próprio Hitler: um plano de defesa denominado Operação Valquíria.

Dirigido por Bryan Singer (de volta a um trabalho menor após a mega-produção Superman – O Retorno) a partir de um roteiro de Nathan Alexander e Christopher McQuarrie (que já colaborou com Singer no excelente Os Suspeitos), Operação Valquíria já demonstra a preocupação com detalhes desde os primeiros minutos de projeção: Stauffenberg começa narrando em alemão o que escreve em seu diário, enquanto a voz em inglês lentamente sobrepõe-se à anterior, deixando claro ao espectador a origem dos personagens e da história. Trata-se de um recurso, de certa forma, desnecessário, mas interessante e honesto por parte de Singer, que demonstra respeito com a platéia.

O cuidado com os detalhes, aliás, não limita-se a isso: é fascinante acompanhar a recriação do 3º Reich de Adolf Hitler. Apesar das negativas do governo alemão para filmagens em locação, Singer e sua equipe conseguem trazer um alto tom de autenticidade ao filme ao construírem cenários como a sede da SS e suas dezenas de mastros com bandeiras, a Toca do Lobo, a casa particular de Hitler e até uma piscina com uma imensa suástica na qual o líder do Exército de Reserva pratica sua natação. Esse esmero com a recriação de época ajuda a transmitir o clima de ostentação característico do governo nazista, garantindo um alto grau de verossimilhança à produção.

Ao mesmo tempo, o roteiro apresenta o plano de forma extremamente eficaz. Ainda que não perca muito tempo em sua exposição, a explicação e o desenrolar da narrativa jamais deixam o espectador em dúvida sobre o que está acontecendo e qual o passo a passo dos conspiradores – uma conquista importante de Singer e seus roteiristas, que faz com que a platéia jamais canse da história. Por outro lado, Operação Valquíria é prejudicado por não dedicar alguns minutos a mais a um ponto crucial: a formação do grupo. Como e de que forma aqueles altos oficiais uniram-se para conspirarem contra seu maior líder é uma pergunta que permanece sem resposta à platéia.

O grande problema do roteiro, no entanto, é não buscar um retrato mais aprofundado ou complexo de seus personagens. Pelo que é apresentado por Singer e seus roteiristas, todos os conspiradores poderiam ser resumidos da mesma forma, praticamente sem qualquer diferenciação: oficiais a favor da Alemanha e contrários a Hitler. Nenhuma de suas personalidades é mais elaborada ou desenvolvida com cuidado e, se não parecem apenas caricaturas, isso deve-se quase totalmente ao talento de seus intérpretes, que fazem o possível para transformar os personagens rasos do roteiro em figuras, no mínimo, humanas.

Esse é o grande destaque do trabalho de atores do porte de Bill Nighy, Terence Stamp e Kenneth Brannagh, que, mesmo sem um material mais qualificado em mãos para desenvolverem suas caracterizações, são eficazes em suas atuações. O mesmo acontece com Tom Cruise, cujo Coronel Stauffenberg não passa de um homem apaixonado por seu país e disposto a sacrificar-se por ele. Ainda assim, o astro, que adota uma postura quase sem expressão, é eficiente em seu minimalismo: é fácil notar o nervosismo no rosto de Stauffenberg na saída do bunker após o atentado ou os sentimentos quando reencontra a família.

Em essência, porém, Operação Valquíria não se propõe a ser um estudo de personagens, mas um suspense capaz de gerar tensão. E o grande mérito da direção de Bryan Singer é exatamente conseguir manter essa tensão, mesmo que o espectador já saiba como a trama irá se encerrar - qualquer pessoa com o mínimo de consciência de História sabe o resultado do atentado. Singer constrói seu filme em uma crescente de nervosismo, além de sair-se muito bem na realização de cenas cruciais (a sequência do atentado, por exemplo, é um verdadeiro primor). Tudo isso faz com que a platéia esqueça, por vezes, o que sabe de antemão e se veja imerso na narrativa proposta pelo diretor.

E é exatamente por isso que Operação Valquíria é um filme a ser recomendado. Mesmo que não gere grandes discussões e não se preocupe em delinear mais os personagens, Bryan Singer constrói um thriller bastante eficiente, que prende a atenção até o final e gera bons momentos de tensão. E sempre é bom ver histórias reais baseadas em homens capazes colocar a própria vida em risco por um bem maior. Homens que, como vemos aqui, existiam até mesmo dentro do nazismo.

Nota: 7.0

Thursday, February 12, 2009

Corrente blogueira

O bocatriste madrileño Gabriel Silveira convidou pra essa corrente blogueira e aí vai a minha contribuição. A idéia é fazer seis revelações pessoais.

1- Até a sétima série, eu não usava cuecas. Só comecei a usar depois que uma febre de baixar as calças dos colegas dominou o colégio. Claro que eu fui vítima e fiquei com o rapazinho ao vento.

2- Fui eleito o melhor aluno da oitava série. Ganhei plaquinha de metal e tudo, o que fez mamãe chorar e se orgulhar.

3- Tenho 100% de aproveitamento em brigas. Somente uma vez entrei em socos com alguém, há muitos anos no condomínio onde moro, e a pobre vitima saiu chorando e de olho roxo. Te mete!

4- Já escorreguei em casca de banana, como um desenho animado. Duas vezes. E não, bigornas e pianos ainda não caíram em minha cabeça.

5- Já fiz curso de mergulho, com equipamento e tudo, apesar de nunca mais ter ido para o fundo do mar depois que o curso acabou. Mas pretendo voltar, porque é fantástico.

6- Uma vez, dei R$ 50,00 a um flanelinha. Essa história é clássica. O cara pediu um trocado, eu disse que não tinha e ele disse pra eu dar a nota de 50 que ele iria buscar troco. Claro que ele não voltou mais.


Seguindo, então, indico pra continuar essa corrente: a minha repórter favorita, Priscilla Casagrande, do WonderPree; Cibele Carvalho, dos Flamingo; a Anastácia, mais conhecida como Manu Vieira; e o nerd-mor Daniel, do Semáforo Python.

O LEITOR


Ainda faltam três para assistir (Quem Quer Ser um Milionário?, Milk e Frost/Nixon), mas já afirmo que O Leitor é o filme mais fraco dos cinco indicados ao Oscar na categoria principal. Tudo bem que o diretor Stephen Daldry é um dos queridinhos da Academia, mas somente os velhinhos que comandam aquela premiação quadrada para conseguir julgar esse trabalho repleto de problemas como um dos melhores do ano. E não são falhas pequenas, mas deslizes que prejudicam a apreciação da obra como um todo. Para começo de conversa, o filme demora um pouco a realmente fisgar o espectador. A história inicial do romance de Hannah com Michael é feita de forma abrupta e causa alguns momentos de estranheza – se o público entende os motivos do rapaz, a entrega fácil da mulher soa implausível. Assim que a intimidade entre ambos é estabelecida, a história flui melhor e os personagens começam a envolver, até porque fica claro que há, por trás de tudo, um segredo a ser revelado. E é exatamente esse segredo que permeia o segundo – e mais forte – ato de O Leitor, centrado no julgamento de um dos personagens. Ali, o arco dramático da trajetória de Michael é desenvolvido, Kate Winslet tem seus melhores momentos e, mais importante, é quando Daldry e o roteirista David Hare levantam algumas questões importantes, que vêm a ser o centro de toda a narrativa do filme. A mais relevante delas diz respeito a agir ou não agir diante daquilo que se acha correto. Isso vale tanto para o segredo de Hannah, que se estende à nação alemã durante a Segunda Guerra, quanto para o dilema particular de Michael, cuja decisão acaba por influenciar o restante de sua vida. Em relação ao nazismo, Daldry e Hare colocam discussões válidas nas bocas dos personagens sobre o fato de todos saberem que Hitler e seus comparsas faziam com os judeus na época, mas ninguém teve coragem de se posicionar contra. É essa culpa, por saber ter sido conivente com atos de extrema crueldade, que aflige o povo germânico e dá o tom desse momento de O Leitor, o que fica claro em uma declaração do professor interpretado por Bruno Ganz a Michael: “Se vocês não aprenderam com a gente, não adiantou de nada”. A questão é: o que a eu faria no lugar dos personagens? Infelizmente, logo em seguida Daldry se submete à Síndrome do Oscar e derrapa no melodrama, realizando um terceiro ato desastroso. Personagens começam a tomar atitudes que não condizem com o que havia sido apresentado até então (a última ação de Hannah é a principal delas), outros que mal haviam aparecido surgem para dar encerramento à trama (a filha da sobrevivente e a filha de Michael) e Daldry simplesmente deixa claro o fato de que não faz a menor idéia de como encerrar o filme. No entanto, o maior de todos os problemas de O Leitor concerne a própria personagem de Hannah. Ao final do filme, ela continua um mistério ao espectador. Ainda que a platéia já conheça seus segredos, é impossível ter noção sobre que tipo de pessoa ela realmente é: ignorante, inteligente, dissimulada, má, boa? Tudo isso junto? Uma linha tênue separa um personagem complexo de um mal construído e Hannah se encaixa na segunda categoria. A sua sisudez do ato inicial contrasta com a fragilidade do momento do julgamento, assim como a ignorância central à narrativa jamais é apresentada em outro instante. Esse desenvolvimento problemático não consegue ser salvo nem com o incrível talento de Kate Winslet, que brilha em momentos específicos, mas é prejudicada pelo roteiro na construção da personagem. Assim, como o espectador jamais conhece a verdadeira Hannah, mesmo que a culpa não seja de Winslet, acredito que este está aquém de outros trabalhos da atriz, tornando a indicação ao Oscar injustificada (nesse sentido, ela está muito melhor no superior Foi Apenas um Sonho). Essa distância entre público e personagens impede qualquer resquício de emoção e faz com que os momentos nos quais Daldry tenta explorar o silêncio e os olhares sejam apenas entediantes – seja o que estiver passando no interior dessas pessoas, este sentimento não se reflete do lado de cá da tela. No geral, O Leitor é um filme bom, mas nada além disso. Possui um enredo interessante, ótimas atuações (o garoto Daniel Kross é excelente) e levanta valorosas discussões. Mas é inegável que possui uma série de problemas, que tornam-se ainda mais claros quando se reflete sobre o filme. Está longe, mas longe mesmo, de ser um dos melhores do ano.

Nota: 6.0

Monday, February 09, 2009

O Mergulho

O relógio devia marcar umas oito horas da manhã de domingo.

Dos mais de dez que partiram para a guerra, sobraram três – eu e mais dois.

Após caminhadas pelo telhado, carros abandonados em valas, doses de tequila, whisky e outras coisas que não lembro, chegávamos em casa.

Mas ainda não era hora de dormir.

Cantar Corazón Partido com todas as forças de uma garganta alcoolizada foi apenas o início.

O melhor ficaria para o final.

Circulei pela casa, gritei, comi pedaço de bolo, falamos bobagem.

E cansei.

Deitei-me na rede.

Lentamente, as pestanas começaram a baixar. A realidade foi sendo deixada para trás. O subconsciente dominava os pensamentos. O sono assumia controle.

Então, o barulho de algo caindo na água.

Um olho se abriu.

Logo em seguida, outra coisa caía na água.

O outro olho se abriu.

De súbito, compreendi.

A piscina.

Os outros dois soldados estavam na água.

Eles nos fundos e eu na frente da casa.

Era a hora do grand finale.

Minha mão direita foi em direção ao bolso direito. Nada.

A esquerda perscrutou o bolso esquerdo. Vazio.

Ambas apalparam as nádegas. Apenas gordura.

Celular e carteira já haviam sido guardados.

O resto secaria.

Perguntei-me: “Vale a pena?”

“Vale”, respondi.

Com esforço, levantei-me. Ninguém em volta.

Uma rápida alongada. Braço, perna, costas, pescoço.

Ainda que sozinho ali, não contive o sorriso.

E parti.

Uma perna depois da outra, em movimentos cada vez mais rápidos.

Corri pela varanda, pela garagem e cheguei à piscina.

À principio, não notaram minha presença.

Eu corria.

Subi os degraus que levavam à água em um só salto.

Correndo.

E pulei.

Ainda no ar, já ouvia os gritos de comemoração dos outros bêbados na piscina. Eles se deram conta do que eu fazia.

Entrei em contato com a água naquilo que se chama de “bombinha”. E já levantei com os braços para cima, comemorando e pronto para receber a ovação.

Ela veio.

Camisa, tênis, meia, calça, cinto.

Um dia inteiro para secar.

Por aqueles segundos que valeram a pena.

Sem noção.

- Meu amigo, gostaria de convidá-lo a se retirar e voltar semana que vem.

- Como assim? Está me expulsando? Não fiz nada!

- Não estou expulsando. Quero convidar você a voltar semana que vem porque a festa acabou.

Olhei em volta. Luzes todas acesas. Pista vazia. Poucas pessoas por perto, a maioria seguranças.

Noção do tempo não é algo que bêbados possuem.

Fora de forma

Hoje em dia, ando me surpreendendo com meu ritmo lento pras leituras. Consigo entender os motivos, mas sempre consegui superá-los. Agora, porém, tá difícil. Até o ano passado, por exemplo, eu era um usuário assíduo do transporte coletivo de Porto Alegre. Costumava pegar no mínimo dois ônibus por dia e, nas viagens, das duas uma: ou lia ou dormia. Ou melhor, lia até dormir. Desde que peguei meu Corsinha, ganhei em tempo e conforto, mas perdi um dos meus momentos de leitura.

O verão é outra razão para a queda desse índice. Tenho o hábito de ler bastante nos finais de semana, em silêncio no quarto, com o ar-condicionado ligado e sem ninguém me enchendo o saco. E vocês hão de concordar que fica muito difícil fazer isso quando se passa os sábados e domingos na praia, em uma casa com dez ou até mais pessoas bêbadas, inclusive eu. Corro o risco de ler e depois não lembrar do que li – maldita amnésia alcoólica!

Assim, acaba me sobrando o período de tempo de segunda a quinta, normalmente alguns instantes antes de dormir. Como sofro de uma espécie de narcolepsia (durmo do jeito que for e onde estiver), esse ínterim de leitura acaba reduzido a poucos minutos por semana, talvez a menor quantidade de tempo dedicado aos livros desde que comecei minha carreira de leitor voraz, há mais de uma década.

Por exemplo, estou remando em O Avesso da Vida, de Philip Roth, há uma semana e meia e estou apenas na página duzentos. Antes dele, levei umas três semanas para terminar A Menina que Roubava Livros. Tudo bem que o livro não é curto, mas em outros tempos em levaria quatro ou cinco dias para acabar com ele. Especialmente pelo fato de ser uma obra bastante interessante.

Ando decepcionado comigo mesmo por esse meu ritmo dos últimos dois meses. Mas prometo entrar em forma novamente. Em breve. Em um futuro próximo. Depois do carnaval, claro.

Definição

A saudade é um grampo que prende duas folhas de lembranças.

Friday, February 06, 2009

Sem final

E tem aquela história do escritor com bloqueio criativo. O cara já tinha tentado de tudo para ter a ideia de um novo conto, mas não adiantava. O branco dominava a tela do computador e o vazio assumia as rédeas da sua mente.

Não sabia mais o que fazer. Até que um dia, abrindo a geladeira para tomar um copo d’água bem gelado, teve uma luz.

Não foi uma ideia qualquer. Não era a possibilidade de um simples conto que se formava diante de si. Era “a” ideia. Uma sacada brilhante, inédita, original. Algo que ninguém jamais havia feito antes. O escritor sentiu, inclusive, uma grande responsabilidade por ter tal ideia. Será que teria talento para fazer jus a ela? Seria sua capacidade literária digna de colocar no papel uma ideia como essa?

Não sabia, mas precisava tentar. Começou a refletir sobre ela, a estudar as possibilidades de transpor a ideia do etéreo para o material. Pensou sobre a forma de linguagem, a narração, os personagens. Refletiu a respeito do tamanho da história, sobre alguma mensagem subliminar, sobre o final.

Então, parou.

O final.

A ideia, genial como só ela, brilhante por si só, tinha esse porém. Não possuía final. O ponto de partida era fantástico, assim como o desenvolvimento, mas não havia encerramento. O escritor não sabia como fechar as arestas de forma a manter o nível do conto e de tudo o que relataria até então.

Voltou o mesmo desespero de antes. De que adiantava uma história magnífica com um encerramento pífio? Antes uma história média com um final brilhante. Mas não, ele não desistiria. Por alguma razão, as musas escolheram-no para levar ao mundo essa ideia brilhante e cabia a ele criar o final adequado para o texto.

Mas nada vinha. Nada surgia. Todo o restante já estava bem definido em sua cabeça, mas a sacada final, a última frase brilhante, o derradeiro e surpreendente parágrafo teimavam em não aparecer. O escritor, o aflito escritor, não sabia mais o que fazer. O conto era perfeito, mas não tinha final.

Thursday, February 05, 2009

Regra

E o acento circunflexo perdeu o voo.

FOI APENAS UM SONHO


Em 1999, o diretor Sam Mendes estreou no cinema com um dos grandes filmes daquela década, Beleza Americana. Repleto de cinismo e ironia, o cineasta destruiu o american way of life ao revelar que, por trás da idílica e supostamente perfeita vida suburbana, existia muita podridão, desilusão e decepção. Quase dez anos depois, Mendes retorna ao mesmo tema, agora deixando a sátira de lado para um retrato mais direto, mas não menos perturbador dessa vida de aparências. Baseado no livro de Richard Yates (que não li, mas é uma obra louvada como seminal), Foi Apenas um Sonho acompanha a destruição interior de um casal que parece ter tudo: dois filhos saudáveis, marido com um bom emprego, uma bela casa no subúrbio e amigos. No entanto, isso é apenas uma máscara. Frank e April Wheeler são duas pessoas presas ao “vazio sem esperança” de uma vida vivida sob aquilo que se espera deles, cedendo seus sonhos para assumir as responsabilidades exigidas pelas regras sociais. A frustração que domina os personagens, obviamente, reflete no casamento, que se afunda em uma espiral rumo à destruição. O roteirista Justin Haythe e o diretor contam essa história sem qualquer espécie de concessão ao espectador, jogando à platéia em meio às acaloradas discussões do casal, nas quais Frank e April não hesitam em colocar para fora todos os sentimentos que os afligem. Ao mesmo tempo, o filme realiza um contraponto entre a vida em harmonia (quando eles decidem partir para Paris) com a dura realidade da existência sem qualquer perspectiva e dos sonhos esfacelados, aumentando a força da mensagem. Apoiado em atuações impecáveis de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, que usam a química que possuem para mostrar a proximidade do casal e o talento para revelar as inseguranças pessoais de cada um, Sam Mendes realiza um filme tecnicamente muito bem acabado, mas igualmente poderoso em seu conteúdo e na capacidade de atingir o espectador. Foi Apenas um Sonho não possui a genialidade de Beleza Americana, principalmente por deixar de lado a sagacidade e retrato satírico do vencedor do Oscar de 99, além de outros pequenos problemas, como o fato dos filhos do casal serem praticamente esquecidos. No entanto, a segurança de Mendes, a força das interpretações e o roteiro corajoso fazem de Foi Apenas um Sonho um retrato cru e honesto da destruição de um casamento e de como a vida é capaz de nos colocar grilhões sem que percebamos. Um filme triste, trágico, mas, desde já, um dos melhores do ano.

Nota: 8.0

Wednesday, February 04, 2009

Sobre xixi e flores

Que atire a primeira pedra aquele que nunca mijou na rua. E sem papinho de homem ou mulher. Tudo bem que os machos fazem mais, por serem anatomicamente mais adequados a isso, mas toda mulher já deu uma agachadinha atrás de um murinho ou no meio do mato pra se aliviar. É algo normal já. A sociedade, essa senhora cheia de regras, normalmente costuma relevar tais acontecimentos como inevitáveis.

Normalmente, mas nem sempre. Na última sexta-feira, presenciei um evento que envolveu uma mijadinha na rua. Na verdade, mais do que presenciei, fui um dos protagonistas da cena. Começou aqui em Porto Alegre. Eu e mais quatro pessoas partimos em direção a Imbé (pra quem não sabe, uma das praias feias do nosso litoral) para um feriadão de perdição. Já era noite quando saímos da capital e, como nossa ideia (sem acento, viram?) era ir direto para a noite, optamos por ir bebendo já na viagem. Menos o motorista, que não bebe.

Como não poderia deixar de ser, a cevada e o lúpulo foram testando os limites da bexiga e, quando chegamos na praia, tudo o que queríamos era colocar todo aquele líquido para fora. Paramos, então, em um clube. Duas garotas desceram e entraram no clube. Os dois homens, eu e mais um, nem tentamos. Homem pode mijar na rua, mulher não. Então, fui no cantinho do portão de uma casa e comecei a despejar toda a amônia na calçada.

Nada melhor do que mijar quando se está apertado. O problema começou em seguida. Após quatro minutos e doze segundos mijando, um cidadão saiu de dentro da casa. Era um homem baixinho, gordinho, meio careca, daqueles com todas as razões para não gostar de viver e passar o dia reclamando. Já apareceu com os braços abertos, gesticulando e gritando:

- Que é isso!? O que vocês pensam que tão fazendo!?

Eu e meu outro companheiro de ceva, já um pouco bastante levemente alegres, apenas nos entreolhamos:

- Ah, tá! Era só o que me faltava – disse eu.

O gordinhobaixinhomeiocarecademalcomavida continuou esbravejando:

- Vai mijar na tua casa, seu merda! Onde já se viu isso!?

- Só estou dando uma aliviada – respondi.

- Aliviada nada! Cai fora daqui! Eu posso te fazer ser preso por isso!

- Já vou, só me deixa terminar. Faz mal parar no meio.

- Eu vou terminar com isso agora!

Dito isso, pegou algo em cima da mesa da rua e partiu em nossa direção. Um pouco alterado, levei um tempo para decifrar o que o cidadão trazia na mão. Pensei se tratar de uma arma, de um pedaço de madeira, de um bebê, sei lá. Só quando ele chegou mais perto vi que era uma cestinha de flores. Ai, que amor.

Nesse ponto, eu já tinha acabado. Tudo bem que não deu tempo de sacudir, mas já voltava para o carro, não dando bola para o gordinho que queria me bater com as rosas. No entanto, vi que ele continuava gritando. Olhei para trás e notei que meu amigo ainda mijava e seguia discutindo com o dono da casa.

- Sai daqui! – dizia o homem das rosas.

- Tá, tá... – respondia meu amigo, já encerrando os trabalhos.

- Vou chamar a polícia! – dizia o homem das tulipas.

- Chama quem tu quiser – respondia meu amigo, fechando a braguilha.

O homem dos crisântemos pegou o telefone. Ligou. Rapidamente, estava chamando uma viatura para a casa dele sob a alegação de que dois vândalos estavam destruindo sua casa. Detalhe: não fizemos na casa dele, mas na calçada, bem no canto, sem incomodar ninguém. Por isso, não levamos a sério a ligação. Voltamos para o carro e ficamos esperando as moças retornarem do toalete de dentro do clube.

Não dei mais bola para o homem dos lírios, mas vi que ele continuava parado na frente da casa olhando para nós. Esperando os defensores da lei chegarem. Nisso, as donzelas voltaram. Um outro amigo, em outro carro, disse:

- É melhor vocês saírem senão vão se incomodar.

- Não fizemos nada. Só mijamos – eu disse.

- Vocês vão se incomodar – repetiu ele.

Então, fomos embora. Entramos no carro, nós cinco, as duas bêbadas, os dois bêbados e o motorista, e saímos. Quando chegamos na esquina, ouvimos uma sirene. Os tiras haviam chegado. Sempre sonhei em participar de uma perseguição em alta velocidade, mas eu estava de carona e não teria tanta graça. O motorista encostou o carro e os policiais saíram do carro.

Juro que um deles desceu com um sorriso no rosto, rindo de toda a situação. Não tinha como não rir. Chamarem a polícia só porque dois caras estavam apertados

Os tiras da pesada pediram documentos de todo mundo no carro.

- Sabiam que vocês podem ser presos pelo que fizeram? – disse um deles.

- Pô, seu guarda, não fizemos nada de mais. Quem nunca mijou na rua?

- É, mas não pode.

- Tudo bem, pedimos desculpas. Mas o dono da casa exagerou? Não mijamos nele, na mulher dele ou no cachorro. Foi bem no canto.

- Vai ver ele ficou com inveja – completou o policial.

Aí vimos como ele também estava se divertindo com a situação, mas precisava manter a postura. Até porque o gordinhobaixinhomeiocarecademalcomavida provavelmente estava observando tudo, torcendo para que nos jogassem na prisão ou fôssemos condenados à pena de morte pela mijada assassina.

- Tem banheiros ecológicos logo adiante. Da próxima vez, por favor, usem – disse o tira.

- Sim, senhor – falei, batendo continência.

Os policiais saíram e fomos logo atrás, em direção à nossa casa. Antes, assim que a tropa de elite sumiu de vista, voltei para a casa do homem das orquídeas, baixei as calças e comecei a fazer cocô na calçada dele. Não, essa parte é brincadeira.

Mas deveria ter feito.

Tuesday, February 03, 2009

Títulos Inglórios


Uma das coisas que mais irritam qualquer cinéfilo é a questão envolvendo a escolha dos títulos de filmes que chegam aqui. Não é difícil encontrar absurdos cometidos pelas distribuidoras, sob o pretexto de “vender” as produções de maneira mais fácil em território nacional. Assim, somos bombardeados com coisas do tipo: Tudo pela Esperança (Cinderella Man), O Império do Besteirol Contra-Ataca (Jay and Silent Bob Strike Back), Ela Dança, Eu Danço (Step Up) e o recente Quem Quer Ser um Milionário? (Slumdog Millionaire).

Tudo bem, com uma boa parcela de boa vontade, dá pra entender o lado das distribuidoras. Como qualquer empresa, elas precisam de lucro e um nome mais popular, sem metáforas, com palavras e expressões apelativas ou “da moda” realmente podem ajudar o público a “digerir” o filme. Isso ainda se torna mais essencial para eles em filmes mais alternativos, difíceis de serem vendidos. Claro que a medida, às vezes, chega a dar nos nervos e doer nos ouvidos, até porque pode destruir um título original repleto de significados, o qual os autores provavelmente passaram um bom tempo para criar.

Como não trabalho em distribuidoras de filmes e sou apaixonado por essa arte, fico indignado com algumas traduções – ainda que, como já disse, entenda os motivos. Por isso, sinto imensa satisfação quando os títulos originais, por mais bizarros que eles possam parecer em português, são mantidos para divulgação em nosso mercado. É o caso, por exemplo, do mais recente filme de Quentin Tarantino, Inglorious Basterds. O aguardado novo projeto do ex-atendente de locadora que revolucionou o cinema nos anos 90 tem esse título desde que Tarantino começou a espalhar boatos sobre a realização de um filme de guerra, o que acontece há muitos anos. Todos nós que acompanhamos notícias de cinema nos acostumamos com esse título e, ainda mais importante, salivamos com o que a mente desvairada de Tarantino poderia estar guardando para um filme com esse nome.

Felizmente, foi anunciado que a produção será chamada no Brasil de Bastardos Inglórios, provavelmente o nome mais coolmotherfucker de todos os filmes de Tarantino. Dá uma satisfação e um alívio ver que não apelaram para Soldados do Barulho, Caça aos Nazistas Malvados, Brad Pitt e sua Gangue da Pesada ou coisa do tipo. Além de respeitar a visão de Tarantino, a distribuidora concorre, desde já, a ser responsável por colocar no Brasil o filme com o melhor título do ano. Que sirva de lição para todas as outras.